quinta-feira, 23 de março de 2023

 

A desregulação e concentração do broadcast e a esperança nas redes digitais

Se, logo após as Grandes Guerras, havia um consenso mundial forte sobre a importância da pluralidade dos meios para evitar o retorno do totalitarismo, os anos de ascensão do neoliberalismo contribuem para uma transformação nesse cenário. Durante os anos 1970 e 1980, instaurou-se um clima geral favorável à desregulamentação em todos os setores da economia. Isso acabou por atingir o setor de comunicações nos países ocidentais, erodindo-se um ecossistema midiático mais saudável, ainda que imperfeito, que garantia algum nível de diversidade. É claro que um processo como esse não se desenvolve historicamente sem a ação concreta de atores interessados. E talvez um dos mais representativos seja Rupert Murdoch.

A história profissional de Murdoch começa na Austrália, como herdeiro de um jornal local. A partir dessa base, apostando em conteúdo sensacionalista e de entretenimento, e fazendo uso de seu veículo para eleger políticos de seu interesse, o empresário compra algumas publicações locais e funda, em 1964, o primeiro jornal nacional australiano, The Australian. De lá, expande para o Reino Unido, onde apoia a eleição de Margaret Thatcher como primeira-ministra e, em troca, recebe vistas grossas para sua expansão monopolista pelo país. Os conservadores ainda deixam passar o drible de Murdoch na regulação da emissão de sinais de TV por satélite: operando de Luxemburgo, faz o sinal de sua Sky Television chegar a solo britânico. A maré muda quando o partido de Thatcher tenta colocar freio em uma maior expansão do australiano no setor de TV, o que o faz apoiar o “novo trabalhismo” neoliberal de Tony Blair já nos anos 1990, ajudando a elegê-lo.

Nos EUA, a trajetória de Murdoch foi parecida. Primeiro uma proximidade com um círculo de consultores do então presidente Ronald Reagan, incluindo Roger Stone – que mais tarde se tornaria amigo e assessor do futuro presidente Donald Trump. Nos anos 1980, Murdoch já era proprietário do tabloide sensacionalista The New York Post. Com isso, conseguiu cruzar a propriedade de jornais com estações de TV. Mais tarde, o governo de George Bush facilitaria a entrada da 20th Century Fox, de Murdoch, no time das grandes emissoras. Nos anos 1990, a proximidade com o então prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani – que mais tarde se tornaria advogado de Trump –, ajudaria na briga comprada com a Time Warner. Na época, Murdoch lutava para que o canal de notícias 24 horas Fox News (uma versão conservadora da CNN, de propriedade da Time Warner) fosse oferecido pelo serviço de TV a cabo da concorrente.

Mas se o ambiente era de concentração e fusão nas operações da velha mídia, a internet parecia trazer um conjunto promissor de oportunidades. Brigar contra jornais e TVs parecia coisa do passado, o negócio seria apostar nessa nova infraestrutura que logo se espalharia pelo globo – oferecendo velocidades cada vez maiores de transmissão. A nova rede parecia oferecer todas as soluções que se podia pedir: infinitos canais de transmissão e recepção, horizontalidade completa, hibridação de todo tipo de mídia em uma só plataforma. O site de qualquer grande empresa de mídia estava tão ao alcance de todos quanto qualquer iniciativa de mídia alternativa. Se eles detinham o poder da publicidade e o dinheiro para contratar profissionais da notícia, os movimentos sociais progressistas detinham a força da militância no calor das ruas e o uso esperto das estratégias de colaboração.

Talvez nenhum movimento tenha sonhado tão alto e despertado tanto as imaginações de uma nova ordem comunicacional revolucionária quanto o movimento software livre. Para fazer frente à onda de mercantilização do software que, no fim das contas, significava alienar os trabalhadores – programadores do produto de seu trabalho –, alguns hackers visionários começaram uma cadeia colaborativa que usava aquilo que os oprimia – as (então) novas leis de propriedade intelectual – para superar os novos obstáculos a uma produção livre coletivizada. Conectados pelas novas redes, passaram a usar de seu tempo livre para produzir softwares de maneira colaborativa, cada um ficando a cargo de um fragmento do trabalho.

Esse código seria de ninguém e de todo mundo – qualquer um que possuísse uma cópia do programa seria livre para lê-lo, estudá-lo, usá-lo e alterá-lo como quisesse. Com liberdade seria possível construir uma rede colaborativa de trabalho comunitário capaz de enfrentar e superar os melhores produtos das grandes corporações de software. E algumas versões das licenças livres continham o verdadeiro pulo do gato, o copyleft. Isso significa que os trabalhos derivados daqueles que contavam com uma licença copyleft precisariam ser licenciados da mesma forma. Isso impediria que alguém fizesse uso do trabalho que alguns oferecem à comunidade, transformando-o em sua propriedade pela modificação da licença. E criaria uma rede de colaboração que tenderia a se tornar cada vez mais forte porque, para usar daquele trabalho que me é oferecido colaborativamente em minha produção, eu me comprometeria a licenciar o produto final também com uma licença livre, fortalecendo o sistema como um todo. Quanto mais software livre disponível, mais software livre tenderia a ser produzido.

O sucesso do movimento foi incontestável. Tão forte que o setor empresarial, para adotá-lo em sua versão mais conservadora e menos resistente à alienação, renomeou-o como “software aberto” e passou a fazer campanha pelas licenças não copyleft (mais fáceis de serem aproveitadas e tornadas proprietárias). A abertura virou pré-requisito mais para a competição do que para a colaboração entre desenvolvedores. A transparência – a princípio de códigos, mas depois também de vidas em redes sociais – virou um valor em si mesma, sem uma reflexão muito aprofundada ou uma crítica consistente. Mais tarde, as grandes empresas de tecnologia subverteriam a ideia de compartilhamento e transparência e usariam a autoexposição dos indivíduos como principal combustível de uma economia da vida interior (Ball, 2009).

O fato é que a história de sucesso e assimilação do software livre pelos grandes negócios ajuda a explicar como partimos, de maneira otimista, de promessas de liberdade e apropriação de meios no início da internet para o momento atual, em que essa tecnologia (que já não é tão nova e que tanto deve à busca do fortalecimento da democracia) aparece associada com a volta do autoritarismo. Não somente os códigos produzidos pelo movimento, mas ideias e valores foram incorporados produtos que fizeram a fama e a fortuna das grandes plataformas que hoje controlam a rede. Como uma onda que vai e vem, o impulso de abertura e descentralização foi transformado em negócio e subvertido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário