Cultura
Literatura
Sofia Tolstói e a luta para expressar-se como escritora
Obras mostram a trajetória da companheira do autor 'Anna Karenina' para
defender os valores do marido, ao mesmo tempo em que lutava por
afirmação
por Francisco Quinteiro Pires
—
publicado
08/12/2014 05:43,
última modificação
08/12/2014 06:13
Reprodução do Livro
Autorretrato de Sofia Tolstói, em 1897, ao lado da imagem e dos pertences de Vanechka, um de seus cinco filhos mortos
No início de 1891, Sofia
Tolstói viajou a São Petersburgo para uma visita ao czar. Apesar de
expectativas contrárias, ela conversou com Alexandre III sobre um livro
do seu marido, Lev Tolstói. Sofia explicou por que a novela A Sonata a Kreutzer
(1889), banida pelos censores russos, deveria voltar à circulação. Se a
proibição fosse revogada, Tolstói abandonaria os seus escritos
filosófico-religiosos para redigir uma obra literária tão grandiosa em
sua forma e conteúdo quanto Guerra e Paz (1869). “Entendo. Mas você daria um livro como esse para as suas crianças lerem?”, perguntou-lhe o czar a respeito de A Sonata a Kreutzer.
“Essa história infelizmente chegou a um extremo, mas o conceito
fundamental diz respeito ao ideal sempre inatingível. Se o ideal é a
castidade, então as pessoas podem ser felizes somente no casamento”,
respondeu Sofia.
Tolstói causara escândalo com A Sonata a Kreutzer
(Editora 34), traduzida para o português por Boris Schnaiderman, ao
apresentar a confissão de Pozdnichev, aristocrata casado com uma mulher
muito mais jovem. A princípio visto por Pozdnichev como um expediente
para a satisfação dos seus desejos carnais, o casamento transformou-se
com o tempo no seu maior tormento. Arrebatado por um ciúme patológico da
relação emocional da esposa com um pianista, ele a esfaqueou até a
morte. A Sonata a Kreutzer desencadeou o que se classificou à
época como a “questão sexual” da sociedade russa. Em um epílogo escrito
em resposta às várias cartas sobre o seu livro, Tolstói defendeu a
abstinência sexual dentro e fora do casamento como a única possibilidade
de o ser humano se aproximar de um ideal cristão de pureza.
Convencido por Sofia de que A Sonata a Kreutzer
não atacava a instituição do matrimônio, Alexandre III permitiu com
restrições a publicação da novela. “Secretamente, não contive a minha
exultação pelo fato de ter vencido com sucesso todos os obstáculos,
logrado uma audiência com o czar e, sendo uma mulher, realizado algo que
ninguém mais poderia”, orgulhou-se Sofia. O livro deveria ser vendido
somente como o 13º volume de Os Trabalhos Completos. “Nem todas
as pessoas terão dinheiro para comprá-lo nem ele terá uma circulação
muito ampla”, sentenciou o imperador. Mas Alexandre III errou na sua
previsão. “Como diríamos hoje, A Sonata a Kreutzer tornou-se
viral”, afirma Michael Katz. “A novela estimulou uma investigação não só
da sexualidade em si, mas do significado do amor, da família, do
casamento e do adultério.”
Professor emérito de literatura russa do Middlebury College, Katz fez uma tradução recente de A Sonata a Kreutzer. No recém-publicado The Kreutzer Sonata Variations
(Yale University Press), ele acrescentou duas novelas escritas por
Sofia traduzidas pela primeira vez para o inglês, além de trechos de
diários e cartas da esposa de Tolstói. Por muito tempo guardadas no
arquivo da família, as duas ficções de Sofia desempenham a função de
“contranarrativas”, nas palavras de Katz. A esposa de Tolstói não
convenceu o czar do valor de A Sonata a Kreutzer, cujo enredo
detestava, por amor ao marido. “Essa história lançou uma sombra sobre a
minha vida”, ela escreveu no seu diário. “O fato de defendê-la
significava que eu não poderia mais ser vista como o modelo para o seu
tema; isso significava que eu era inocente e não participante dos
eventos descritos em A Sonata a Kreutzer.” À semelhança do casal
ficcional, a diferença de idade entre Tolstói e Sofia era grande. Quando
casaram em 1862, ele tinha 34 anos e ela, 18.
O lançamento de The Kreutzer
Sonata Variations nos Estados Unidos segue a publicação de My Life
(University of Ottawa Press), a autobiografia de Sofia. É um dos efeitos
da abertura gradual do arquivo de uma mulher que foi também pintora,
fotógrafa e pianista amadora. Indisponíveis para pesquisadores durante
boa parte do século XX, os seus escritos têm suscitado uma nova
interpretação do matrimônio de quase 50 anos com o autor de Guerra e Paz. Nas últimas décadas, livros como Love and Hatred: The stormy marriage of Leo and Sonya Tolstoy retrataram Sofia como histérica, possessiva e rancorosa. Em A Última Estação
(Record), Jay Parini elaborou um relato ficcional do último ano de vida
de Tolstoi. Segundo Parini, Sofia oscilaria entre o ódio aos pontos de
vista do marido e a admiração pelo status dele como figura pública. A Última Estação
foi adaptado para o cinema em 2009, com Helen Mirren no papel de Sofia e
Christopher Plummer no de Tolstói. Por suas atuações, Mirren foi
indicada ao Oscar de melhor atriz e Plummer, de melhor ator coadjuvante.
Aos 82 anos, o ficcionista russo
abandonou Iasnaia Poliana – a sua extensa propriedade rural, a 200
quilômetros de Moscou –, enquanto planejava doar os direitos autorais da
sua obra para o povo. Ele afastou-se da família para atuar como líder
espiritual. Acusou Sofia de desviá-lo do caminho da pobreza e da
castidade, além de ser apegada a um padrão de vida materialista. Mas
diferentes biógrafos de Tolstói mostraram as contradições do autor. Ele
foi um latifundiário mulherengo que pregou o celibato, um aristocrata
que admirava a simplicidade dos camponeses e um célebre ficcionista que
amaldiçoou as suas obras-primas.
A rejeição à mulher
com quem teve 13 filhos, dos quais cinco morreram ainda crianças, pode
ser explicada por intriga, segundo Alexandra Popoff, autora de Sophia Tolstoy: A Biography (2010) e organizadora de Tolstoys False Disciple,
um livro sobre a relação entre Vladimir Chertkov e Tolstói (a ser
lançado em novembro). “O principal discípulo de Tolstói e seu amigo
íntimo, Chertkov caluniou Sofia durante anos. Ele tornou-se
administrador literário do escritor e um biógrafo influente que
controlou com sucesso o que se publicava sobre Tolstoi na Rússia”, diz
Popoff. “As informações positivas sobre Sofia foram suprimidas.” Até
hoje, declara Popoff, vários leitores acreditam que Chertkov era leal ao
autor de Anna Karenina e Sofia, interessada em lucrar com os direitos autorais das obras do marido.
Tolstói sabia dos escritos da esposa, os
quais se recusava a ler. Os seus filhos tinham a mesma opinião. Segundo o
seu julgamento, a divulgação do que a mãe redigira representaria uma
mancha à reputação de mulher confiável. “Sob pressão da própria família,
Sofia concordou em esconder os seus textos, que eram contrários não
somente às crenças de Tolstói, mas à percepção moral sobre o sexo
feminino”, diz Katz. Ao expressar-se de modo coerente e passional, Sofia
arriscou-se em um ofício reservado aos homens tanto na Rússia quanto na
Europa, de acordo com Katz. “Duas grandes escritoras, George Eliot e
George Sand, tiveram de publicar os seus trabalhos sob pseudônimos
masculinos.”
Nas duas novelas em resposta a A Sonata a Kreutzer,
Sofia construiu personagens femininos mais complexos sob uma
perspectiva que Katz define como “empática”. “São diferentes da
personagem imaginada por Tolstói, da qual pouco se sabe.” Na primeira
novela, De Quem É a Culpa? (1894), Sofia mostra como uma jovem
mãe questiona o próprio casamento quando um amigo da família lhe dá uma
atenção inédita. “Ela é uma pessoa inocente que percebe estar numa
relação insatisfatória porque o colega do seu esposo demonstra interesse
nas ideias e nos filhos dela de uma maneira que o marido nunca pôde ou
iria.” A segunda, Canção sem Palavras (1898), apresenta os
distúrbios emocionais de uma mulher que temporariamente acha paz na
amizade com um pianista. “Ela metamorfoseia o seu amor pela música em
uma paixão pelo músico.” Como o relacionamento se faz impossível – o
compositor era homossexual –, o personagem interna-se voluntariamente em
um hospício. Sofia talvez tenha sugerido que uma vida sem
livre-arbítrio seria insana.
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