domingo, 9 de fevereiro de 2014

Questão Indígena

Amazônia em chamas

A morte do cacique Ivan Tenharim é parte de um rolo compressor anti-indígena
por Rodrigo Martinspublicado 09/02/2014 08:44, última modificação 09/02/2014 09:27
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Clovis Miranda/A Critica/Estadão Conteúdo
Funai1
Cerca de 300 pessoas invadiram a aldeia tenharim, em Humaitá (AM)
Um inquérito concluiu que o indígena morreu em acidente de moto, mas as tribos locais não concordaram com a versão e teriam se vingado. Desde a quinta-feira 27, estão presos Gilvan e Gilson, filhos do falecido cacique Ivan; Domiceno, líder da aldeia Taboca; Valdinar e Simião, da aldeia Marmelos. O episódio está esclarecido, ao menos para quem acredita tratar-se de um simples caso de polícia. As raízes do conflito são, porém, mais profundas.
Erguida no entroncamento da Transamazônica com a BR 319, que liga Porto Velho a Manaus, a cidade de Humaitá registra conflitos entre índios e colonos desde o início do século XX, quando as violentas expedições do ciclo da borracha quase dizimaram os índios Parintintin. A partir dos anos 1940, surgiram as primeiras levas de garimpeiros na região. Com a abertura da Transamazônica, no início dos anos 1970, o fenômeno se intensificou. A região passou a abrigar extração ilegal de madeira, inclusive nas terras indígenas demarcadas a partir dos anos 1990.
No mais recente episódio de Humaitá, a população local apressou-se, contudo, a apresentar seu bode expiatório: Ivã Bocchini, então coordenador regional da Funai no Madeira. Foi o servidor quem alertou as autoridades sobre o risco de recrudescimento dos conflitos após a morte do cacique Ivan Tenharim. Acabou vítima de uma campanha ferroz na internet, acusado de incitar a vingança dos índios por pedir, em texto publicado num blog da Funai, a investigação das circunstâncias da morte do líder indígena e levantar a hipótese de homicídio.
“O texto visava dar voz aos índios, uma obrigação de qualquer indigenista. Simultaneamente, agi como administrador, dentro de minha atribuição, e enviei ofícios para as autoridades policiais competentes solicitando investigação sobre a morte de Ivan Tenharim, já que as circunstâncias do acidente de moto eram desconhecidas”, afirma o servidor em entrevista a CartaCapital. “Nunca afirmei que o cacique foi assassinado, como dizem por aí. Tampouco contrariei a polícia, já que naquele momento sequer havia sido aberto inquérito policial”.
Bocchini foi exonerado do cargo, mas a Funai esclarece que o afastamento deu-se por questões de segurança. “Com o acirramento do conflito, precisávamos assegurar a integridade dele e dos demais servidores”, explica a presidente do órgão, Maria Augusta Assirati. “Não podemos culpá-lo pela violência na região. Ao contrário, ele sempre desempenhou um trabalho impecável”.
Após o desaparecimento dos três homens brancos na terra dos Tenharim, grupos armados incendiaram casas da aldeia indígena e destruíram as instalações da Funai. O prédio da sede regional foi consumido pelas chamas, assim como carros e um barco do órgão estatal. A polícia, tão célere na prisão dos índios acusados pelos homicídios, até agora não apresentou à Justiça os responsáveis pelos ataques.
Para a presidente da Funai, os ataques têm relação com o aumento da fiscalização em terras indígenas. Nos últimos sete anos, foram realizadas 22 operações na região contra a exploração ilegal de madeira e a pesca predatória, várias delas com o apoio do Ibama e da Polícia Federal. Os investimentos em fiscalização quadruplicaram desde 2009, atingindo a média atual de 350 mil reais por ano. “O cerco aos madeireiros incomodou muita gente.”
O melancólico desfecho do conflito entre indígenas e colonos brancos em Humaitá virou arma na mão dos grupos que lutam contra as demarcações de terras e as políticas específicas para índios. No site Canal do Produtor, a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária, não perdeu a oportunidade de atacar a Funai e questionar os “privilégios” da população indígena. “Os Tenharim são uma prova viva da ficção ideológica na qual vive a Funai. O cacique morreu em um acidente de moto, veículo que as famílias da aldeia têm na porta da frente. Todas as moradias possuem internet e muitos dos indígenas vivem e trabalham nas cidades da região”, argumentou a parlamentar, para quem os índios não precisam de mais terras tampouco da Funai. Bastariam os programas sociais que o governo federal oferece ao conjunto da população, como o Bolsa Família e incentivos para a agricultura.
Fazendo coro para a bancada ruralista, o geógrafo Demetrio Magnoli usou sua coluna na Folha de S.Paulo para questionar a identidade indígena de quem mora em casas com eletricidade e torce para o Flamengo. “Redefinir-se como indígena tornou-se uma estratégia destinada a obter segurança fundiária, cotas preferenciais e privilégios extraordinários”, conclui.
O discurso serve aos interesses dos proprietários de terra que se sentem ameaçados com a expansão dos territórios indígenas. Segundo o Censo de 2010, o Brasil tem pouco mais de 500 terras indígenas, que somam 106,7 milhões de hectares, o equivalente a 12,5% do território brasileiro. Nessas reservas, vivem mais de 517 mil indivíduos. Restam, porém, 379,5 mil indígenas sem terra.
A Constituição assegura a eles o direito de ter suas terras reconhecidas e reservadas para usufruto exclusivo. Mas o processo de demarcação pode demorar mais de 20 anos, a depender das idas e vindas na burocracia estatal. Para complicar o cenário, o Ministério da Justiça apresentou um projeto de lei que prevê a consulta a nove diferentes ministérios em novos processos de demarcação.
“Na prática, a medida só cria mais obstáculos”, critica André Villas-Bôas, secretário-executivo do Instituto Sócioambiental (ISA) e indigenista há 57 anos. A ideia de extinguir as políticas específicas para índios, em troca dos programas sociais mais abrangentes, desperta profunda irritação no especialista: “Qual é o sentido do Bolsa Família para uma comunidade indígena que teria de viajar mais de uma semana para sacar o benefício?”
De fato, parece uma insensatez desconsiderar a diversidade dos povos indígenas na formulação de políticas públicas. O Brasil possui mais de 300 etnias que falam 274 idiomas diferentes. Há povos nômades, sedentários, etnias recém-contatadas e até mesmo 32 povos isolados. “Não dá para oferecer as mesmas políticas para todos sem levar em conta as diferenças culturais entre eles”, emenda Márcio Meira, antropólogo e ex-presidente da Funai. “Também é risível dizer que o índio deixa de ser índio porque usa relógio ou celular. É tão descabido como dizer que um judeu não é mais judeu se não preservar suas tradições.”
Mas mesmo as etnias que já possuem terras demarcadas não estão imunes à cobiça. Além da atuação ilegal de madeireiros e garimpeiros em aldeias, dezenas de projetos tramitam no Congresso para permitir a exploração de atividades econômicas nas reservas, de atividades de mineração ao arrendamento de terras para o agronegócio. “A justificativa é sempre a mesma. Os índios não geram riqueza. Ignoram a contribuição deles para preservação ambiental”, diz a presidente da Funai, ora engajada no processo de desintrusão da terra indígena Awá-Guajá, no Maranhão.
Homologada por decreto presidencial em 2005, a reserva sofre com a extração ilegal da madeira e já teve 34% de sua cobertura vegetal derrubada. “Precisamos cumprir a lei e retirar os não-indígenas de lá. Acusam-nos de deixar pequenos produtores à míngua, mas eles serão encaminhados a assentamentos pelo Incra. Os únicos prejudicados serão os que lucravam com a ilegalidade.”

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