quinta-feira, 23 de março de 2023

 

Das redes de influência alternativa aos mensageiros: riscos à democracia e aos processos eleitorais

Assim como a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018, a eleição presidencial de Donald Trump em 2016 surpreendeu a muitos nos Estados Unidos, sendo dois exemplos de retorno ao debate contemporâneo de uma retórica divisionista, fundada num nacionalismo por vezes xenófobo e de tons conspiratórios. Logo após as eleições, o Channel 4 inglês, em reportagem, mostrou como um conjunto de mais de cem sites, curiosamente localizados na Macedônia, foi responsável pela produção ativa de notícias falsas com um único objetivo: caçar cliques de eleitores. No comando desses sites estavam adolescentes e jovens sem nenhum compromisso com a veracidade da informação, que apenas buscavam lucro (4).

Mais tarde surgiriam as denúncias envolvendo a Cambridge Analytica. A empresa teria abusado de dados extraídos de usuários do Facebook e seus amigos para traçar perfis psicométricos de eleitores, desenhando campanhas microssegmentadas e incentivando aqueles que rejeitavam Trump a não irem votar. Em conluio, Cambridge Analytica, Trump e Facebook violaram a news (5) e campanhas microssegmentadas são apenas parte da história. Tanto nos EUA como no Brasil, os fenômenos precisam ser entendidos em sua complexidade, já que é inegável que ambos os políticos construíram uma surpreendente base de apoio popular, ainda que alimentada por notícias caça-níqueis.

Para dar conta disso, a pesquisadora Rebecca Lewis (2018), em relatório para o instituto Data & Society, usa a expressão Rede de Influência Alternativa (AIN, na sigla em inglês) para falar da articulação política da direita dos EUA, que se desenvolveu principalmente no YouTube. Segundo ela, “indivíduos de instituições acadêmicas, de mídia e movimentos reacionários e extremistas, usaram as mídias digitais participativas para transmitir conteúdo para novas audiências, reempacotando ideias discriminatórias e, com frequência, de um fanatismo intolerante”.

Os criadores de conteúdo partiram das mesmas táticas dos influenciadores digitais que anunciam marcas para estabelecer um sistema alternativo de notícias, levar suas ideias a novas audiências e lucrar com esse conteúdo. Lewis dá bastante peso ao uso dessa estratégia por meio do YouTube, afirmando categoricamente que a plataforma é “construída para incentivar o comportamento desses influenciadores políticos”. Esses agentes, assim como qualquer influenciador digital que pretende construir fama e sustentar-se financeiramente fazendo uso dessas plataformas, aprenderam a extrair o máximo possível das características técnicas do YouTube, oferecendo em troca o privilégio de se tornar a base de uma rede de informação alternativa – de péssima qualidade, ressalte-se – à mídia tradicional.

Nota-se uma ação coordenada entre agentes da extrema direita e que conseguir suporte material para essa rede é apenas um dos itens da agenda. Existe uma aliança entre diferentes matizes do pensamento conservador que alimenta uma colaboração voltada ao impulsionamento coletivo de um grupo mais amplo. Uma das maneiras descritas de se fazer isso são as aparições recíprocas de convidados nos canais que fazem parte dessa rede, como explica Rebecca Lewis: “pessoas autoidentificadas como conservadoras podem desaprovar o extremismo de extrema direita, mas, ao mesmo tempo, receber nacionalistas brancos como convidados em seus canais”. Segundo ela, essa colaboração gera uma promoção cruzada de ideias que forma um campo comum intertextual mais ampliado.

Há tempos o algoritmo do YouTube vem sendo acusado de promover a radicalização como um subproduto da busca pela atenção dos usuários. Quanto mais minutos os olhos estão na plataforma, mais lucros. As sugestões do próximo vídeo a ser visto correspondem a 70% das visualizações de conteúdo no YouTube, ou seja, são direcionadas pelo algoritmo.

Guillaume Chaslot, ex-engenheiro da empresa, é hoje um dos críticos mais enfáticos desse sistema de recomendações. Quando era um dos responsáveis pelo desenvolvimento do algoritmo, ele conta ter ficado impressionado com as táticas usadas para fazer com que as pessoas passassem mais tempo na plataforma, o que o levou a pressionar a empresa por mudanças. Após sua demissão, Chaslot se dedicou a demonstrar como as recomendações sempre tendem à radicalização como meio para produzir engajamento. Alguém que começa a assistir vídeos jornalísticos neutros é levado a outros mais controversos e extremos e a teorias da conspiração (Lewis; McCormick, 2018).

Zeynep Tufekci (2018), socióloga de tecnologia especialista nessa intersecção com a política, compara o consumo noticioso no YouTube com uma dieta sem restrições. Tendemos a gostar de gordura, sal e açúcar e a nos acostumarmos com as quantidades. A plataforma seria o restaurante que cada vez pesa mais a mão nesses ingredientes, para nos manter sempre atraídos, sem se importar com a nossa saúde.

No Brasil, justificadamente, foi dada muita atenção – exceto pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (6) – ao uso do WhatsApp nas eleições de 2018. No entanto, o aplicativo não explica sozinho a história da eleição de Bolsonaro. Bem antes do período eleitoral, já se notava no ecossistema das plataformas de intermediação de conteúdos, de busca e das redes sociais comerciais no Brasil dois elementos também presentes no contexto estadunidense.

Notícias caça-cliques abundam desde a popularização do Google AdWords (hoje Google Ads), o sistema automatizado de recompensas financeiras usado pela maioria das páginas com fins comerciais e pelo YouTube. Mas elas prosperaram mesmo com o crescimento do Facebook, que ofereceu uma plataforma de troca de mensagens e produção de conteúdo em que títulos sensacionalistas de notícias são trocados furiosamente. Não na Macedônia, mas no fundo do quintal de empreendedores brasileiros inescrupulosos, foram criados sites especializados em todo tipo de notícia mentirosa capaz de mobilizar audiências a compartilhar links.

Do mesmo modo, a Rede de Influência Alternativa brasileira repete muitos dos elementos, das estratégias, dos temas e até mesmo dos personagens da sua colega do norte. Celebridades televisivas e astros do rock do passado emprestaram sua popularidade a uma gama variada de personagens em vídeos e debates ao vivo no YouTube. Não há sobre essa rede brasileira um mapeamento tão detalhado como o de Rebecca Lewis, mas não é difícil encontrar uma troca cúmplice de relações, mensagens e participações em vídeo entre um espectro bastante amplo de personagens da direita, indo de conservadores mais tradicionais a figuras descaradamente extremadas, incluindo homofóbicos, militaristas pedindo intervenção e teóricos da conspiração.

Talvez valha dar relevo especial, no contexto nacional, a uma conexão com a mídia tradicional de massa, que nos Estados Unidos se restringiu quase exclusivamente à citada Fox News. Nos anos de esquerda no poder, principalmente após as acusações sobre o mensalão, mas principalmente na sequência da crise global de 2007-2008, o antipetismo ganhou um espaço cada vez maior na grande mídia. Comentadores políticos, articulistas, jornalistas e até mesmo veículos vão subindo o tom e seguindo uma linha editorial contrária ao governo – antes vista tão explicitamente apenas na revista Veja. Alguns, como Reinaldo Azevedo e Diogo Mainardi – não por acaso duas figuras popularizadas pela semanal –, ganham espaço e destaque justamente ao subir o tom dos ataques. No dial, a maior rede de rádios do país, a Jovem Pan, aprofunda sua linha política à direita, às vezes abraçando o extremismo. Mais tarde, figuras como o historiador Marco Antonio Villa e o jornalista Azevedo seriam atacados pelos mesmos extremistas com quem flertaram ao se chocar com o avanço do fascismo no governo.

É preciso entender o fenômeno do WhatsApp nas eleições de 2018 com base nesse ecossistema múltiplo, que mistura links para notícias caça-cliques (e falsas), vídeos do YouTube, administração invisibilizada e fragmentos da imprensa tradicional. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desenvolveu, em 2018, um monitor de WhatsApp, tentando acompanhar, em tempo real, centenas de grupos de discussão política criados pelos usuários do aplicativo (Resende et al., 2019). Desde sua chegada ao mercado brasileiro e sua popularização, o WhatsApp e seus grupos de discussão já vinham mostrando seus efeitos no debate político nacional, sendo o veículo perfeito para a disseminação de notícias falsas muitas vezes absurdas. Na eleição de 2018, revelações feitas pela Folha de S.Paulo apontaram o uso em massa do aplicativo, com disparos patrocinados – similares aos feitos com objetivos comerciais para agências de publicidade – que chegaram à casa das dezenas de milhões de reais gastos por “patrocinadores” da candidatura de Jair Bolsonaro, em flagrante violação da lei eleitoral.

O trabalho dos pesquisadores da UFMG mostra uma articulação complexa de usuários administradores na criação e no gerenciamento de grupos de debate político no sentido de controlar e pautar as conversas. Foram identificados aglomerados de grupos, que têm membros em comum, com indícios de ação coordenada entre eles. O usuário comum, no entanto, não consegue ver essa articulação sorrateira entre membros de diversos grupos e supõe estar num grupo autêntico, dialogando com pessoas honestas. O controle é invisível, o que revela uma assimetria de poder entre esses membros. Na prática, o WhatsApp se torna o pior tipo imaginável de rede social, pois sua arquitetura é completamente obscurecida.

O monitor de WhatsApp também contribui para examinarmos os conteúdos que foram mais compartilhados por essa rede de ação política invisibilizada. O que se notou foi uma ação de produção de conteúdos conservadores radicalizados, que já circulavam em sua versão um pouco mais amena na mídia tradicional. Entre eles, destaca-se a associação maliciosa entre a esquerda e corrupção, a vilanização da colaboração entre países da América Latina, uma distorção no debate sobre impostos e gastos públicos, o elogio acrítico e enganoso de políticas de privatização e um anticomunismo generalizado.

Em paralelo, aparece o conservadorismo de costumes com traços religiosos, ligando à esquerda cenas descritas como imorais e atentadoras aos supostos “valores familiares”, além da aprovação da ação policial violenta, ilegítima e violadora de direitos humanos como solução para o problema da criminalidade, nos mesmos moldes e usando da mesma linguagem dos programas policiais televisivos. Além de, claro, muita, muita informação falsa. Mais tarde, esse conteúdo vai ser despejado, então por usuários não maliciosos, em grupos de discussão que conectam o país todo, de familiares, amigos, colegas de trabalho, vizinhos, etc.

No cerne dessa instrumentalização do WhatsApp está o mesmo tipo de determinação econômica, a mesma lógica cúmplice do lucro a qualquer custo. Um dos principais motivos para a popularidade do WhatsApp no Brasil – e fator adicional no processo de desinformação derivado da propagação de notícias falsas – são as políticas de zerom rating, associadas aos planos de franquia. Graças a acordos entre as empresas de telefonia e as plataformas, consumidores de planos mais baratos, em geral pré-pagos, de acesso à internet, podem continuar a acessar e consumir dados trafegados em aplicativos como o WhatsApp, mesmo quando a pequena franquia a que têm direito acaba.

O que pode parecer uma vantagem ao consumidor, que ganha dados “de graça”, na verdade revela uma internet defeituosa, pela metade. Os consumidores acabam acessando somente o aplicativo, não tendo chance de checar a informação nem navegar livremente na web. Os grupos de WhatsApp viram uma espécie de canal de televisão, transmitindo conteúdo de entretenimento e noticioso de qualidade duvidosa. Em paralelo, surge um ecossistema de empresas de marketing de produtos e de opinião – como aquelas contratadas pelos apoiadores de Bolsonaro – especializadas em microssegmentar e alimentar grupos e usuários. A plataforma é conivente com esse processo, pois isso aumenta a penetração de seu produto e sua capacidade de capturar dados pessoais dos usuários, verdadeiro motor de seus lucros.

O que o retorno dos nacionalismos e divisionismos autoritários no século XXI nos ensina é que sistemas tecnológicos, como a internet e a web, não são essenciais ou inerentemente democráticos (ou antidemocráticos). Um dos equívocos da transição para o século atual foi nos inebriarmos com as possibilidades anunciadas para essas tecnologias, em muitos momentos abandonando o exame crítico e um acompanhamento das transformações no entorno social de desenvolvimento.

Tecnologias trazem consigo uma materialidade importante que as limita ao mesmo tempo que oferece possibilidades. Mas as tecnologias se tornam efetivas quando em ação e no social. Se o norte de nossa sociedade é o sistema capitalista e o lucro, as tecnologias tendem a ser guiadas nesse sentido, de exploração da força de trabalho e de produção de processos de espoliação. Se o ambiente político e ideológico é o do neoliberalismo, em que qualquer tentativa de regulação é repelida em favor da liberdade das empresas, pior ainda.

As possibilidades trazidas pela internet e pela web para o fortalecimento do debate democrático não estão mortas, mas têm sido silenciadas. A combinação da cultura de empreendedorismo do Vale do Silício com a contracultura foi um passo decisivo para transformar ideias sobre cooperação e solidariedade em elogios à competição e ao egoísmo individualista (Evangelista, 2014). É uma lógica que faz parte do próprio neoliberalismo, colocar a si mesmo como único caminho consequente, dada uma determinada natureza humana que seria voltada à maximização dos ganhos individuais.

As plataformas se estruturam para aproveitar a competição de todos contra todos, numa sociedade do trabalho precarizado e eventual, fluido e em fluxo. Competição por curtidas, compartilhamentos, visualizações e, quem sabe, um contato para um “freela” ou uma oferta de post patrocinado em troca da exposição de si. A comunicação e a informação, que tomamos historicamente como essenciais para a saúde da democracia, são instrumentalizadas de trocas assimetricamente regulado pelas plataformas. Nesse contexto, a política então se transforma da arte de compatibilização de interesses diferentes de grupos e indivíduos (interesses estes expressos em torno de racionalizações sobre o bem comum coletivo) para uma questão de força e poder digital sobre indivíduos fragilizados, fragmentados e monitorados.


Notas:

(1) A expressão “homem democrático” é registrada por Fred Turner (2013) como sendo utilizada entre intelectuais estadunidenses na primeira metade

do século XX. Ele seria o oposto do homem totalitário e serviria de base para uma sociedade democrática, que seria mais tolerante em relação a diferenças

raciais, sexuais e culturais. São reflexões que se inserem no espírito da época de considerar que a personalidade dos indivíduos e a cultura de uma nação se relacionariam.

(2) Referência a investidores que aplicam em empresas com alto potencial de crescimento em troca de participação acionária. Modalidade comum de financiamento para startups (N. do E.).

(3) Sobre esse tema, ver o capítulo “Os mercados de dados pessoais”, de Flávia Lefèvre.

(4) Sobre este assunto, ver reportagem do Channel 4 News, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZusqgWUNFG4. Acesso: 28 abr. 2022.

(5) O uso do termo fake news é controverso, pois comunicadores acreditam que ele encerra uma contradição entre termos: se é notícia não pode ser falsa. Porém a expressão é útil porque mostra como uma das técnicas utilizadas para se dar credibilidade à desinformação passa pela cópia da estrutura noticiosa. A mentira, para se passar por verdade, copia a forma de um gênero textual com credibilidade histórica.

(6) Diversas reportagens demonstraram, durante o período eleitoral, que o WhatsApp estava sendo usado de maneira ilegal por algumas candidaturas, que obtiveram dados de eleitores, em violação do regulamento eleitoral. Ainda assim a atuação do TSE foi tíbia e não impediu que as ilegalidades continuassem.



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