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Binômio: o jornal que foi do humor à perseguição política
JS PDT SECOM
O jornalista José Maria
Rabêlo, criador do jornal "Binômio - Sombra e Água Fresca"
A mídia alternativa brasileira ganha uma importante referência, agora digitalizada, com a doação do acervo do jornal Binômio - Sombra e Água Fresca por um de seus idealizadores, o jornalista José Maria Rabêlo. A digitalização foi realizada pela Universidade Federal
de Minas Geral (UFMG) com a ajuda do jornalista de 86 anos, que doou as mais de 800 edições da publicação para a universidade.
A ação será comemorada na terça-feira 9, às 10 horas,
na sede da biblioteca da UFMG, e contará com a presença de Rabêlo. Com
86 anos, o jornalista teve a vida
marcada pelo jornalismo independente e pela perseguição política, que o fez ficar 15 anos no exílio.
O Binômio surgiu em Minas Gerais, em 1952, como uma
brincadeira de estudantes, quando Rabêlo e seu sócio, o jornalista Euro
Arantes, tinham 22 e 23 anos, respectivamente. Com forte teor
humorístico, o jornal ganhou força por conta do “governismo” da mídia
mineira na época em que Juscelino Kubitschek era governador do estado.
“Era um escândalo, a imprensa era controlada pelo estado e não saía
nada”, relata Rabêlo.
O nome do Binômio faz referência a um programa de
governo de JK, na época batizado de “Binômio de Energia e Transporte”.
“Para confrontar o ‘Binômio da Mentira’, como chamávamos este programa,
lançamos o ‘Binômio da Verdade: Sombra e Água Fresca’. Foi um sucesso.”,
lembra o jornalista. “Com uma linguagem muito independente, até com
certo exagero, saímos contestando toda aquela política.”
Nos seus 12 anos de publicação, o Binômio chegou a
uma tiragem de 60 mil exemplares, com alcance além de Minas Gerais,
segundo Rabêlo. “No primeiro número foram umas quatro paginazinhas,
muito mal impressas, com dois mil exemplares. Vendeu tudo. Tivemos que
tirar mais dois mil."
Da fase humorística, o Binômio passou para um
momento mais combativo em 1956. “Depois do governo de JK, entrou um
governador muito retrógrado e conservador, o Bias Fortes. Então,
passamos a fazer um jornal mais panfletário, dos mais bravos.” A partir
dali, o Binômio encontrou dificuldades para circular. "As gráficas de Minas não imprimiam mais o Binômio. Então, tivemos que ir para o Rio de Janeiro, fomos um jornal que teve que se exilar para sobreviver."
Em 1958, o Binômio iniciou sua terceira e última
fase, interrompida em 1964, não por acaso, o ano do golpe civil-militar
no Brasil. Durante esses seis anos, o jornal se tornou um grande
semanário. “Além do humor, apresentávamos denúncias e grandes
reportagens, que abalavam o estado." Foi nessa fase que o jornal sofreu
seu empastelamento. "Estava na época já a conspiração golpista. Era o
governo do Jango e a direita já se articulava", recorda.
O Binômio virou alvo por fazer reportagem contra um
general do Exército. "Foi nomeado um novo comandante das Forças Federais
de Minas, o general João Punaro Bley. Ele deu, na ocasião, uma série de
declarações anticomunistas, dizendo que o governo de Goulart era
suspeito. Sabíamos que ele havia sido interventor do Estado Novo no
Estado do Espírito Santo, que havia fechado jornais e comandado um campo
de concentração para presos políticos. Fomos lá e fizemos um material
impressionante”. Isso, segundo o jornalista, levou o general até a
redação ameaçar os responsáveis pela publicação. “A publicação saiu no
domingo. Na quarta-feira, ele apareceu no jornal, fardado e com o
barrete metálico, para conversar com o diretor."
A tentativa de intimidação, de acordo com Rabêlo,
acabou em uma luta corporal envolvendo ele e Bley. "Ele questionou quem
havia escrito aquela ‘merda’ sobre ele. Eu respondi: é uma reportagem
muito fundamentada e eu sou responsável por tudo que sai publicado no
jornal. Dito isso, ele me agarrou pelo pescoço. Eu sabia que ele já
tinha feito isso com jornalistas no Espírito Santo. Mas eu era lutador
de judô. Nós rolamos pelo chão."
- Edição do jornal "Binômio"
Após o incidente, o jornalista passou a ser visado e
teve de se exilar. "No dia 29 de março, em Minas, puseram em prática a
Operação Gaiola, para prender todas aquelas pessoas que tinham
envolvimento na defesa do governo Goulart”, lembra. “Eu era um dos
principais, porque o nosso jornal denunciava a conspiração contra o
Jango, a traição do Magalhães Pinto, entre outros fatos.”
A sorte passou, então, a marcar a vida do jornalista e
de sua família. “Nesse dia 29, às vésperas do golpe, saí para almoçar
e, no preciso momento em que eu descia, oficiais subiam no outro
elevador para me prender. Isso é cinematográfico. O porteiro Geraldino
me disse: ‘ô Zé Maria, cai fora que os homens estão aí, te procurando’.
Foi o conselho mais sábio que eu recebi na vida", diz.
Rabêlo voltaria a viver outro afortunado desencontro
quando se refugiou no Chile, nos anos 70. “Eu estava na primeira lista
de procurados. Éramos 99 pessoas. A lista dizia assim: ‘As pessoas
relacionadas têm o prazo de 24 horas para se apresentar ao Ministério da
Defesa, sob pena de fuzilamento.’ Os oficiais chegaram na minha casa
duas horas depois de eu ter saído.” O jornalista só voltaria a pisar no
Brasil nos anos 80.
Como vanguarda, o Binômio discutia em suas colunas
assuntos que não eram correntes na época, como a própria imprensa, a
publicidade e os movimentos sociais. “Nós não nos inspirávamos em
ninguém, buscávamos as nossas próprias soluções. Procurávamos fazer um
jornalismo moderno, direto, claro, que explicasse ao leitor o que estava
acontecendo.”
Tal preocupação com um jornalismo arrojado, segundo Rabêlo,
falta hoje à mídia brasileira. Além disso, todos os jornais, na sua
opinião, parecem falar dos mesmos assuntos. “As manchetes dos grandes
jornais brasileiros são todas iguais. Uma vergonha, parece que todas vêm
da mesma central de jornalismo. Isso não houve nem no tempo do Jango."
Para Rabêlo, ainda há espaço para o crescimento do jornalismo
alternativo e a recuperação do Binômio ajuda a aumentar as
referências para que os jornalistas busquem novas perspectivas. “Hoje,
temos a internet. A grande mídia impressa e televisiva não fala mais
sozinha", acredita.
A coleção doada por Rabêlo ficará na Divisão de Coleções Especiais e Obras Raras da biblioteca da UFMG. O lançamento oficial do material ocorre no Campus Pampulha da universidade, na Av. Antônio Carlos, 6627, 4º andar, em Belo Horizonte.
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