Ora, em 1996, havia motivos para esperança sobre “boa fé”: o mundo começava a entender as potencialidades da internet como o maior receptáculo de conhecimento humano jamais construído, que permitiria que jovens em Dubai se comunicassem, instantaneamente, com um coletivo aqui da Rocinha, por exemplo. Os valores éticos que embasavam a primeira geração da internet eram o compartilhamento, a construção conjunta para resolver problemas, o copyleft, que permitia a cópia e distribuição de conteúdo gratuitamente, a generosidade e o bem comum.
Aqui no Brasil, a bonita justificativa para a Seção 230 aportou durante a discussão do Marco Civil da Internet, de 2014, que trouxe um marco civilizatório importante para o uso da internet entre os brasileiros, garantindo, em especial a liberdade de expressão. Diz o artigo 19 dessa lei que o provedor de aplicações de internet somente será responsabilizado se houver uma ordem judicial anterior – repetindo o espírito da norma americana. O artigo foi aprovado “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, nas palavras do próprio Código.
Agora, fast forward dez anos para frente, e o que temos é a “plataformização” da internet, um território controlado por um oligopólio de empresas, a maior parte delas americanas, que conseguiram em tempo recorde absorver mais de metade da verba publicitária mundial e obter lucros inigualáveis ao explorar, justamente, a criação de conteúdo e dados produzidos por bilhões de pessoas, impulsionando, sempre, aquilo que traz emoção, revolta, ódio e polêmica. Bem-vindo a 2023, quando as duas maiores democracias do continente estiveram perto de serem destroçadas por turbas raivosas alimentadas por mentiras espalhadas via redes sociais.
É nesse contexto que a Suprema Corte americana retomará o julgamento da Seção 230, sob a luz de uma questão que muito move aquela pobre sociedade rica: o terrorismo. Nesses dois casos, as redes sociais estão sob escrutínio a respeito da Seção 230. O caso Twitter v. Taamneh trata de um tiroteio terrorista em 2017 em uma boate de Istambul, que deixou 39 mortos. A família de uma das vítimas alega que as redes sociais (Google, Twitter e Facebook) desempenharam um papel de apoio ao terrorismo ao não remover e ganhar dinheiro com materiais do Estado Islâmico. Já no caso Gonzalez v. Google, o foco é outro atentado, esse ocorrido em novembro de 2015, onde atiradores do ISIS abriram fogo em um restaurante em Paris, matando 130 pessoas – entre elas Nohemi Gonzalez, uma estudante de 23 anos. A família alega que, ao recomendar vídeos relacionados ao Estado Islâmico, a Plataforma ajuda a radicalizar jovens e portanto funciona como assistente ao terrorismo.
Nesse caso, mais que no primeiro, quem está em julgamento é o algoritmo que decide o que deve ser recomendado. Ele deve estar protegido pelo Section 230?
Durante a primeira audiência, os juízes debateram se as redes sociais deveriam ser comparadas a bancos, restaurantes que servem terroristas, ou pessoas que entregam armas a criminosos.
O advogado do Twitter, Seth Waxman, argumentou que a empresa foi “explorada por terroristas”.
A ACLU, associação de advogados que defende a liberdade de expressão, fez uma defesa retumbante da Seção 230 no seu site:
“A Seção 230 permitiu que a expressão pública na internet florescesse. Criou espaço para os movimentos sociais; plataformas habilitadas para acolher o discurso de ativistas e organizadores; e permitiu que usuários e criadores de conteúdo em sites como Instagram, TikTok e Twitch alcançassem um público e ganhassem a vida. Sem ela, a internet será um lugar muito menos hospitaleiro para a criatividade humana, educação, política e colaboração. Se perdermos a Seção 230, perderemos a internet como a conhecemos”
A decisão deve vir até o fim de junho. Para analistas americanos, a Corte deve pedir ao Congresso que esclareça melhor as responsabilidades da Section 230.
Por aqui, o artigo 19 do Marco Civil da Internet também está sob escrutínio, em razão da tentativa de golpe de 8 de Janeiro e do debate acerca do PL das Fake News, sobre o qual tratei na última newsletter.
Além disso, está para ser julgado no STF um Recurso Extraordinário que insta a corte a decidir quanto à constitucionalidade do artigo 19 a necessidade de ordem judicial prévia para a responsabilização de provedores de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais “por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros”. A última movimentação, de 3 de março, mostra que também nesse tema o STF está se mexendo: O ministro Dias Toffoli, relator, marcou uma audiência pública híbrida “para ouvir o depoimento de autoridades e expertos” para o próximo dia 28.
O debate está se ampliando, como deve ser, e embora seja bastante espinhoso, é preciso não fugir dele. Tenho lido contribuições importantes para avançarmos no tema. Muitos pesquisadores, como Clara Keller, Laura Mendes e Yasmin Curzi, acreditam que, como a nova realidade econômica da internet, nossa lei ficou ultrapassada.
“Já naquele momento, o marco não dava conta de todos os desafios que se apresentavam. Hoje, com um mercado digital extremamente concentrado e com muitos aspectos da vida mediados por algoritmos e plataformas, a insuficiência é ainda mais evidente”, escreveram as autoras em um artigo recente na Ilustríssima. Elas alertam sobre a necessidade de “um regime adequado de responsabilização das plataformas, tratem os riscos decorrentes de seus modelos de negócios estrutural e sistemicamente”.
Entre as 8 medidas apresentadas por elas, estão obrigações de transparência, como a criação de um órgão regulador, e a criação de protocolos de crise – que deveriam ser acionados durante uma pandemia ou eleições, por exemplo. “A circulação de conteúdo ilegal não pode agravar situações de crises e de conflitos, ampliando danos à democracia e aos direitos humanos. São necessários instrumentos, como protocolos de crise, que permitam que as empresas e os governos cooperem na mitigação dos impactos desses conteúdos nesses contextos”.
Um bom começo seria os meios de comunicação entrarem no debate mais profundamente – e o Congresso tomar seu tempo para votar o PL da Fake News, permitindo que esse debate tão importante seja abraçado pela sociedade, assim como foi na época do Marco Civil. Éramos jovens e idealistas, eu me lembro muito bem. |
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