quinta-feira, 23 de março de 2023

 

Big Techs: um pesadelo pior que a velha mídia

No Youtube, o algoritmo já controla 70% das visualizações. O WhatsApp tornou-se uma caixa-preta. Debate público é implodido: vale tudo para obter “engajamento” – até alavancar a ultradireita. Será possível descolonizar as redes sociais?

Imagem: Franziska Barczyk/MIT Tchnology Review

Título original: Nascidas para lucrar: como as grandes plataformas controlam o debate online e ameaçam a democracia. Este artigo integra o livro Quem Controla a Mídia? Dos velhos oligopólios aos monopólios digitais, do coletivo Intervozes, publicado pela editora Veneta, parceira editorial de Outras Palavras. Quem apoia nosso jornalismo de profundidade tem desconto de 20% em todo o catálogo da editora. Saiba como apoiar

O ressurgimento global de movimentos autoritários que perseguem as minorias parece espelhar a primeira metade do século passado, que foi marcada na carne pela ascensão de diversas modalidades de fascismos, autoritarismos e populismos divisionistas fundados na construção de mitos sobre uma origem comum de certos povos e em teorias conspiratórias sobre inimigos internos e externos. Na época, como agora, ganhava importância o debate sobre o papel das tecnologias no fomento ou no oferecimento de meios para o surgimento desse tipo de fenômeno.

A questão central, naquele momento, fosse talvez mais clara: temia-se que as tecnologias de emissão de sinais de radiofrequência de “um para muitos” (broadcast) pudessem ser instrumentalizadas para a arregimentação de massas hipnotizadas por líderes carismáticos. Os indivíduos eram entendidos em sua fragilidade perante a comunicação de massa. Assim como a propaganda era empregada para vender produtos, receava-se que a comunicação de “um para muitos” fosse utilizada para vender ideias de uma maneira tão eficiente que o receptor as imaginaria emergindo de si (Turner, 2013).

Assustados com o fascismo italiano, com o nazismo alemão e com movimentações semelhantes acontecendo ao redor do mundo, incluindo o território estadunidense, intelectuais e artistas de áreas e trajetórias diferentes se perguntaram que novos aparatos – técnicos, artísticos e intelectuais – seria preciso construir de modo a formar um homem democrático (1). Como fazer para que a loucura autoritária dos líderes populistas não fosse transmitida pelas ondas de radiofrequência? E, ainda que assim fosse canalizada, como constituir um humano capaz de resistir a isso por meio da mobilização inteligente de outras fontes de informação?

Procedentes ou não, esses temores levaram ao desenvolvimento de todo um conjunto de tecnologias, procedimentos, regulações e processos visando à construção (ou manutenção) de cidadãos democráticos. Para garantir o funcionamento satisfatório de um Estado ocidental liberal seria necessário (Fraser, 1990), por um lado, a constituição de um ambiente informativo equilibrado, se possível alimentado por conhecimentos científicos de ponta, em que os cidadãos pudessem tomar conhecimento acurado sobre um mundo que vai além de sua experiência imediata.

Ao mesmo tempo, tanto como efeito desse sistema quanto como uma espécie de sua salvaguarda, seria necessária a constituição de um sujeito crítico, de formação educacional e cultural – num sentido de cultura que vai além do consumo de arte e entretenimento – capaz de filtrar analiticamente a informação que recebe, formando seu próprio juízo.

A importância social do jornalismo foi entendida com base nessas necessidades democráticas. Foi pensando nelas que diversos regramentos em relação à propriedade privada dos meios de comunicação e à distribuição democrática do uso do espectro eletromagnético – a distribuição dos sinais de rádio e TV – foram desenvolvidos. Seria necessário um ambiente de pluralidade informacional para que os indivíduos, seja atuando como consumidores no mercado de informação, seja como detentores de um direito de se informar por canais públicos, pudessem adquirir informações de modo a atuar como cidadãos soberanamente, exercendo suas liberdades de modo efetivo. Bem formados e com acesso a meios plurais, seriam capazes de atuar criticamente, evitando-se, assim, a repetição do flagelo totalitário.

As leis de regulação sobre a propriedade dos meios de comunicação são filhas diretas desses temores. E a internet também, apesar de ela apenas se concretizar anos mais tarde. Os anos que se seguem às Grandes Guerras foram férteis em projetos, debates e desenvolvimento teórico em torno da importância da liberdade de informação para a democracia (Breton, 1995). Quando a internet, mesmo antes da WWW (World Wide Web), começa a chegar ao público geral, é recebida como a estrutura perfeita para a comunicação horizontalizada e democrática. O clima foi de euforia. De fato, muitos dos técnicos que trabalharam pela constituição dos padrões e protocolos dessa rede participaram ou comungaram das mesmas preocupações em relação à capacidade técnica da rádio e da televisão de restringir a liberdade de expressão.

De certa forma, sempre se soube quais eram os passos sociais necessários para a constituição de uma esfera pública zelosa da democracia e para a formação de indivíduos democráticos: oferecer canais plurais de expressão de diversos setores sociais e manter um sistema educacional que buscasse a diversidade. Mas os obstáculos materiais nunca foram pequenos.

“Democracia demais” favorece a denúncia da desigualdade, ou seja, ajuda na formação de sujeitos que percebem a injustiça na distribuição dos recursos disponíveis. Além disso, no capitalismo, nada escapa de se tornar um meio de produção, uma máquina de transformar tudo em mercadoria, inclusive as artes e a comunicação. Notícias e opinião são transformadas em produtos a serem vendidos no mercado ou em produtos que servem para vender outros produtos. No fim das contas, a única maneira que sobra para sustentar a produção informativa, artística e cultural – que inclui a vida dos seres humanos que a fazem – acaba passando, de uma forma ou de outra, pelos mecanismos de venda da força de trabalho próprios do sistema capitalista.

De repente a internet aparece como atalho para superar essas dificuldades e, até mesmo, para alguns, como uma tecnologia determinante com base na qual seria inevitável a superação das relações capitalistas.

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