quinta-feira, 27 de novembro de 2025

 José Luís Fiori

Brasil, Europa, China

Enquanto a Europa aceitava sua vassalagem, o Brasil resistia e a China anunciava uma nova ordem. O eixo do poder global desloca-se definitivamente, enterrando a era da hegemonia unilateral

Publicado em 19/09/2025

1.

Depois da retirada de Donald Trump da 51ª. Cúpula do G7, em Kananaskis, no Canadá, e da aceitação europeia das exigências americanas na 38ª. Cúpula da OTAN, realizada na cidade Haia, na Holanda, o presidente norte-americano submeteu a Europa a mais um espetáculo vexaminoso no seu resort de Turnberry, na Escócia.

Durante um fim de semana de férias, e entre uma partida e outra de golfe, recebeu em sua casa particular, para uma cerimônia de “beija-mão” quase medieval, o primeiro-ministro britânico, Sir Keir Starmer, ao qual negou o pedido de revisão da tarifa de 50% que o próprio Donald Trump havia imposto às exportações inglesas de aço e o alumínio ingleses para o mercado norte-americano.

Logo em seguida, recebeu a Sra. Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, e lhe impôs um “acordo comercial” escorchante, um verdadeiro “tratado infame”, do tipo que os europeus costumavam impor aos asiáticos e à China, em particular, no século XIX.

Pelo novo “acordo”, a União Europeia comprometeu-se a “zerar” as tarifas alfandegárias de todas as importações industriais dos EUA, e aceitou a imposição de uma tarifa linear de 15% sobre todas suas exportações para o mercado norte-americano.

Além disso, a União Europeia comprometeu-se a comprar U$ 750 bilhões de gás liquefeito, petróleo e energia nuclear produzidos nos EUA, aceitando investir U$ 600 bilhões, até 2028, em setores estratégicos da economia estadunidense.

Por fim, jurou não taxar as redes sociais americanas, um tema sobre o qual Donald Trump vem insistindo e ameaçando constantemente. E a clemência pedida pelos europeus, com relação à tarifa de 50% sobre seu aço e alumínio, foi jogada para algum momento indeterminado do futuro.

Assim, se somarmos os termos desse “acordo comercial” ao compromisso assumido na reunião de Haia pelos países europeus da OTAN – de gastar 5% de seus orçamentos anuais em defesa, e a maior parte deste valor na compra de armamentos norte-americanos –, podemos concluir, sem nenhum exagero, que a Europa acabou de aceitar e assumir plenamente, em 2025, sua condição de “vassala militar” dos EUA, agregando-lhe sua nova condição de dominium econômico norte-americano – mesma posição ocupada, no passado, por Canadá, Austrália e Nova Zelândia com relação ao antigo Império Britânico.

2.

De forma paralela, e um pouco antes do seu passeio na Escócia, Donald Trump anunciou sua decisão, absolutamente unilateral, de impor uma tarifa linear de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os EUA. Uma sanção econômica sem nenhum motivo comercial, porque o Brasil é deficitário no comércio com os EUA há muitos anos, como todos sabem e já disseram reiteradas vezes.

Por outro lado, o motivo alegado por Donald Trump – em defesa do ex-presidente brasileiro que foi condenado pela tentativa de um golpe de Estado com assassinato de seus adversários – também parece ser muito artificial e forçado, uma vez que a figura desse ex-presidente é inteiramente irrelevante do ponto de vista do projeto global de Donald Trump.

Neste sentido, tudo indica que a verdadeira motivação do ataque americano contra o Brasil seja uma retaliação contra a política externa do governo brasileiro de aproximação com a China e de liderança dentro do grupo do BRICS. E talvez, ainda mais de retaliação contra a posição brasileira de denúncia do genocídio da população palestina da Faixa de Gaza, por parte do governo de Israel.

Chama atenção, neste sentido, que o anúncio de Donald Trump da sanção contra o Brasil tenha sido feito no mesmo momento em que o presidente norte-americano recebia na Casa Branca o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para reafirmar seu apoio incondicional à política israelense de extermínio e/ou expulsão dos palestinos da Faixa de Gaza.

Ocasião em que o primeiro-ministro de Israel (acusado de “genocídio” no Tribunal Internacional de Haia) fez a patética proposta de concessão do Prêmio Nobel da Paz ao seu principal aliado e financiador deste mesmo massacre que vem sendo denunciado permanentemente pelo presidente brasileiro.

Reforçando esta hipótese, aliás, também chama atenção o fato de que uma semana antes do anúncio da visita de Benjamin Netanyahu a Washington e do “tarifaço punitivo” de Donald Trump contra o Brasil, a revista The Economist tivesse publicado uma matéria – na edição do dia 29 de junho – acusando a política externa do governo Lula de ser “incoerente” e “hostil ao Ocidente”, exatamente por sua denúncia e condenação do genocídio de Gaza e do ataque militar de Israel contra o Irã.

Segundo a revista inglesa, essas posições teriam colocado o Brasil numa condição de isolamento dentro do “mundo ocidental” – ou seja, para bom entendedor, de “isolamento” com relação a Israel, à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos.

Quando se leem os acontecimentos desta forma, entende-se melhor a facilidade com que a The Economist mudou sua posição frente ao Brasil, ao lado de vários outros jornais europeus e norte-americanos, incluindo o The New York Times. Estes passaram a elogiar a resposta do governo brasileiro frente ao “tarifaço” de Donald Trump, por sua corajosa resistência ao assédio e às ameaças comerciais norte-americanas, reconhecendo a liderança internacional do presidente Lula e sua altivez na defesa da soberania e da democracia brasileiras.

O jornal espanhol El País chegou a classificar Lula como o único governante de um país ocidental que foi capaz de resistir aos delírios imperiais de Donald Trump, ao declarar em alto e bom som, que “Trump havia sido eleito para governar os EUA, e não para ser o imperador do mundo”. E a própria The Economist, na edição seguinte, em 28 de agosto, afirmou na sua matéria de capa que “o Brasil estava oferecendo aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática”.[1]

3.

Ou seja, tudo parece confirmar que o verdadeiro motivo do ataque ao Brasil não foi o comércio nem a defesa da “liberdade de expressão”, mas sua política externa ao lado da China e do BRICS, e em particular, contra o genocídio praticado pelo governo israelense de Benjamin Netanyahu. Os EUA são a maior potência econômica, financeira e militar do mundo e, portanto, sua relação com o Brasil, deste ponto de vista, será assimétrica ainda por muito tempo.

Isso limita a possibilidade de o Brasil retaliar economicamente os EUA, como fizeram os chineses, obrigando os norte-americanos a recuarem depois do seu ataque inicial. Mesmo assim o presidente brasileiro não se deixou achincalhar, como aconteceu com os líderes europeus, e se propôs a negociar, colocando-se aberto ao diálogo, mas sem se humilhar frente ao presidente americano.

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Mais do que isso, na sua condição de atual presidente do grupo dos BRICS, vem promovendo uma mobilização de suas principais lideranças, buscando coordenar uma resposta coletiva que impeça que Donald Trump separe seus Estados membros, jogando uns contra os outros e negociando com cada um em separado, usufruindo de sua assimetria de poder.

Por fim, cabe observar que, neste momento, após a rendição incondicional aos EUA, vários governos europeus enfrentam uma impopularidade crescente, enquanto a economia europeia afunda cada vez mais na recessão ou estagnação prolongada, e a economia brasileira segue crescendo.

E em agosto, um mês depois do tarifaço de Donald Trump, o Brasil viu suas exportações para os EUA terem uma queda natural de 18,5%, mas o comércio exterior brasileiro, como um todo, registrou um superávit de U$ 6,1 bilhões – um aumento de 35,8% em relação ao mesmo período de 2024 – e as próprias exportações cresceram 3,9%, totalizando U$ 29,86 bilhões.

Uma extraordinária vitória da coragem e altivez frente à covardia e humilhação das lideranças europeias atuais, talvez a geração mais medíocre da história política da Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, no campo diplomático e geopolítico, a diplomacia brasileira (e o presidente Lula, em particular) obtiveram uma grande vitória ao promover a reunião extraordinária dos países membros do BRICS do dia 8 de setembro, com a participação virtual dos líderes de China, Rússia, África do Sul, Egito, Irã, e Indonésia, além do chanceler da Índia, do Vice-Ministro de Relações Exteriores de Etiópia e do príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos.

Ocasião em que reafirmaram sua crítica conjunta ao tarifaço de Donald Trump e a todo tipo de sanções econômicas unilaterais aplicadas pelos EUA e pela União Europeia contra os demais países e economias do sistema internacional. Mais um ponto a favor da resistência e da diplomacia brasileira.

4.

Nos oito primeiros meses de 2025, Donald Trump ocupou a primeira página dos principais jornais do mundo, praticamente todos os dias e semanas, com seu hiperativismo midiático e todo o tipo de decisões e iniciativas surpreendentes, unilaterais e arbitrárias na maioria dos casos. Muitas delas, inclusive, não foram implementadas ou nunca existiram.

E outras tantas criaram enorme barulho, mas depois ficaram pelo meio do caminho. É o caso de seu anúncio da anexação do Canadá e da Groenlândia ao território dos EUA, ou suas bravatas pacifistas com relação às guerras da Ucrânia e de Gaza. E ainda, sua recente decisão de marcar data e convocar os presidentes da Rússia e da Ucrânia para uma reunião promovida por ele, mas que foi rejeitada pelo presidente ucraniano e solenemente ignorada pelo presidente Vladimir Putin…

No entanto, o que aconteceu na China entre os dias 31 de agosto e 3 de setembro de 2025 foi algo completamente diferente, não passou pela vontade ou decisão dos EUA e deixou Donald Trump inteiramente marginalizado, paralisado e sem capacidade de resposta frente ao gigantesco espetáculo promovido pelos chineses.

Durante esses quatro dias, o mundo teve a certeza de que algo novo acabara de acontecer, sacramentando o declínio de uma “era eurocêntrica” e de uma ordem mundial “unipolar”, junto com o nascimento de um novo polo de poder mundial, com capacidade suficiente e projeto próprio de reorganização do mundo e das relações entre suas várias civilizações.

A 24ª. Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, realizada na cidade de Tianjin nos dias 31 de agosto e 1º de setembro, e o grandioso desfile militar realizado em Pequim no dia 3 de setembro, em comemoração aos 80 Anos da Vitória da China contra o Japão, e contra o fascismo na II Guerra Mundial, foram antes que nada dois espetáculos programados e coreografados nos mais mínimos detalhes – como na tradição milenar dos grandes rituais chineses, com seus símbolos e significados que refletem a visão de seu povo a respeito da ordem social e cósmica, e que contêm mensagens que são praticamente inacessíveis para quem não possui a chave para decifrá-las.

Assim, do ponto de vista da crise contemporânea da ordem internacional e do caos geopolítico instalado pelo declínio da Europa, da desconstrução da hegemonia americana e do mandonismo arbitrário de Donald Trump, esses dois eventos emitiram alguns sinais muito claros, através de gestos e palavras, mas também através do silêncio imponente das novas armas produzidas e apresentadas ao mundo no desfile da Praça da Paz Celestial.

5.

Em primeiro lugar, destacam-se a duração da visita e o calor da recepção dada por Xi Jinping ao presidente russo, Vladimir Putin, deixando claro que sua amizade é indestrutível e que a aliança estratégica entre Rússia e China não foi, nem será abalada pela reaproximação entre a Rússia e os EUA de Donald Trump.

Vladimir Putin e Xi Jinping defenderam as mesmas posições na Cúpula da OCX e estiveram lado a lado no desfile militar, além de terem mantido várias conversas privadas e amistosas durante os cinco dias da visita do presidente russo à China.

Em seguida, cabe destacar a entrada na conferência, de mãos dadas, de Vladimir Putin e do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, até se encontrarem com o primeiro-ministro chinês, com quem se deram as mãos, formando um círculo inimaginável alguns anos ou meses atrás – três dos maiores e mais populosos países do mundo unificados pelo ataque econômico desastroso de Donald Trump contra a economia indiana.

Por fim, como não ver a importância da chegada ao desfile militar do dia 3 de setembro, lado a lado, de Xi Jinping, Vladimir Putin e Kim-Jong-Un, representando os três países que lutaram juntos contra os EUA na Guerra da Coreia entre 1950 e 1953, logo depois do fim da II Guerra Mundial.

Passaram uma imagem e decisão de retorno e releitura de uma história que eles consideram ter sido interrompida ou distorcida pela narrativa das potências ocidentais lideradas pelos EUA.

Na abertura da Cúpula da OCX, e frente aos seus convidados da Praça Celestial, o primeiro-ministro Xi Jinping fez dois pronunciamentos que deverão passar para a história, propondo a criação de uma nova ordem mundial baseada na igualdade, na consulta mútua, no respeito pela diversidade das civilizações e na busca do desenvolvimento econômico e na luta conjunta por um futuro compartilhado.

Criticou veementemente todo tipo de “hegemonismo” e “política de força”, numa referência velada ao “supremacismo europeu” e à linguagem utilizada constantemente por Donald Trump e seu grupo de governo.

Xi Jinping foi mais além e propôs diretamente a “iniciativa de uma nova governança mundial”, baseada em cinco princípios fundamentais: (i) o respeito pela soberania de todos os Estados, independentemente de sua força; (ii) o respeito ao direito internacional; (iii) a prática igualitária de um multilateralismo renovado; (iv) a criação de uma ordem voltada para a proteção e desenvolvimento das pessoas, na sua condição universal de seres humanos, e não apenas de indivíduos; e por fim, (v) a adoção de medidas concretas e imediatas, com o objetivo último de obter a paz entre os povos baseada no desenvolvimento conjunto e cooperativo de todos, sem nenhum tipo de dominação e colonialismo.

A Cúpula da OCX reuniu cerca de 20 chefes de Estados membros do maior bloco regional do mundo – entre os quais Turquia, Egito, Irã e outros –, com cerca de 42% da população mundial e 24% da área territorial global.

6.

O desfile militar, por sua vez, apresentou ao mundo as novas armas chinesas, que podem projetar seu poder ao redor do globo em caso de guerra, incluindo o míssil nuclear Dogfeng 5, capaz de atingir seus alvos a 20 mil quilômetros de distância – ou seja, qualquer ponto da Eurásia ou do “hemisfério ocidental” – ao lado de seus novos drones submarinos de grande porte e mísseis anti-navio, capazes de desbloquear em conjunto o cerco marítimo do Sul do Pacífico, sustentado pelas forças navais de EUA e Grã-Bretanha junto com Austrália, Japão e Coreia do Sul.

Antes de iniciar-se o desfile desses armamentos e de mais alguns milhares de soldados, do alto do prédio da entrada da Cidade Proibida – no mesmo lugar em que Mao Tse Tung anunciou ao mundo, em 1949, a fundação da República Popular da China –, Xi Jinping também anunciou ao mundo que a China se colocava naquele momento ao lado da paz e da civilização, e se propunha a liderar, junto com os demais povos do Oriente e do Ocidente, uma nova ordem global.

Na verdade, a China de Xi Jinping propõe que seja feita uma releitura do papel chinês na Segunda Guerra Mundial e na derrota do fascismo, papel que foi literalmente negado ou cancelado depois da exclusão da China de Mao Tse Tung do Conselho de Segurança da ONU, em 1949 – exclusão que foi feita de forma absolutamente arbitrária e autoritária pelas chamadas “potências ocidentais”.

E agora, ao lado desta releitura, Xi Jinping está reivindicando liderar a reorganização do próprio sistema das Nações Unidas, sem destruí-lo – pelo contrário, com a participação igualitária e proporcional de todos os povos, e com o fim definitivo da pretensão hegemônica das antigas potências europeias e dos Estados Unidos.

Ou seja, se fosse necessário identificar a mensagem principal desses três dias em que a China iluminou o mundo, é que ela e seus grandes aliados estão dispostos a reorganizar e sustentar uma nova ordem mundial pacífica e igualitária, que respeite as várias civilizações que coexistem na face da Terra.

Uma ordem ancorada na estabilidade, na credibilidade dos valores, instituições e práticas historicamente comprovadas do pacifismo e da estabilidade chinesas. Por isso talvez a China tenha decidido fazer sua grande demonstração de força militar exatamente na majestosa Praça da Paz Celestial.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes) [https://amzn.to/3YBLfHb]

Publicado originalmente no Boletim no. 13, setembro de 2025, do Observatório internacional do século XXI.

Nota

[1] Braun, J. “O que o Brasil pode ensinar à América”, The Economist, 28 ago. 2025.

Fonte(s) / Referência(s):

 José Luís Fiori

Argentina, um dominium norte-americano?

A pergunta que persegue a Argentina não é se pagará sua dívida, mas até quando aceitará trocar sua soberania pelo eterno papel de vassalo financeiro

Publicado em 25/11/2025

Desta vez, a “operação de salvatagem”[1] da Argentina foi feita ao estilo de Donald Trump, como se fosse um grande espetáculo midiático, envolvendo diretamente o presidente americano, seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, e os representantes dos principais bancos credores da Argentina liderados por Jamie Dimon, CEO do JP Morgan Chase.

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No mês de setembro de 2025, a Argentina encontrava-se em situação pré-falimentar, sem recursos para pagar o serviço da sua dívida com os bancos internacionais e com o FMI. O valor do peso estava em queda livre, e previa-se a derrota do presidente Javier Milei nas eleições parlamentares do dia 26 de outubro, seguida de uma corrida contra o peso e uma explosão inflacionária.

A comunidade financeira internacional já antecipava uma nova moratória da dívida externa argentina, criando pânico nos mercados financeiros internacionais, tanto em Wall Street como na City de Londres. Foi nesse contexto emergencial que Scott Bessent anunciou, no dia 15 de outubro, a intervenção direta do Tesouro Americano, comprando pesos numa operação de swap loan de US$ 20 bilhões,[2] para impedir o colapso da moeda “portenha” às vésperas das eleições parlamentares. E logo em seguida, no dia 22 de outubro, desembarcaram em Buenos Aires os representantes dos quatro maiores bancos americanos – J.P. Morgan Chase, Goldman Sachs, Bank of America e Citigroup –, incluindo o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, que agora é uma figura de proa do J.P. Morgan Chase International.[3]

Em poucas horas foi montado um pacote de ajuda privada de US$ 20 bilhões, totalizando um resgate de US$ 40 bilhões, desta vez sem a participação do FMI. Esse tipo de intervenção externa na economia argentina não é um fenômeno novo nem excepcional. Basta dizer que, desde os anos 1950 a Argentina já recorreu mais de 20 vezes à ajuda emergencial do FMI. E, hoje, a Argentina é o país que tem a maior dívida do mundo com o Fundo, à frente da Ucrânia, que aparece em segundo lugar, depois de três anos de guerra.

Somando tudo, a Argentina recebeu nesses oitenta anos cerca de 35% do montante total de US$ 164 bilhões emprestados pelo FMI para todos seus clientes ao redor do mundo.[4] Entre 1976 e 1981, durante a última ditadura militar argentina, o ministro da economia Martinez de Hoz utilizou pela primeira vez a estratégia de fortalecimento artificial do peso frente ao dólar, como forma de legitimar o regime militar, dando aos argentinos um poder de compra internacional inflado.

A política econômica do ministro Martinez de Hoz facilitou a especulação financeira e enriqueceu um setor da sociedade argentina, permitindo-lhe acumular dólares a baixo custo, deixando, entretanto, uma dívida externa que se tornou impagável depois do “choque” das taxas de juros de Paul Volcker em 1979, provocando uma crise econômica e uma escalada inflacionária que contribuíram decisivamente para a queda do governo de Reynaldo Bignone e o fim da ditadura militar, em dezembro de 1983.

2.

Para enfrentar esta crise econômica, o então presidente do Banco Central da Argentina, Domingos Cavallo, transferiu a dívida privada para o Tesouro Nacional em 1982, enquanto sucessivas desvalorizações do peso fizeram com que a inflação doméstica e o dólar disparassem. Assim mesmo, o Estado só conseguiu cobrir parcialmente os juros da dívida alimentando ainda mais a inflação e o endividamento recorrendo a novos financiamentos externos.

Seguiu-se o governo do presidente radical, Raul Alfonsin, e o fracasso do seu Plano Austral de combate à inflação, culminando com sua própria renúncia seis meses antes do fim do seu mandato, em 8 de julho de 1989. No início da década seguinte, o mesmo Domingo Cavallo, agora na condição de ministro da Economia do governo peronista de Carlos Menem, voltou à estratégia de fortalecimento artificial do peso, através da sua Lei da Convertibilidade, aprovada em 1991, que estabeleceu um câmbio fixo entre o peso e o dólar, e representou na prática a “dolarização” da economia argentina.

Seu objetivo era conter a inflação, mas acabou causando, sete anos depois, uma nova explosão hiperinflacionária que levou ao colapso da economia argentina e a uma crise política sem precedentes. O novo presidente radical, Fernando de la Rua, eleito em 1999, renunciou em 2001, e em apenas duas semanas a Argentina teve cinco presidentes, seu sistema monetário se desintegrou e a sociedade argentina esteve à beira do caos.

Para culminar, o presidente interino, Adolfo Rodrigues Sá, decretou – no dia 23 de dezembro de 2001 – a moratória da dívida argentina, dando um calote na “comunidade financeira internacional” de US$ 93 bilhões. Depois disto, durante o período dos governos peronistas de Nestor e Cristina Kirchner, entre 2003 e 2015, a Argentina conseguiu honrar o serviço da sua dívida externa, graças aos preços extraordinários das commodities argentinas no mercado internacional.

Mas em 2018, o presidente conservador Mauricio Macri voltou ao FMI, e obteve um empréstimo de US$ 45 bilhões, o maior que já havia sido concedido em toda a história da instituição. Entre seus objetivos não declarados, estava a reeleição do próprio presidente Mauricio Macri em 2019, mas ele foi derrotado já no primeiro turno, e seu sucessor, o peronista Alberto Fernández, passou a maior parte do seu governo renegociando uma forma mais elástica de pagamento do serviço da dívida com o FMI.

3.

O insucesso econômico de Alberto Fernández contribuiu diretamente para a vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais de 2023, com sua proposta ultraliberal de “eliminação do Estado” e “dolarização da economia”, voltando uma vez mais à tese ortodoxa e neoliberal de que a inflação é uma consequência dos abusos da “elite política” e de sua gastança fiscal.

Um ano e quatro meses depois da sua posse, em abril de 2024, Javier Milei bateu às portas do FMI, onde foi recebido com entusiasmo pela sua presidenta, Kristalina Georgieva, e recebeu mais um empréstimo de US$ 20 bilhões, sem que a Argentina tivesse conseguido pagar um centavo de sua dívida de US$ 45 bilhões contraída por Mauricio Macri em 2018. E agora, seis meses apenas depois dessa ida ao FMI, Javier Milei já teve que ser socorrido uma vez mais pela nova operação de salvatagem da Argentina, no valor de US$ 40 bilhões, organizada por Donald Trump, Scott Bessent e Jamie Dimon.

Numa matéria de destaque no jornal The New York Times sobre a Argentina, dia 23 de outubro, o articulista se pergunta com um certo ceticismo sobre o que passará se, no ano de 2026, o governo argentino não tiver recursos – uma vez mais – para honrar seus novos compromissos? Nesse ponto, para responder com franqueza ao The New York Times, há que ter claro que a Argentina não pagará jamais a sua dívida externa. Não tem a menor condição de fazê-lo, mas este não é e nunca será um grande problema.

O FMI e os bancos privados rolarão mil vezes o passivo internacional da Argentina, desde que seu governo siga a cartilha ortodoxa do FMI. Afinal, nem os bancos privados nem o FMI vivem das dívidas pagas; eles vivem das novas dívidas contraídas e do pagamento regular de seus juros e demais serviços.

O sonho da oligarquia econômica e da elite política conservadora argentina sempre foi estabelecer uma “relação carnal”[5] com os Estados Unidos, transformando a Argentina em um dominium norte-americano, como foi o caso de Canadá, Austrália e Nova Zelândia com relação à Inglaterra – mesmo que a cada nova crise e “ajuste” ou “arrocho interno”, a sociedade argentina fique mais pobre e subdesenvolvida, coisa que a Argentina nunca foi no passado.

De qualquer maneira, a grande questão que o The New York Times não se coloca é saber se os Estados Unidos – depois de Donald Trump – quererão assumir o custo de um dominium na América do Sul, ou preferirão apenas manter a Argentina na condição de um vassalo de segunda linha (como outros pequenos países, tipo Equador, El Salvador, Guatemala etc.) “rolando sua dívida” de tempos em tempos, desde que os argentinos se comportem bem, sejam obedientes e rezem pelo catecismo do FMI. Neste novo modelo de vassalagem, o país paga sua dívida com seus recursos mas segue endividado em dólares.

José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Uma teoria do poder global (Vozes)

Publicado originalmente no Boletim no. 13, setembro de 2025, do Observatório internacional do século XXI.

Notas

[1] Expressão utilizada por Guido di Tella ao referir-se ao objetivo central de sala política externa, na condição de Chanceler do governo peronista de Carlos Menem, entre 1991 e 1999.

[2] Nome técnico dado a um conjunto de providências a serem tomadas para um resgate e/ou manutenção da vida após um grande desastre.

[3] Financial Times. Investors bet Argentina will devalue peso despite $40 bn USS rescue effort. 23 October 2025.

[4] The New York Times International Edition. Staking taxpayer Money on Argentina.

Fonte(s) / Referência(s):