Novo governo
Dilma tenta repetir Lula. Terá sucesso?
Wilson Dias/Agência Brasil
Alexandre Tombini, Joaquim Levy e Nelson Barbosa
Faltou apenas uma nova
versão da Carta ao Povo Brasileiro, o famoso comunicado elaborado por
Antonio Palocci e assinado por Lula, em 2002, para, embora
eufemisticamente direcionado a toda a população, acalmar os chamados
mercados. A pouco mais de um mês de iniciar seu segundo mandato, Dilma
Rousseff começa a dar forma ao seu novo ministério e em tudo se inspira
no modelo adotado por seu antecessor 12 anos atrás. A presidenta testará
a mesma fórmula, um equilíbrio entre ortodoxos e heterodoxos na
economia, uma líder ruralista na Agricultura (quem fará o contraponto no
Desenvolvimento Agrário?) e um industrial sem indústria no
Desenvolvimento.
Até a sombra de Palocci desponta nesse arranjo, a ser
testado pelas novas circunstâncias, totalmente distintas daquelas do
início do primeiro mandato de Lula, e da habilidade de Dilma de
mimetizar o estilo de seu padrinho político. Forjado no sindicalismo do
ABC em plena ditadura, Lula tem o talento natural de mediar divergências
aparentemente irreconciliáveis. Dilma emergiu na luta armada contra o
regime e sua escola foi a resistência à tortura. Conciliar, portanto,
não está entre seus pontos fortes. Ela será capaz de operar uma mudança
tão profunda em sua personalidade?, perguntam-se aliados e opositores.
Na futura equipe, o ministro da Fazenda
será Joaquim Levy, há quatro anos no Bradesco Asset Management,
ex-colaborador do FMI e integrante da gestão Fernando Henrique e do
primeiro governo Lula, no qual chefiou o Tesouro Nacional. O
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior terá Armando Monteiro
Neto, senador pelo PTB de Pernambuco e ex-presidente da Confederação
Nacional da Indústria. A Agricultura ficará sob o comando de Kátia
Abreu, senadora pelo PMDB do Tocantins e presidente da confederação do
setor desde 2008. Dos três, apenas Levy e Monteiro foram anunciados
oficialmente. A senadora vai esperar mais uns dias. Com a economia
fragilizada e o Planalto em busca de um fato positivo para contornar o
escândalo da Petrobras, Dilma resolveu priorizar a escolha da equipe que
controlará o caixa no próximo quadriênio.
Levy não era o favorito para o
cargo e teria sido uma sugestão do presidente do Bradesco, Luiz Carlos
Trabuco, em uma reunião em Brasília, na terça-feira 18, da qual também
participou o chefe do Conselho de Administração do banco, Lázaro
Brandão. Há, porém, razões para enxergar outro padrinho. Palocci?
O encontro da presidenta com a cúpula do Bradesco foi
organizado por Lula, aparentemente simpático à nomeação de Trabuco para a
Fazenda não só pelo respeito ao executivo, mas por causa da
possibilidade de ele representar um armistício com o sistema financeiro.
Quando a conversa ocorreu, Dilma havia dado pistas, via mídia, de não
aceitar a indicação de um banqueiro, embora Trabuco não seja exatamente
um. O presidente do Bradesco igualmente emitira sinais de rejeição ao
convite. Pesou a relação quase filial com Brandão, que o considera seu
maior pupilo e o prepara para sucedê-lo no comando do conselho da
instituição financeira. Paira, no entanto, uma dúvida: a presidenta
convidou formalmente o executivo e este realmente recusou a missão?
A versão de que o convite existiu parece conveniente a
todos. Dilma emitiu um sinal de estar aberta ao diálogo com o setor
financeiro. Trabuco e o Bradesco puderam exibir prestígio e ainda
ficaram com o mérito de ter indicado o titular da Fazenda. E Palocci?
Fato é que o ex-ministro continua ativo nos bastidores, frequenta o
Instituto Lula e é encarregado pelo ex-presidente de ouvir o
empresariado. Além disso, Levy foi seu subordinado no governo.
Um dia depois da reunião com a cúpula do Bradesco, Dilma
recebeu o próprio Levy. A partir desse encontro, os dois engataram
reuniões sucessivas até a presidenta anunciá-lo na quinta-feira 27. O
novo ministro não foi anunciado sozinho. Participou de uma coletiva de
imprensa ao lado do novo chefe do Planejamento, Nelson Barbosa, e do
presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, que permanecerá no
cargo. É como se ali se formasse uma santíssima trindade, todos com
poderes e responsabilidades mais ou menos iguais e compartilhados. É
este “comitê” que a presidenta terá de mediar.
Levy e Barbosa possuem
perfis bem diferentes. O primeiro, além de ter transitado pelo FMI
quando a instituição propagava o neoliberalismo e o Consenso de
Washington na década de 1990, doutorou-se em economia na Universidade de
Chicago, meca do pensamento liberal. O segundo é um desenvolvimentista
clássico, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, apesar de
suas análises e ideias mais recentes indicarem certa moderação. Em
tese, Levy vai soprar ideias no ouvido direito de Dilma. Barbosa, no
esquerdo.
Na primeira aparição pública, os dois fizeram questão de
ressaltar suas afinidades. Na entrevista no Planalto logo após o anúncio
oficial de suas escolhas, mandaram um recado aguardado pelo mercado
financeiro. O governo vai segurar os gastos públicos. A promessa é fazer
em 2015 uma economia de 1,2% do Produto Interno Bruto. Não parece tanto
quando comparada às metas anteriores e não cumpridas de 3%. Mas, diante
da estagnação, representará um esforço brutal. Em 2016 e 2017, a
promessa é aumentar o superávit para, no mínimo, 2%, suficiente, segundo
eles, para conter a trajetória de alta da dívida pública.
O Planalto preparava o arrocho
antes da nomeação dos novos ministros. O pacote elaborado pela Fazenda
combina cortes de despesas e aumento da receita. O governo quer pagar
menos abono salarial e seguro-desemprego, atrelando-os ao tempo
efetivamente trabalhado, proposta negociada há meses com sindicalistas.
Pretende recriar a Cide, imposto sobre a gasolina eliminado em 2012, e
em janeiro retomará a cobrança do IPI na venda de automóveis.
Com Levy na Fazenda, o gasto público
corre o risco de ser satanizado daqui em diante. Quando chefiava o
Tesouro no primeiro governo Lula, o futuro ministro ficou conhecido como
“mãos de tesoura” e parecia não se importar com a meta oficial de
superávit primário, mas perseguir uma própria, maior. Um artigo de sua
autoria publicado no fim de setembro dá a dimensão de sua ortodoxia. No
texto “Robustez fiscal e qualidade do gasto como ferramentas para o
crescimento”, Levy critica o uso indefinido da política fiscal
anticíclica adotada a partir de 2009 contra a crise financeira global.
Diz que o Estado arrecada demais e gasta muito e mal.
O artigo tem duas propostas centrais.
Defende a adoção de metas de redução dos gastos estatais e da dívida
pública bruta. A dívida está na casa dos 60% do PIB, e ele propõe
“estabelecer a redução para menos de 50% nos próximos anos”. Já a
despesa pública, que de 2002 a 2013 subiu de 15,7% do PIB para 18,8%,
tem uma trajetória que, anota, “não pode ser tratada com complacência”.
Os culpados pela gastança seriam a Previdência (leia-se salário mínimo) e
os programas sociais tipo Bolsa Família. “A própria Educação teve
aumento significativo de gasto com a transformação do Fundef em Fundeb,
com subsídio à creche, além da criação de várias universidades e planos
para novas escolas técnicas.”
A criação das duas metas está em exame no
Planalto. O mercado financeiro, diz um técnico envolvido no debate,
parece não dar mais tanta importância ao superávit primário, indicador
usado desde os anos 90 como termômetro do controle das contas. Seria
hora de substituí-lo. Quando comandava o Tesouro, Levy era entusiasta de
uma proposta de espírito parecido, o déficit nominal zero. A ideia foi
abatida no nascedouro pela então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff,
que a classificou de “rudimentar”.
A defesa de metas de contenção dos gastos
e da dívida será um desafio para a relação entre Levy e o futuro
ministro do Planejamento. Barbosa é contra fixar tais metas e expressou
claramente sua opinião em uma entrevista em fevereiro: “A gente precisa
evitar a profusão de metas para não dar confusão e manter as que já
existem, de inflação e de superávit primário”. O tema promete ser um bom
teste do poder efetivo de Barbosa e sua disposição para funcionar como
voz desenvolvimentista contra a ortodoxia do colega.
Barbosa chegará ao
cargo fortalecido graças a um acordo com Dilma. A gestão de todos os
investimentos públicos estará sob sua coordenação, entre eles o Programa
de Aceleração do Crescimento e o Minha Casa Minha Vida. Idem as
concessões de infraestrutura. No Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada surgiu um movimento de grupos desenvolvimentistas disposto a
devolver o órgão à batuta do Planejamento, como no passado.
Para arrepio das vozes progressistas que torceram por sua
indicação à Fazenda, Barbosa tem suas convergências com Levy. Embora
defenda mais despesas em saúde, educação e transporte, considera o
orçamento dos programas sociais inchado. Seu último projeto de pesquisa
antes de voltar ao governo tratou do salário mínimo. Após a recuperação
do poder de compra em dez anos, o piso não precisa mais subir no mesmo
ritmo, argumenta. Poderia seguir a variação do salário médio e aliviar o
caixa estatal no pagamento de aposentadorias, abono salarial e
seguro-desemprego. Ideia oposta àquela apresentada por Dilma na
campanha. A candidatada prometeu manter a política de reajuste real do
salário mínimo, cuja lei que estabelece as regras vence no próximo ano.
A guinada ortodoxa do governo provocou reações antes da
oficialização de Levy. Na segunda-feira 24, intelectuais e partidários
da reeleição lançaram um manifesto contra as indicações de Levy e Kátia
Abreu. Entre os signatários, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, João
Pedro Stedile, dirigente do MST, e o advogado Pedro Serrano. Segundo o
grupo, Levy e Abreu “sinalizam uma regressão da agenda vitoriosa” na
eleição. “A presidenta Dilma Rousseff ganhou mais uma chance nas urnas
não por cortejar as forças do rentismo e do atraso, e sim pelo fato de
movimentos sociais, sindicatos e milhares de militantes voluntários
terem sido capazes de mostrar, corretamente, a ameaça de regressão com a
vitória da oposição de direita.”
O senador tucano Aécio Neves,
derrotado no segundo turno, foi irônico ao comentar a escolha: “É como
chamar um quadro da CIA para dirigir a KGB”. Levy é amigo de Arminio
Fraga, aquele que seria ministro de Aécio. Aliado de primeira hora do
governo, o presidente da Central Única dos Trabalhadores, Vagner
Freitas, foi outro a recorrer à ironia. Reunido com o secretário-geral
da Presidência, Gilberto Carvalho, para discutir a mobilização de
militantes para a posse de Dilma em janeiro, Freitas comentou que para a
CUT o governo estava “ótimo”. Só havia sindicalistas no ministério (o
Bradesco de Levy comanda a confederação dos bancos), o que inspirava
ânimo de que uma hora chegaria a vez da central e dos movimentos sociais
emplacarem alguns quadros.
No PT, alas mais à esquerda mostraram
desconforto, mas preferiram não externar as críticas. O mal-estar levou o
vice-presidente do Senado, Jorge Viana, a sair em defesa de Levy. “Ele
fez parte do governo Lula e ajudou a fazer a correção de rumos do
governo do PSDB. Ele é mais completo. Não é banqueiro, é do mundo da
economia e tem contato com a vida real.” Dilma teria a chance de encarar
os petistas e defender suas escolhas ao participar de uma reunião do
Diretório Nacional do PT no Ceará na sexta-feira 28.
De acordo com o núcleo econômico do
manifesto anti-Levy, o problema é o risco de o arrocho produzir recessão
e desemprego, o que fragilizaria os trabalhadores na busca por empregos
e ganhos salariais. Em tal cenário, não seria improvável a votação pelo
Congresso altamente conservador a ser empossado em 2015 da lei da
terceirização, sonho empresarial a ameaçar conquistas trabalhistas.
Austeridade fiscal, cortes de salários e
direitos trabalhistas compunham a cartilha ortodoxa seguida por muitos
países europeus em dificuldade depois da crise global de 2008. É um
caminho agora condenado por uma entidade do establishment
internacional, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), a reunir as nações mais ricas do planeta. Às vésperas
da confirmação de Levy por Dilma, a OCDE pregou o afrouxamento fiscal, o
aumento do gasto público e um programa de emissão de moeda na União
Europeia para a região tentar evitar uma estagnação sem fim. Na página
58, a reportagem do editor Carlos Drummond mostra um aumento das
críticas à austeridade em órgãos tradicionais, incluído o Fundo
Monetário Internacional.
Uma forte razão
para a guinada à direita do próximo mandato é o receio de o Brasil ser
rebaixado pelas agências de classificação de risco. O País está ameaçado
de perder o chamado “grau de investimento” em 2015, hipótese que, se
confirmada, comprometeria os próximos quatro anos. A Standard &
Poor’s cortou a nota brasileira em março e, se repetir o feito, o País
estará rebaixado a “grau especulativo”, ou seja, se tornaria um local
desaconselhado aos investidores.
Tal decisão, diz um integrante da equipe
econômica, desencadearia um indesejável efeito dominó. A baixa confiança
dos empresários sofreria outro abalo. O juro cobrado na venda de
títulos brasileiros no exterior e em empréstimos estrangeiros a empresas
nacionais subiria. Aplicadores fugiriam do País. O dólar ficaria mais
caro e, por consequência, os preços. A pressão inflacionária exigiria
elevar o juro básico em um ambiente de estagnação. E, mais, tudo no
momento em que os EUA retomariam a elevação de suas taxas de juro, o que
precipitaria uma migração maciça de capital para a maior economia do
planeta.
O Brasil assistirá a uma situação
esdrúxula por alguns dias, quem sabe semanas. Serão dois ministros da
Fazenda e dois do Planejamento. Levy e Barbosa começaram a despachar em
salas no Planalto perto do gabinete presidencial e tentam montar suas
futuras equipes. Aguarda-se o anúncio do substituto ou substituta de
Arno Augustin na Secretaria do Tesouro. Guido Mantega e Miriam Belchior,
respectivos ministros atuais, continuam a postos e vão ficar ainda por
um tempo, a pedido da presidenta. É como se houvesse uma transição entre
diferentes governos. Nos corredores do poder, há quem brinque e
enxergue de fato uma transição na Fazenda: do petista Mantega para o
tucano Levy.
Ironias à parte, a
coexistência é resultado de uma condição imposta pelos futuros
ministros. Levy e Barbosa mostraram resistência à ideia de assumir em
meio à batalha do governo para aprovar uma lei a autorizar o
descumprimento da meta de superávit primário neste ano. Parecem querer
distância de um enrosco que, acreditam, tem de ser resolvido pela atual
equipe. Sem mudar a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014, Dilma corre
o risco de ser processada por crime de responsabilidade. A aprovação
era esperada para a quarta-feira 26, como estava combinado com o
presidente do Congresso, senador Renan Calheiros, mas o acerto falhou,
por causa, entre outras, da pressão da oposição, ainda à espreita de uma
possibilidade de promover o impeachment da presidenta. Mantega e
Miriam estarão de plantão até a lei ser votada. Ou para o caso de não
ser votada e exigir uma solução milagrosa.
*Reportagem publicada originalmente na
edição 828 de CartaCapital, com o título "No túnel do tempo". Texto
modificado para incluir a confirmação de Armando Monteiro como Ministro
do Desenvolvimento
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