Mosquitos transgênicos no céu do sertão
Com a promessa de
reduzir a dengue, biofábrica de insetos transgênicos já soltou 18 milhões de
mosquitos Aedes aegypti no interior da Bahia. Leia a história e veja o vídeo
por Agência
Pública — publicado
09/10/2013 16:02
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Coletivo Nigéria
As armadilhas são instrumentos instalados nas casas de alguns
moradores da área do experimento. As ovitrampas, como são chamadas, fazem as
vezes de criadouros para as fêmeas; começo da noite de uma quinta-feira de setembro, a
rodoviária de Juazeiro da Bahia era o retrato da desolação. No saguão mal
iluminado, funcionavam um box cuja especialidade é caldo de carne, uma
lanchonete de balcão comprido, ornado por salgados, biscoitos e batata chips, e
um único guichê – com perturbadoras nuvens de mosquitos sobre as cabeças de quem
aguardava para comprar passagens para pequenas cidades ou capitais
nordestinas.
Assentada à beira do rio São Francisco, na fronteira
entre Pernambuco e Bahia, Juazeiro já foi uma cidade cortada por córregos,
afluentes de um dos maiores rios do país. Hoje, tem mais de 200 mil habitantes,
compõe o maior aglomerado urbano do semiárido nordestino ao lado de Petrolina –
com a qual soma meio milhão de pessoas – e é infestada por muriçocas (ou
pernilongos, se preferir). Os cursos de água que drenavam pequenas nascentes
viraram esgotos a céu aberto, extensos criadouros do inseto, tradicionalmente
combatidos com inseticida e raquete elétrica, ou janelas fechadas com ar
condicionado para os mais endinheirados.
Mas os moradores de Juazeiro não espantam só muriçocas
nesse início de primavera. A cidade é o centro de testes de uma
nova técnica científica que utiliza Aedes aegypti transgênicos para combater a
dengue, doença transmitida pela espécie. Desenvolvido pela empresa britânica de
biotecnologia Oxitec, o método consiste basicamente na inserção de um gene letal
nos mosquitos machos que, liberados em grande quantidade no meio ambiente,
copulam com as fêmeas selvagens e geram uma cria programada para morrer. Assim,
se o experimento funcionar, a morte prematura das larvas reduz progressivamente
a população de mosquitos dessa espécie.
A técnica é a mais nova arma para combater uma doença que
não só resiste como avança sobre os métodos até então empregados em seu
controle. A Organização Mundial de Saúde estima que possam haver de 50 a 100
milhões de casos de dengue por ano no mundo. No Brasil, a doença é endêmica, com
epidemias anuais em várias cidades, principalmente nas grandes capitais. Em
2012, somente entre os dias 1º de janeiro e 16 de fevereiro, foram registrados
mais de 70 mil casos no país. Em 2013, no mesmo período, o número praticamente
triplicou, passou para 204 mil casos. Este ano, até agora, 400 pessoas já
morreram de dengue no Brasil.
Em Juazeiro, o método de patente britânica é testado pela
organização social Moscamed, que reproduz e libera ao ar livre os mosquitos
transgênicos desde 2011. Na biofábrica montada no município e que tem capacidade
para produzir até 4 milhões de mosquitos por semana, toda cadeia produtiva do
inseto transgênico é realizada – exceção feita à modificação genética
propriamente dita, executada nos laboratórios da Oxitec, em Oxford. Larvas
transgênicas foram importadas pela Moscamed e passaram a ser reproduzidas nos
laboratórios da instituição.
Os testes desde o início são financiados pela Secretaria
da Saúde da Bahia – com o apoio institucional da secretaria de Juazeiro – e no
último mês de julho se estenderam ao município de Jacobina, na extremidade norte
da Chapada Diamantina. Na cidade serrana de aproximadamente 80 mil habitantes, a
Moscamed põe à prova a capacidade da técnica de “suprimir” (a palavra usada
pelos cientistas para exterminar toda a população de mosquitos) o Aedes aegypti
em toda uma cidade, já que em Juazeiro a estratégia se mostrou eficaz, mas
limitada por enquanto a dois bairros.
“Os resultados de 2011 e 2012 mostraram que [a técnica]
realmente funcionava bem. E a convite e financiados pelo Governo do Estado da
Bahia resolvemos avançar e irmos pra Jacobina. Agora não mais como piloto, mas
fazendo um teste pra realmente eliminar a população [de mosquitos]”, fala Aldo
Malavasi, professor aposentado do Departamento de Genética do
Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP)
e atual presidente da Moscamed. A USP também integra o projeto.
Malavasi trabalha na região desde 2006, quando a Moscamed
foi criada para combater uma praga agrícola, a mosca-das-frutas, com técnica
parecida – a Técnica do Inseto Estéril. A lógica é a mesma:
produzir insetos estéreis para copular com as fêmeas selvagens e assim reduzir
gradativamente essa população. A diferença está na forma como estes insetos são
esterilizados. Ao invés de modificação genética, radiação. A TIE é usada
largamente desde a década de 1970, principalmente em espécies consideradas
ameaças à agricultura. O problema é que até agora a tecnologia não se adequava a
mosquitos como o Aedes aegypti, que não resistiam de forma satisfatória à
radiação
O plano de
comunicaçãoAs primeiras liberações em campo do Aedes
transgênico foram realizadas nas Ilhas Cayman, entre o final de 2009 e 2010. O
território britânico no Caribe, formado por três ilhas localizadas ao Sul de
Cuba, se mostrou não apenas um paraíso fiscal (existem mais empresas registradas
nas ilhas do que seus 50 mil habitantes), mas também espaço propício para a
liberação dos mosquitos transgênicos, devido à ausência de leis de
biossegurança. As Ilhas Cayman não são signatárias do Procolo de Cartagena, o
principal documento internacional sobre o assunto, nem são cobertas pela
Convenção de Aarthus – aprovada pela União Europeia e da qual o Reino Unido faz
parte – que versa sobre o acesso à informação, participação e justiça nos
processos de tomada de decisão sobre o meio ambiente.
Ao invés da publicação e consulta pública prévia sobre os
riscos envolvidos no experimento, como exigiriam os acordos internacionais
citados, os cerca de 3 milhões de mosquitos soltos no clima tropical das Ilhas
Cayman ganharam o mundo sem nenhum processo de debate ou consulta pública. A
autorização foi concedida exclusivamente pelo Departamento de Agricultura das
Ilhas. Parceiro local da Oxitec nos testes, a Mosquito Research
& Control Unit (Unidade de Pesquisa e Controle
de Mosquito) postou um vídeo promocional sobre o assunto apenas em
outubro de 2010, ainda assim sem mencionar a natureza transgênica dos mosquitos.
O vídeo foi divulgado exatamente um mês antes da apresentação dos resultados dos
experimentos pela própria Oxitec no encontro anual da American
Society of Tropical Medicine and Hygiene (Sociedade Americana
de Medicina Tropical e Higiene), nos Estados Unidos.
A comunidade científica se surpreendeu com a notícia de
que as primeiras liberações no mundo de insetos modificados geneticamente já
haviam sido realizadas, sem que os próprios especialistas no assunto tivessem
conhecimento. A surpresa se estendeu ao resultado:
segundo os dados da Oxitec, os experimentos haviam atingido 80% de redução na
população de Aedes aegypti nas Ilhas Cayman. O número confirmava para a empresa
que a técnica criada em laboratório poderia ser de fato eficiente. Desde então,
novos testes de campo passaram a ser articulados em outros países – notadamente
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, com clima tropical e problemas
históricos com a dengue.
Depois de adiar testes semelhantes em 2006, após
protestos, a Malásia se tornou o segundo país a liberar os mosquitos
transgênicos entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011. Seis mil mosquitos foram
soltos num área inabitada do país. O número, bem menor em comparação ao das
Ilhas Cayman, é quase insignificante diante da quantidade de mosquitos que
passou a ser liberada em Juazeiro da Bahia a partir de fevereiro de 2011. A
cidade, junto com Jacobina mais recentemente, se tornou desde então o maior
campo de testes do tipo no mundo, com mais de 18 milhões de mosquitos já
liberados, segundo números da Moscamed.
“A Oxitec errou profundamente, tanto na Malásia quanto
nas Ilhas Cayman. Ao contrário do que eles fizeram, nós tivemos um extenso
trabalho do que a gente chama de comunicação pública, com total transparência,
com discussão com a comunidade, com visita a todas as casas. Houve um trabalho
extraordinário aqui”, compara Aldo Malavasi.
Em entrevista por telefone, ele fez questão de demarcar a
independência da Moscamed diante da Oxitec e ressaltou a natureza diferente das
duas instituições. Criada em 2006, a Moscamed é uma organização social, sem fins
lucrativos portanto, que se engajou nos testes do Aedes aegypti transgênico com
o objetivo de verificar a eficácia ou não da técnica no combate à dengue.
Segundo Malavasi, nenhum financiamento da Oxitec foi aceito por eles justamente
para garantir a isenção na avaliação da técnica. “Nós não queremos dinheiro
deles, porque o nosso objetivo é ajudar o governo brasileiro”,
resume.
Em favor da transparência, o programa foi intitulado
“Projeto Aedes Transgênico” (PAT), para trazer já no nome a palavra espinhosa.
Outra determinação de ordem semântica foi o não uso do termo “estéril”, corrente
no discurso da empresa britânica, mas empregada tecnicamente de forma incorreta,
já que os mosquitos produzem crias, mas geram prole programada para morrer no
estágio larval. Um jingle pôs o complexo sistema em linguagem popular e em ritmo
de forró pé-de-serra. E o bloco de carnaval “Papa
Mosquito” saiu às ruas de Juazeiro no Carnaval de 2011.
No âmbito institucional, além do custeio pela Secretaria
de Saúde estadual, o programa também ganhou o apoio da Secretaria de Saúde de
Juazeiro da Bahia. “De início teve resistência, porque as pessoas também não
queriam deixar armadilhas em suas casas, mas depois, com o tempo, elas
entenderam o projeto e a gente teve uma boa aceitação popular”, conta o
enfermeiro sanitarista Mário Machado, diretor de Promoção e Vigilância à Saúde
da secretaria.
As armadilhas, das quais fala Machado, são simples
instrumentos instalados nas casas de alguns moradores da área do experimento. As
ovitrampas, como são chamadas, fazem as vezes de criadouros para as fêmeas.
Assim é possível colher os ovos e verificar se eles foram fecundados por machos
transgênicos ou selvagens. Isso também é possível porque os mosquitos
geneticamente modificados carregam, além do gene letal, o fragmento do DNA de
uma água-viva que lhe confere uma marcação fluorescente, visível em
microscópios.
Desta forma, foi possível verificar que a redução da
população de Aedes aegypti selvagem atingiu, segundo a Moscamed, 96% em
Mandacaru – um assentamento agrícola distante poucos quilômetros do centro
comercial de Juazeiro que, pelo isolamento geográfico e aceitação popular, se
transformou no local ideal para as liberações. Apesar do número, a Moscamed
continua com liberações no bairro. Devido à breve vida do mosquito (a fêmea vive
aproximadamente 35 dias), a soltura dos insetos precisa continuar para manter o
nível da população selvagem baixo. Atualmente, uma vez por semana um carro deixa
a sede da organização com 50 mil mosquitos distribuídos aos milhares em potes
plásticos que serão abertos nas ruas de Mandacaru.
“Hoje a maior aceitação é no Mandacaru. A receptividade
foi tamanha que a Moscamed não quer sair mais de lá”, enfatiza Mário
Machado.
O mesmo não aconteceu com o bairro de Itaberaba, o
primeiro a receber os mosquitos no começo de 2011. Nem mesmo o histórico alto
índice de infecção pelo Aedes aegypti fez com que o bairro periférico
juazeirense, vizinho à sede da Moscamed, aceitasse de bom grado o experimento.
Mário Machado estima “em torno de 20%” a parcela da população que se opôs aos
testes e pôs fim às liberações.
“Por mais que a gente tente informar, ir de casa em casa,
de bar em bar, algumas pessoas desacreditam: ‘Não, vocês estão mentindo pra
gente, esse mosquito tá picando a gente’”, resigna-se.
Depois de um ano sem liberações, o mosquito parece não
ter deixado muitas lembranças por ali. Em uma caminhada pelo bairro, quase não
conseguimos encontrar alguém que soubesse do que estávamos falando. Não
obstante, o nome de Itaberaba correu o mundo ao ser divulgado pela Oxitec que o
primeiro experimento de campo no Brasil havia atingido 80% de redução na
população de mosquitos selvagens.
Supervisora de campo da Moscamed, a bióloga Luiza
Garziera foi uma das que foram de casa em casa explicando o processo, por vezes
contornando o discurso científico para se fazer entender. “Eu falava que a gente
estaria liberando esses mosquitos, que a gente liberava somente o macho, que não
pica. Só quem pica é a fêmea. E que esses machos quando ‘namoram’ – porque a
gente não pode falar às vezes de ‘cópula’ porque as pessoas não vão entender.
Então quando esses machos namoram com a fêmea, os seus filhinhos acabam
morrendo”.
Este é um dos detalhes mais importantes sobre a técnica
inédita. Ao liberar apenas machos, numa taxa de 10 transgênicos para 1 selvagem,
a Moscamed mergulha as pessoas numa nuvem de mosquitos, mas garante que estes
não piquem aqueles. Isto acontece porque só a fêmea se alimenta de sangue
humano, líquido que fornece as proteínas necessárias para sua
ovulação.
A tecnologia se encaixa de forma convincente e até
didática – talvez com exceção da “modificação genética”, que requer voos mais
altos da imaginação. No entanto, ainda a ignorância sobre o assunto ainda
campeia em considerável parcela dos moradores ouvidos para esta reportagem.
Quando muito, sabe-se que se trata do extermínio do mosquito da dengue, o que é
naturalmente algo positivo. No mais, ouviu-se apenas falar ou arrisca-se uma
hipótese que inclua a, esta sim largamente odiada, muriçoca.
A avaliação dos
riscosApesar da campanha de comunicação da Moscamed, a
ONG britânica GeneWatch aponta uma série de problemas no processo brasileiro. O
principal deles, o fato do relatório de avaliação de riscos sobre o experimento
não ter sido disponibilizado ao público antes do início das liberações. Pelo
contrário, a pedido dos responsáveis pelo Programa Aedes Transgênico, o processo
encaminhado à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio, órgão
encarregado de autorizar ou não tais experimentos) foi considerado
confidencial.
“Nós achamos que a Oxitec deve ter o consentimento
plenamente informado da população local, isso significa que as pessoas precisam
concordar com o experimento. Mas para isso elas precisam também ser informadas
sobre os riscos, assim como você seria se estivesse sendo usado para testar um
novo medicamento contra o câncer ou qualquer outro tipo de tratamento”,
comentou, em entrevista por Skype, Helen Wallace, diretora executiva da
organização não governamental.
Especialista nos riscos e na ética envolvida nesse tipo
de experimento, Helen publicou este ano o relatório Genetically
Modified Mosquitoes: Ongoing Concerns (“Mosquitos Geneticamente
Modificados: atuais preocupações”), que elenca em 13 capítulos o
que considera riscos potenciais não considerados antes de se autorizar a
liberação dos mosquitos transgênicos. O documento também aponta falhas na
condução dos experimentos pela Oxitec.
Por exemplo, após dois anos das liberações nas Ilhas
Cayman, apenas os resultados de um pequeno teste haviam aparecido numa
publicação científica. No começo de 2011, a empresa submeteu os resultados do
maior experimento nas Ilhas à revista Science,
mas o artigo não foi publicado. Apenas em setembro do ano passado o texto
apareceu em outra revista, a Nature
Biotechnology, publicado como “correspondência” – o que
significa que não passou pela revisão de outros cientistas, apenas pela checagem
do próprio editor da publicação.
Para Helen Wallace, a ausência de revisão crítica dos
pares científicos põe o experimento da Oxitec sob suspeita. Mesmo assim, a
análise do artigo, segundo o documento, sugere que a empresa precisou aumentar a
proporção de liberação de mosquitos transgênicos e concentrá-los em uma pequena
área para que atingisse os resultados esperados. O mesmo teria acontecido no
Brasil, em Itaberaba. Os resultados do teste no Brasil também ainda não foram
publicados pela Moscamed. O gerente do projeto, Danilo Carvalho, informou que um
dos artigos já foi submetido a uma publicação e outro está em fase final de
escrita.
Outro dos riscos apontados pelo documento está no uso
comum do antibiótico tetraciclina. O medicamento é responsável por reverter o
gene letal e garantir em laboratório a sobrevivência do mosquito geneticamente
modificado, que do contrário não chegaria à fase adulta. Esta é a diferença
vital entre a sorte dos mosquitos reproduzidos em laboratório e a de suas crias,
geradas no meio ambiente a partir de fêmeas selvagens – sem o antibiótico, estão
condenados à morte prematura.
A tetraciclina é comumente empregada nas indústrias da
pecuária e da aquicultura, que despejam no meio ambiente grandes quantidades da
substância através de seus efluentes. O antibiótico também é largamente usado na
medicina e na veterinária. Ou seja, ovos e larvas geneticamente modificados
poderiam entrar em contato com o antibiótico mesmo em ambientes não controlados
e assim sobreviverem. Ao longo do tempo, a resistência dos mosquitos
transgênicos ao gene letal poderia neutralizar seu efeito e, por fim, teríamos
uma nova espécie geneticamente modificada adaptada ao meio ambiente.
A hipótese é tratada com ceticismo pela Oxitec, que
minimiza a possibilidade disto acontecer no mundo real. No entanto, documento
confidencial tornado público mostra que a hipótese se mostrou, por acaso, real
nos testes de pesquisador parceiro da empresa. Ao estranhar uma taxa de
sobrevivência das larvas sem tetraciclina de 15% – bem maior que os usuais 3%
contatos pelos experimentos da empresa –, os cientistas da Oxitec descobriram
que a ração de gato com a qual seus parceiros estavam alimentando os mosquitos
guardava resquícios do antibiótico, que é rotineiramente usado para tratar
galinhas destinadas à ração animal.
O relatório da GeneWatch chama atenção para a presença
comum do antibiótico em dejetos humanos e animais, assim como em sistemas de
esgotamento doméstico, a exemplo de fossas sépticas. Isto caracterizaria um
risco potencial, já que vários estudos constataram a capacidade do Aedes aegypti
se reproduzir em águas contaminadas – apesar de isso ainda não ser o mais comum,
nem acontecer ainda em Juazeiro, segundo a Secretaria de Saúde do
município.
Além disso, há preocupações quanto a taxa de liberação de
fêmeas transgênicas. O processo de separação das pupas (último estágio antes da
vida adulta) é feito de forma manual, com a ajuda de um aparelho que reparte os
gêneros pelo tamanho (a fêmea é ligeiramente maior). Uma taxa de 3% de fêmeas
pode escapar neste processo, ganhando a liberdade e aumentando os riscos
envolvidos. Por último, os experimentos ainda não verificaram se a redução na
população de mosquitos incide diretamente na transmissão da dengue.
Todas as críticas são rebatidas pela Oxitec e pela
Moscamed, que dizem manter um rigoroso controle de qualidade – como o
monitoramento constante da taxa de liberação de fêmeas e da taxa de
sobrevivências das larvas sem tetraciclina. Desta forma, qualquer sinal de
mutação do mosquito seria detectado a tempo de se suspender o programa. Ao final
de aproximadamente um mês, todos os insetos liberados estariam mortos. Os
mosquitos, segundo as instituições responsáveis, também não passam os genes
modificados mesmo que alguma fêmea desgarrada pique um ser humano.
Mosquito transgênico à vendaEm julho
passado, depois do êxito dos testes de campo em Juazeiro, a Oxitec protocolou a
solicitação de licença comercial na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio). Desde o final de 2012, a empresa britânica possui CNPJ no país e
mantém um funcionário em São Paulo. Mais recentemente, com os resultados
promissores dos experimentos em Juazeiro, alugou um galpão em Campinas e está
construindo o que será sua sede brasileira. O país representa hoje seu mais
provável e iminente mercado, o que faz com que o diretor global de
desenvolvimento de negócios da empresa, Glen Slade, viva hoje numa ponte aérea
entre Oxford e São Paulo.
“A Oxitec está trabalhando desde 2009 em
parceria com a USP e Moscamed, que são parceiros bons e que nos deram a
oportunidade de começar projetos no Brasil. Mas agora acabamos de enviar nosso
dossiê comercial à CTNBio e esperamos obter um registro no futuro, então
precisamos aumentar nossa equipe no país. Claramente estamos investindo no
Brasil. É um país muito importante”, disse Slade numa entrevista por Skype da
sede na Oxitec, em Oxford, na Inglaterra.
A empresa de biotecnologia é uma
spin-out da universidade britânica, o que
significa dizer que a Oxitec surgiu dos laboratórios de uma das mais
prestigiadas universidades do mundo. Fundada em 2002, desde então vem captando
investimentos privados e de fundações sem fins lucrativos, tais como a Bill
& Melinda Gates, para bancar o prosseguimento das pesquisas. Segundo Slade,
mais de R$ 50 milhões foram gastos nesta última década no aperfeiçoamento e
teste da tecnologia.
O executivo espera que a conclusão do trâmite burocrático
para a concessão da licença comercial aconteça ainda próximo ano, quando a sede
brasileira da Oxitec estará pronta, incluindo uma nova biofábrica. Já em contato
com vários municípios do país, o executivo prefere não adiantar nomes. Nem o
preço do serviço, que provavelmente será oferecido em pacotes anuais de controle
da população de mosquitos, a depender o orçamento do número de habitantes da
cidade.
“Nesse momento é difícil dar um preço. Como todos os
produtos novos, o custo de produção é mais alto quando a gente começa do que a
gente gostaria. Acho que o preço vai ser um preço muito razoável em relação aos
benefícios e aos outros experimentos para controlar o mosquito, mas muito
difícil de dizer hoje. Além disso, o preço vai mudar segundo a escala do
projeto. Projetos pequenos não são muito eficientes, mas se tivermos a
oportunidade de controlar os mosquitos no Rio de Janeiro todo, podemos trabalhar
em grande escala e o preço vai baixar”, sugere.
A empresa pretende também instalar novas biofábricas nas
cidades que receberem grandes projetos, o que reduzirá o custo a longo prazo, já
que as liberações precisam ser mantidas indefinidamente para evitar o retorno
dos mosquitos selvagens. A velocidade de reprodução do Aedes aegypti é uma
preocupação. Caso seja cessado o projeto, a espécie pode recompor a população em
poucas semanas.
“O plano da empresa é conseguir pagamentos repetidos para
a liberação desses mosquitos todo ano. Se a tecnologia deles funcionar e
realmente reduzir a incidência de dengue, você não poderá suspender estas
liberações e ficará preso dentro desse sistema. Uma das maiores preocupações a
longo prazo é que se as coisas começarem a dar errado, ou mesmo se tornarem
menos eficientes, você realmente pode ter uma situação pior ao longo de muitos
anos”, critica Helen Wallace.
O risco iria desde a redução da imunidade das pessoas à
doença, até o desmantelamento de outras políticas públicas de combate à dengue,
como as equipes de agentes de saúde. Apesar de tanto a Moscamed quanto a própria
secretaria de Saúde de Juazeiro enfatizarem a natureza complementar da técnica,
que não dispensaria os outros métodos de controle, é plausível que hajam
conflitos na alocação de recursos para a área. Hoje, segundo Mário Machado da
secretaria de Saúde, Juazeiro gasta em média R$ 300 mil por mês no controle de
endemias, das quais a dengue é a principal.
A secretaria negocia com a Moscamed a ampliação do
experimento para todo o município ou mesmo para toda a região metropolitana
formada por Juazeiro e Petrolina – um teste que cobriria meio milhão pessoas –,
para assim avaliar a eficácia em grandes contingentes populacionais. De qualquer
forma e apesar do avanço das experiências, nem a organização social brasileira
nem a empresa britânica apresentaram estimativas de preço pra uma possível
liberação comercial.
“Ontem nós estávamos fazendo os primeiros estudos, pra
analisar qual é o preço deles, qual o nosso. Porque eles sabem quanto custa o
programa deles, que não é barato, mas não divulgam”, disse Mário
Machado.
Em reportagem do jornal britânico The
Observer de julho do ano passado, a Oxitec estimou o custo da
técnica em “menos de” £6 libras
esterlinas por pessoa por ano. Num cálculo simples, apenas multiplicando o
número pela contação atual da moeda britânia frente ao real e desconsiderando as
inúmeras outras variáveis dessa conta, o projeto em uma cidade de
150 mil habitantes custaria aproximadamente R$ 3,2 milhões por ano.
Se imaginarmos a quantidade de municípios de pequeno e
médio porte brasileiros em que a dengue é endêmica, chega-se a pujança do
mercado que se abre – mesmo desconsiderando por hora os grandes centros urbanos
do país, que extrapolariam a capacidade atual da técnica. Contudo, este é apenas
uma fatia do negócio. A Oxitec também possui uma série de outros insetos
transgênicos, estes destinados ao controle de pragas agrícolas e que devem
encontrar campo aberto no Brasil, um dos gigantes do agronegócio no
mundo.
Aguardando autorização da CTNBio, a Moscamed já se
preparara para testar a mosca-das-frutas transgênica, que segue a mesma lógica
do Aedes aegypti. Além desta, a Oxitec tem outras 4 espécies geneticamente
modificadas que poderão um dia serem testadas no Brasil, a começar por Juazeiro
e o Vale do São Francisco. A região é uma das maiores produtoras de frutas
frescas para exportação do país. 90% de toda uva e manga exportadas no Brasil
saem daqui. Uma produção que requer o combate incessante às pragas. Nas
principais avenidas de Juazeiro e Petrolina, as lojas de produtos agrícolas e
agrotóxicos se sucedem, variando em seus totens as logos das multinacionais do
ramo.
“Não temos planos concretos [além da
mosca-das-frutas], mas, claro, gostaríamos muito de ter a oportunidade de fazer
ensaios com esses produtos também. O Brasil tem uma indústria agrícola muito
grande. Mas nesse momento nossa prioridade número 1 é o mosquito da dengue.
Então uma vez que tivermos este projeto com recursos bastante, vamos tentar
acrescentar projetos na agricultura.”, comentou Slade.
Ele e vários de seus colegas do primeiro escalão da
empresa já trabalharam numa das gigantes do agronegócio, a Syngenta. O fato,
segundo Helen Wallace, é um dos revelam a condição do Aedes aegypti transgênico
de pioneiro de todo um novo mercado de mosquitos geneticamente modificados: “Nos
achamos que a Syngenta está principalmente interessada nas pragas agrícolas. Um
dos planos que conhecemos é a proposta de usar pragas agrícolas geneticamente
modificadas junto com semestres transgênicas para assim aumentar a resistências
destas culturas às pragas”.
“Não tem nenhum relacionamento entre Oxitec
e Syngenta dessa forma. Talvez tenhamos possibilidade no futuro de trabalharmos
juntos. Eu pessoalmente tenho o interesse de buscar projetos que possamos fazer
com Syngenta, Basf ou outras empresas grandes da agricultura”, esclarece Glen
Slade.
Em 2011, a indústria de agrotóxicos faturou R$14,1
bilhões no Brasil. Maior mercado do tipo no mundo, o país pode nos próximos anos
inaugurar um novo estágio tecnológico no combate às pestes. Assim como na saúde
coletiva, com o Aedes aegypti transgênico, que parece ter um futuro comercial
promissor. Todavia, resta saber como a técnica conviverá com as vacinas contra o
vírus da dengue, que estão em fase final de testes – uma desenvolvida por um
laboratório francês, outra pelo Instituto Butantan, de São Paulo. As vacinas
devem chegar ao público em 2015. O mosquito transgênico, talvez já próximo
ano.
Dentre as linhagens de mosquitos transgênicos, pode
surgir também uma versão nacional. Como confirmou a professora Margareth de Lara
Capurro-Guimarães, do Departamento de Parasitologia da USP e coordenadora do
Programa Aedes Transgênico, já está sob estudo na universidade paulista a
muriçoca transgênica. Outra possível solução tecnológica para um problema de
saúde pública em Juazeiro da Bahia – uma cidade na qual, segundo levantamento do
Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2011, a rede de
esgoto só atende 67% da população urbana.
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