'Vivíamos o momento': os 50 anos da Passeata dos Cem Mil
Com a experiência de 68, ex-líder estudantil Vladimir Palmeira relembra o
contexto da mobilização e reflete sobre os novos movimentos da
juventude
evandro teixeira/reprodução

Concentração dos 'Cem Mil'. Passeata reuniu os mais diversos setores da sociedade civil carioca.
“Foi um ano de acertos e de
transição. Esses momentos são sempre muito ricos”, descreve o ex-líder
estudantil Vladimir Palmeira. Em 1968, ele tinha 23 anos e era
presidente da UMES, a União Metropolitana de Estudantes Secundaristas do
Rio de Janeiro. Quando aquele ano começou, ele nem imaginava se tornar
protagonista de momentos históricos que desembocariam na marcante
Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968.
Cinquenta anos depois, Palmeira teme que o
imaginário de 1968 se resuma apenas a grandes fatos políticos, como a
marcha daquele ano. “Fazer o movimento era duro. Fazíamos trabalho de
base para tentar mudar alguma coisa. Mudar aula, professor, currículo,
verba. Isso tudo não aparece quando você faz a história só dos grandes acontecimentos.”
“De resto, não há mistificação de 1968, porque foi
realmente um ano importante não só no Brasil, mas em todo o canto”,
explica. “Cem Mil virou uma simbologia de luta contra a ditadura
militar. É natural que seja lembrada assim. Mas se você quer entender
toda a luta democrática, não pode ficar reduzido aos Cem Mil”, comenta,
citando a importância de outros movimentos, como o sindical, o operário,
o do campo e o das mães.
Em conversa com a CartaCapital,
o ex-deputado federal relembra como era viver a atmosfera do movimento
estudantil naquela época, suas ideologias e suas principais
reivindicações. Hoje com 73 anos, Palmeira, que iniciou sua trajetória
no movimento estudantil ainda como secundarista, em um grêmio de sua
escola, reflete sobre as mobilizações de massa e a atual conjuntura da
política brasileira e olha mais cético para a juventude atual.
Ponto de inflexão
No
início de 1968, o AI-5, ato institucional que suspendeu uma série de
direitos democráticos, ainda não havia sido instituído. As manifestações
populares tinham apoio legal e a repressão não era a mesma da que se
viu a partir do final daquele ano. O movimento estudantil florescia
inspirado nas cenas da França e dos Estados Unidos. A principal luta
desse grupo era a defesa da universidade pública, gratuita e popular,
colocada em cheque pela ditadura.
No Rio de Janeiro, a atmosfera de mobilização já
vinha de meses anteriores, quando, em março, o estudante Edson Luís foi
morto em um protesto em defesa do restaurante Calabouço, frequentado
principalmente por secundaristas e estudantes universitários. “Não foi
uma deliberação do governo atirar. Mas o soldado atirou, matou e aí a
indignação popular foi muito grande. Em algum momento aquilo virou uma
grande mobilização de massas. Tinham milhares, não dá para dizer o
número, mas tinha muita gente. A repercussão foi muito grande”, explica
Vladimir.
O Calabouço pertencia à UMES, entidade estudantil da
qual Vladimir era presidente. Foi legal de 61 a 64, mas caiu na
ilegalidade em 66, juntamente com a entidade. “Conseguimos a vitória em
67, quando o restaurante reabriu perto do Fórum do Rio de Janeiro. Mas
reabriu em condições precárias e aí a luta continuou”, conta.
“O enterro do Edson me emocionou muito pela
espontaneidade do apoio. Era uma coisa emocionante. Morreu uma criança,
16 anos. A violência impactou muito. Ultrapassou o movimento estudantil e
chegou a outros setores. A sociedade viu naquilo um ponto de inflexão",
relembra.
- Ao fundo, a foto do menino Edson Luís (Arquivo de Vladimir Palmeira/Reprodução)
Os Cem Mil
A semana anterior à Passeata dos Cem Mil havia sido marcada por manifestações com confrontos. A última, numa sexta-feira, havia sido a mais violenta, segundo Vladimir. O governador do estado na época, Francisco Negrão de Lima, resolveu permitir mais uma. “O clima era de que ia haver uma grande manifestação. Havia uma expectativa de crescimento do movimento”, comenta.
A semana anterior à Passeata dos Cem Mil havia sido marcada por manifestações com confrontos. A última, numa sexta-feira, havia sido a mais violenta, segundo Vladimir. O governador do estado na época, Francisco Negrão de Lima, resolveu permitir mais uma. “O clima era de que ia haver uma grande manifestação. Havia uma expectativa de crescimento do movimento”, comenta.
A mobilização uniu todos aqueles setores que já
vinham se indignando cada vez mais desde a morte de Edson Luís. Padres,
freiras, artistas, mães, sindicalistas, a ampla sociedade civil soube,
num boca a boca quase orgânico, que a passeata se dirigiria, naquele 26
de junho, rumo à Candelária. De lá, seguiram para a Praça Tiradentes
pela Avenida Rio Branco, até a Assembléia Legislativa.
“Normalmente nós tínhamos uns 2500 estudantes
organizados nos centros acadêmicos e diretórios centrais. O pessoal se
organizava em grupos de cinco, com um coordenador que sabia os endereços
dos lugares escolhidos para a manifestação. Esse pessoal mantinha a
chama acesa o tempo inteiro”, relembra Vladimir. “A polícia chegava e
acabava com a manifestação e meia hora depois ela começava em outro
lugar. Os coordenadores de grupo sabiam onde era e podiam recomeçar.”
No dia, o então presidente da UMES chegou de carro e
atravessou a multidão de pessoas para chegar no alto da Câmara de
Vereadores do Rio de Janeiro. Há boatos de que Vladimir era um dos alvos
dos soldados naquele dia, mas ele não acredita nisso. “Claro, eu
cheguei a ter medo. Já tinha sido preso, mas não fizeram nada comigo.
Depois fui preso em agosto e depois de novo em Ibiúna. Mas a repressão
não era o que foi depois do AI-5”, esclarece.
“Naquele dia nunca ia passar pela minha cabeça que eu
estava fazendo parte de um evento histórico que ficaria lembrada como
algo tão grande. Nós vivíamos o momento, nós esperávamos que podia sair
uma coisa maior dali, nós queríamos mudar o país, queríamos uma
revolução. Não passava nada pela cabeça, nós só organizamos a passeata.
Nós pegávamos os oradores e pedíamos para falar direito, para colocar a
questão da ditadura, a questão da universidade.”
As manifestações anteriores vinham sendo centradas na
reivindicação por mais verbas para as universidades. Os estudantes
pediam o mantimento do ensino pública, o não pagamento de anuidade e a
mudança nas estruturas antidemocráticas das universidades. “Essas foram
as reivindicações que nos levaram ao movimento. Mas durante a
manifestação quatro companheiros nossos foram presos. E nós começamos a
pedir a libertação deles também. Eles só foram soltos uns 15 dias
depois”, conta Vladimir.
- Vladimir Palmeira faz fala durante a Passeata dos Cem Mil (Evandro Teixeira/Reprodução)
Ele relembra que, na época, a Igreja vinha propondo
um diálogo da sociedade com o governo. A UMES aceitou, mas a
interlocução deveria ocorrer com as entidades representativas. Na
quarta-feira anterior, o grupo tentou ocupar o Ministério da Educação,
mas foram recebidos com repressão. A Passeata deu a eles uma nova
oportunidade.
“Uma comissão de representantes populares foi
referendada ali mesmo na Passeata. Eles foram recebidos pelo ditador de
plantão, o general Costa e Silva. Mas eu não fui”, relembra Vladimir.
“Sei que não houve acordo, porque o Costa e Silva exigiu que não
houvesse mais manifestação nenhuma. Foi o que me contaram na época.”
Segundo Palmeira, a Passeata não se compara a nenhum
evento recente vivido no Brasil. “Cada conjuntura é uma conjuntura
diferente”, afirma ele. Mas compara números. “Quando você pega a
fotografia das Diretas Já e olha, é igualzinha à fotografia dos Cem Mil.
Se nas Diretas tinha 1 milhão, no Cem Mil tinha 800 mil, 700 mil,
entendeu? Porque a fotografia é igual. Em 2013, houve uma manifestação
maior que a das Diretas, aquela última grande manifestação, no Rio, ela
tinha um número maior, ia da Candelária até a Central do Brasil e os
jornais disseram que tinha 300 mil.”
Movimento estudantil “Em 1968, nós
queríamos liberdade. Alguns queriam o socialismo, estavam antenados com
as novidades culturais da época. A MPB, as mudanças nas artes plásticas,
a nova geração de teatro. Foi uma época de muita mudança. E nós
tínhamos muita confiança e muita esperança no futuro”, afirma Palmeira.
Ele se orgulha de ter composto o movimento estudantil
naquele período. Segundo ele, era uma época de experimentação e muita
coisa foi feita pela primeira vez ali, em assembleias, reuniões,
conversas. “Quando a gente pensava no projeto político geral, nós
acreditávamos muito em uma receita. A gente achava que trazia a verdade,
e isso eu fui lendo e vendo que não é assim. Aprendemos mais a ler a
conjuntura, a saber que não tem fórmula pronta”, reflete.
Cinquenta anos depois, Vladimir enxerga uma juventude
menos politizada. “A política é muito chata. Só se vê notícia de
corrupção ou de desgoverno, é difícil se entusiasmar”, comenta. Para
ele, em 1968, o papel político bem estabelecido do movimento, centrado
na luta contra a ditadura, ajudou a sua massificação. “Hoje em dia, quem
quer fazer política vai para o partidos, mas frequentemente é
dissolvido pelas estruturas obsoletas deles. É difícil a renovação sem
se perder na mediocridade geral. Aí a juventude acaba indo por outros
caminhos”.
Atualmente, ele não vê representatividade nos
movimentos estudantis dentro das universidades e acredita que os
partidos políticos têm uma grande responsabilidade por isso, por
sufocarem o movimento absorvendo “quadros” e lideranças estudantis nas universidades.
“Em 68 nós éramos vistos como a entidade de
representação dos estudantes. Hoje em dia tem a disputa do partido A
contra o partido B dentro dos espaços estudantis”, opina. “São os
próprios estudantes que certamente vão ter que achar um caminho para
isso.”
Mobilizações
Vladimir não compara junho de 1968 ao que se viu 45 anos depois, em junho de 2013. Para ele, a maior diferença foram as reivindicações. “Em 2013, o pessoal do Movimento Passe Livre perdeu o controle das manifestações, eles não sabiam o que fazer. Saiu da reivindicação puramente de transporte e virou reivindicação de saúde e educação também”, comenta.
Vladimir não compara junho de 1968 ao que se viu 45 anos depois, em junho de 2013. Para ele, a maior diferença foram as reivindicações. “Em 2013, o pessoal do Movimento Passe Livre perdeu o controle das manifestações, eles não sabiam o que fazer. Saiu da reivindicação puramente de transporte e virou reivindicação de saúde e educação também”, comenta.
“O pessoal não estava preparado para lidar com esse
desdobramento. Cada vez que se tem uma manifestação, tem que saber o que
se vai fazer depois e abrir alternativas. Isso não aconteceu e o
movimento acabou de forma estranha.”
- Vladimir e outros oradores do movimento estudantil durante a Passeata (Aquivo de Vladimir Palmeira/Reprodução)
Segundo ele, a mesma dúvida sobre o que fazer após as
mobilizações surgiu três anos depois, durante as ocupações das escolas
públicas pelos secundaristas, em 2016. “O movimento formou-se mas depois
não teve desdobramento. Mas as ocupações em si foram muito boas”,
analisa. “Certamente essas pessoas que participaram ganharam experiência
que influenciaram na vida delas, inclusive levando eventualmente às
atividades políticas.”
Vladimir, que já foi deputado federal pelo PT e que
se desfiliou da legenda em 2011, acredita que atualmente os partidos
políticos têm dificuldades para lidar com as mobilizações fora do espaço
institucional e parlamentar.
“Nem os sindicatos, nem os diretórios estudantis, nem os partidos têm dado um desdobramento para os movimentos. Os partidos querem canalizar tudo para as eleições e não conseguem se ligar à população, então o movimento se perde. Isso empobrece muito a conjuntura, porque às vezes as pessoas querem participar diretamente e não encontram um canal”, explica.
Para ele, a descrença perpassa a juventude e atinge
toda a população. Em um ano de eleições, ele acredita que o cenário
político é complexo e incerto. “Estamos em um mangue. Você não sabe para
onde vai isso tudo. E para o povo sobra a descrença. Eu canso de ver
gente que não vai votar, ou que vai anular, por acharem que essa eleição
não vai mudar muita coisa”, comenta.
“A situação não é clara para ninguém. E
aí aparece o Bolsonaro. Você não sabe para onde vai isso tudo. Acho
então que essa situação vai ser resolvida se tiver movimento de massa,
senão nós podemos cair no impasse daquele time que talvez queira aquela
intervenção que a gente não quer.”
Vladimir não faz previsões acerca de quando uma
próxima experiência de mobilização tal como as Diretas Já ou as Jornadas
de Junho florescerá. “Pela minha experiência com movimento estudantil,
você passava meses chamando o pessoal para alguma coisa e o pessoal não
ligava. E de repente um dia o pessoal decide ir para a rua. Eu tenho
esperança de que a juventude vai descobrir um caminho. O mundo cria os
problemas e vai criando as soluções também”, afirma.
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