segunda-feira, 13 de março de 2023

 
 

Eu, uma escrava dos robôs


Sim, chegaremos ao Chat GPT. Mas não hoje. As implicações do uso de inteligência artificial para nossa democracia é um tema que deve preocupar qualquer pessoa que observa e reflete sobre o estado das coisas humanas na era digital. Mas para isso vou ter que estudar um pouco e brincar um pouco com a besta – aguardem, que virá. 

E, para começar essa reflexão sobre as máquinas que aprendem sozinhas, achei melhor discorrer sobre um fato irreversível: queridos leitores, nós já trabalhamos para robôs. O tempo todo. E vou explicar contando como o meu trabalho, como jornalista, foi mudando ao longo da última década. 

Quando fundamos a Agência Pública, há exatos 12 anos, nosso objetivo era simples: vamos fazer reportagens investigativas e distribuí-las livremente, gratuitamente, sob licença creative commons. Naquela época, chegar ao público não era problema. Estávamos no auge do Facebook, e quando publicávamos, em média, uma reportagem por semana sobre temas até então pouco abordados como machismo, racismo no poder judiciário, conflito de terras, isso atraía enorme interesse. Tudo viralizava. Um post publicado na nossa página era entregue a pelo menos uns 20% das pessoas que nos seguiam. Foi uma era bonita. Canais como o Mídia Ninja cresceram exponencialmente, chegando a mais de 1 milhão de seguidores no meio dos protestos de maio de 2013, equiparando-se a grandes jornais tradicionais. 

Pouco depois, algo mudou no algoritmo. Todos percebemos, mas ninguém nos deu uma explicação. Foi a primeira vez que eu entendi, com horror, que os robôs que decidem quando e como nosso jornalismo será entregue podem mudar de um dia para outro, e que isso afetaria profundamente como nosso jornalismo impacta a realidade. De uma semana para outra, menos de 5% das pessoas que seguiam nossa página passaram a receber nossas matérias no seu feed. Para chegar a quem já nos seguia, teríamos que pagar para impulsionar o conteúdo. (Sim, isso aconteceu mais ou menos na época em que o Facebook abriu suas ações no mercado)

De lá pra cá, passamos por isso muitas vezes. Em um dado momento, o Facebook anunciou que o algoritmo iria promover vídeos longos, bem feitos, que informassem o público. E lá fomos nós, contratamos uma pessoa para fazer vídeos, investimos em videorreportagem, apenas para vermos os robozinhos mudarem de ideia pouco tempo depois. Tivemos que desmobilizar a equipe. Investimento perdido. E nenhuma explicação sobre porque ou como mudou mais uma vez o maldito algoritmo. 

 

Falei até agora sobre o Facebook, mas a verdade é que todas as plataformas agem da mesma maneira obscura e autointeressada. O que é mais constante – e isso ficou ainda mais claro com a compra do Twitter por Elon Musk – é que as regras são absolutamente mutáveis, de maneira totalmente aleatória, sem aviso prévio, e de acordo com o que dizem os robôs sobre o que faz as pessoas ficarem mais tempo grudadas na tela, e a vontade de quem está no topo, claro.      
 
   

(Elon Musk, gostaria de lembrar, mudou o algoritmo para mostrar mais dos seus posts para os seguidores do Twitter).

Para dar uma dimensão de grandeza: até alguns anos atrás, o Facebook era a rede que mais trazia leitores para todos os sites de jornalismo. Era como se fosse a capa do jornal, o local onde todo mundo recebia a informação sobre o que importava. Quando lançamos o Truco, o primeiro projeto de fact-checking independente do Brasil, em 2014, alcançamos quase 80 mil interações pelo Facebook em um só dia – pessoas compartilhando, comentando ou dando “like” na página. Há duas semanas, a reportagem do Estadão sobre as joias que Bolsonaro tentou trazer ilegalmente para o país, no valor de 16,5 milhões, teve cerca de 7 mil interações na plataforma. 

Isso é fruto da decisão do Facebook de reduzir o papel do jornalismo na plataforma. Hoje, a maior rede social do Brasil leva pouca gente para as páginas de jornalismo. 

Há ainda outro espaço que funciona como funcionavam antigamente as capas dos jornais, um grande mural que chama a atenção do público sobre as histórias que são importantes num determinado dia. São as ferramentas de busca. O Google. 

A partir da reorganização do conhecimento humano pelo Google, bilhões e bilhões de páginas disponíveis a quem quiser buscar uma palavra, surgiu o ominoso termo “SEO”, Search Engine Optimization (otimização para ferramentas de busca). Trata-se de uma série de regrinhas que ninguém sabe muito bem como funcionam, pois são fluidas, para ajudar o seu conteúdo a aparecer mais em cima na lista do Google. Nesse caso, os robozinhos rejeitam, por exemplo, títulos mais poéticos, como “Na hora de fazer não gritou”, uma das reportagens históricas da Pública sobre violência obstétrica, e exigem que você coloque títulos objetivos e que tragam palavras que estão já na mente das pessoas. Existem várias ferramentas que analisam se o seu conteúdo está “apropriado” para aparecer bem na busca do Google. Eles chegam a dizer que os parágrafos estão muito longos, que você deveria colocar intertítulos aqui ou ali, que as frases tinham que ser mais curtas e diretas. Inventam um jeito de escrever que é o dos robôs e não o nosso. 

E não seguir essas regras tem consequências graves. Por exemplo: descobrimos, em algum momento da nossa trajetória, que nosso site era penalizado pelo Google porque, como nossas reportagens são republicadas por uma rede de outros sites, gratuitamente e sob licença creative commons, o robozinho achava que nós estávamos copiando o conteúdo de outro lugar. O robozinho não entende a lógica do compartilhamento e da colaboração sobre a qual construímos a Pública ao longo desses 12 anos.  E vejam só: se o algoritmo é burro o suficiente para não entender que a reportagem original é da Agência Pública, e portanto nosso link deveria estar lá no topo – bem, a culpa é nossa. 
  
O SEO matou a poesia no jornalismo, e não há nenhum remédio a não ser se curvar a ele. 
  
No meio disso ficamos nós, jornalistas, que perdemos a tranquilidade de focar apenas na qualidade do produto que a gente entrega. Temos que passar cada vez mais tempo estudando e observando como funciona esse ou aquele algoritmo. Criamos equipes inteiras que trabalham para robôs, que passam seus dias tentando entender por que uma frase funcionou e outra não funcionou para agradar aos robôs que fazem a mediação entre o nosso conteúdo e o público. Eu como diretora executiva, fui virando um pouco escrava dos robôs, dedicando parte das minhas horas a tentar entendê-los, acompanhar cada nova mudança não anunciada, pensar junto com a equipe soluções para a tarefa de levar o nosso jornalismo para mais longe. 

Agora, sejamos pragmáticos. Não há caminho de volta. Elencar conteúdos é uma medida essencial se uma plataforma tem que entregar algum cardápio de informações que faça sentido para o usuário. Haverá critérios, haverá penalizações e haverá conteúdos que chamam mais a atenção do que os outros. No final de fevereiro, a ACLU (American Civil Liberties Union) fez uma bonita defesa do rankeamento do Youtube pelos robôs como algo que deve ser protegido pelas leis de liberdade de expressão – falei desse caso na newsletter da semana passada. É interessante, talvez a primeira vez que se busca equivaler a decisão de robôs sobre conteúdo à curadoria humana como protegida pelas leis humanas.     

Como bem explicou a professora Letícia Cesarino, a curadoria na internet plataformizada é uma mistura, uma amalgamação entre a vontade dos povos e a vontade das máquinas. Quando você busca no Google, um pouco quem dita o caminho que você vai percorrer é você, e um pouco é o algoritmo, com base no que você já pesquisou, no que outras pessoas parecidas com você pesquisaram, e com base, claro, em quem paga para aparecer de maneira mais proeminente. Existe, sim, possibilidade de mediação que não seja apenas pessoa-robô-capital: uma regulação que obrigue, por exemplo, que uma porcentagem do conteúdo deveria ser de jornalismo de qualidade, ou que determinada porcentagem dos resultados têm que ser nacionais. Isso tudo é possível. Mas a mediação seguirá sendo comandada por robôs. Essa é a realidade do nosso tempo. 

E isso vai além da minha nova função, como jornalista-escrava-de-robôs. Os robôs já decidem hoje quem ganha visibilidade e, portanto, capital social e dinheiro. Quem vai ser o novo influenciador que vai ficar rico. Qual será a nova banda que vai explodir com sua música-chiclete. E cada vez mais, qual o político que vai ganhar a eleição e, no meio da enxurrada de informação, permanecer na cabeça e no coração do eleitorado até a próxima eleição. Foram os algoritmos que levaram, no dia Internacional da Mulher, a triste demonstração de transfobia do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) aos assuntos mais comentados. Ele ganhou, os robôs ganharam – os robôs sempre ganham quando há escândalo, pois são oportunistas e dinheiristas, não importa qual escândalo. A nossa humanidade, mais uma vez, perdeu. 



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

 

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