quinta-feira, 23 de março de 2023

 

A internet na lógica dominante de comunicação

Abertos, dilacerados, expostos, vulneráveis e descentralizados ficamos nós, os pequenos pontos da rede. Fortes, cada vez mais opacos, capazes de vasculhar cada um de nós e se alimentar de nosso conhecimento e boa vontade ficaram as grandes plataformas. Como o sistema é globalmente direcionado pelo lucro e pela exploração do trabalho, essas empresas prosperaram ao canalizar os fluxos informacionais para si, extrair conhecimento e informação sobre eles e determinar a direção de quais fluxos atingirão quais audiências.

É um processo difícil de visualizar por entre as brumas das utopias cibernéticas de uma comunidade global compartilhando conhecimento, mas a análise histórica e conjuntural de uma das grandes plataformas da web da atualidade pode nos ajudar nesse sentido. Criado em fevereiro de 2005, o YouTube surgiu numa época em que a banda de conexão à internet e o acesso se alargavam. A promessa era de uma plataforma neutra e universal, capaz de servir de infraestrutura para o envio e a visualização de vídeos. Quase 15 anos depois, a ideia nem parece tão revolucionária, mas à época ela significava a concretização material do sonho de uma TV universal e múltipla. Era como se o espectro magnético se multiplicasse infinitamente, de maneira que todos pudessem ser uma estação de TV. Até o nome fazia referência a isso, ao antigo tubo das televisões analógicas.

O crescimento foi fulminante. Em meados de 2006 o site já abrigava mais de 65 mil produções e era o quinto mais popular do mundo, com 100 milhões de visualizações diárias. Em outubro do mesmo ano, o já gigante Google faz um movimento ousado para a época e compra a plataforma por 1,65 bilhão de dólares. Na época, um humorista fez uma comparação reveladora, ainda que equivocada. Citando o valor de privatização da mineradora Vale do Rio Doce, vendida por 3,3 bilhões de dólares, apenas duas vezes mais do que a plataforma, brincou: “É a época que estamos vivendo… Reservas gigantescas de minério sendo comparadas com uma reserva gigantesca de vídeos com adolescentes de sunga amarela fazendo dancinhas bizarras” (Evangelista, 2007).

O que nos chama a atenção na piada – talvez inadvertidamente e para além da desastrada privatização da Vale – é onde reside o valor do YouTube, que dá substância a uma venda de tamanha monta. Qual era – e como alcançou – um patrimônio que dá base a uma valoração tão rápida e tão extraordinária? O modelo de negócios inicial foi amplamente baseado na exploração de conteúdos enviados por usuários. Ainda que a empresa, naquele momento, não fosse lucrativa, os direitos sobre vídeos enviados por usuários e a atração ao site que estes exerciam foram fundamentais no dimensionamento desse valor. O Google não entrou só com dinheiro. O negócio foi fechado depois que a empresa apresentou acordos com três companhias de mídia que abdicavam de processos de violação de direitos autorais. Essa é a segunda faceta da atratividade da plataforma aos usuários: boa parte do conteúdo ali disponibilizado eram produções antigas, levadas ao site não pelos detentores dos direitos autorais, mas por fãs de todos tipos que compartilhavam a obra dos artistas de que gostavam.

Depois dos ataques ao Napster, ao BitTorrent e a outras iniciativas de compartilhamento de conteúdos entre os usuários, o YouTube aparecia como ferramenta de acesso e compartilhamento de filmes, músicas e programas de TV. Com isso, o risco legal de processo era transferido aos usuários. Embora a plataforma também fosse ameaçada legalmente, usuários individuais são a ponta mais vulnerável em eventual litigação, além de serem responsáveis pela seleção e pelo trabalho físico de fazer o upload do conteúdo.

Ideólogos da nova economia do compartilhamento alardeariam as vantagens de tais plataformas usarem os próprios usuários para produzir conteúdo, enquanto as empresas lucrariam com a venda de anúncios. Nesse sentido, a estratégia era clara. Assim como no software livre e na Wikipedia – cujo conteúdo livre era cada vez mais incorporado em plataformas comerciais –, as empresas buscavam maneiras de lucrar com o fluxo de conteúdos produzidos por outros sem necessariamente precisar ser titulares dos direitos autorais.

Estudando a evolução da indústria fonográfica desde o arranjo de mercado analógico tradicional, passando para o momento da abundância de conteúdos em plataformas como o YouTube, Leonardo Ribeiro da Cruz (2014) mostra como o risco e o investimento são transferidos das gravadoras para os músicos. Antes, cabia à indústria garimpar talentos, estabelecer contratos de cessão de direitos autorais, investir na produção e na promoção das obras e recolher os lucros por meio da venda de discos. Com a digitalização da música e a disponibilização das obras em plataformas como o YouTube, cabe aos artistas produzir a si mesmos e arrebanhar fãs para então eventualmente serem contratados por empresários que ficarão à cargo da promoção daquele artista e da venda de shows. A plataforma funciona como um intermediário que se alimenta desse fluxo e da disponibilização da obra de artistas que arcam com o risco de se colocar no mercado.

Mas a compra do YouTube pelo Google pavimentaria e potencializaria a proliferação de tantos novos modelos de exploração comercial dos fluxos quanto a imaginação dos engenheiros e venture capitalists (2) pudesse produzir. Desde o início dos 2000, o Google vinha elaborando um modelo que sustentaria seu oferecimento de serviços de busca na internet baseado numa espécie de leilão de público para anunciantes. Em sua forma atual, mais elaborada, ele faz uso de uma mineração exaustiva de todo tipo de dado a respeito dos usuários passível de ser extraído para oferecer essa informação aos anunciantes que quiserem pagar mais, de maneira a otimizar o retorno financeiro dos anúncios.

Não se trata somente de vender espaços na página para os anunciantes, mas de, no limite, ler a mente de quem faz a busca, tentando antecipar que conteúdo – e publicidade – pode interessar a essa pessoa, ainda que ela não tenha expressado exatamente aquilo. É uma abordagem diferente de usar apenas as informações inseridas na caixa de busca para encontrar aqueles termos em páginas publicadas na web. Passa-se a usar outros muitos dados daquelas pessoas que buscam (sexo, localização, navegador que está usando, gostos pessoais, etc.) para contextualizar, e entender melhor, aquilo que está sendo buscado.

Essa coleta e esse armazenamento de dados dos usuários, bem como a construção de perfis tendo em vista a predição e manipulação de seus comportamentos, tendo como fim último o uso econômico dessas informações, é o que tem sido chamado de capitalismo de vigilância (Zuboff, 2018). O conglomerado Alphabet, dono do Google, junto com a Meta (anteriormente Facebook) – que também é dona do Instagram e do WhatsApp – são as corporações líderes dessa nova lógica de acumulação capitalista.

Historicamente, o modelo de negócios que sustentou jornais e televisões comerciais tem se baseado na captura da atenção de telespectadores ou leitores e a consequente revenda dessa atenção a anunciantes. No modelo comercial, notícias ou produção cultural e artística servem de atrativo ao olhar, que, nos intervalos, é capturado para a venda de produtos. Emissoras e jornais usavam a extrapolação de dados estatísticos e de pesquisas por amostragem para entender quem era esse receptor da informação.

As plataformas mantêm esse interesse sobre a atenção do público (3). Como os olhos e os ouvidos estão em conexão com aqueles conteúdos, é possível vender anúncios relacionados. Mas a estrutura de construção e funcionamento da internet e da web permite uma quase transparência do público. As tecnologias que entregam o conteúdo também permitem a investigação sobre os rastros que informam quem são essas pessoas. Os smartphones, objetos extremamente pessoais, levados o tempo todo junto ao corpo e cheios de ferramentas capazes de capturar dados ambientais (som, imagens, localização, movimento), levam essa captura possível de dados para um outro nível.

O YouTube, assim como outras plataformas de intermediação de conteúdos e mídias sociais, usa essas informações coletadas para definir que conteúdos exibir para os usuários. É algo que as plataformas de broadcast nunca sonharam em fazer: personalizar o conteúdo a ser mostrado – ou produzido – em nível microssegmentado. Quem cumpre essa função de sugerir – ou impor, em alguns casos – os conteúdos a serem consumidos são os algoritmos, instruções sequenciais que automatizam processos de curadoria de conteúdo com base em informações sobre o usuário e sobre as produções a serem exibidas.

Quando o Twitter seleciona algumas mensagens dos contatos dos usuários que serão exibidas, é o algoritmo que está orientando esse processo. Quando o Facebook escolhe alguns posts, entre os diversos produzidos pelos amigos do usuário para povoar uma timeline, é o algoritmo que determina isso. O objetivo final não é só capturar a atenção, como a televisão já o fazia, mas agora se busca também engendrar um engajamento produtivo. O usuário perfeito não é aquele que só assiste ao mundo passar por sua timeline, mas o que se envolve na produção de mais conteúdo e, por consequência, mais informação sobre si mesmo – pois falar, escrever, clicar, mostrar-se significa se abrir.

Nesse jogo, a excitação constante do usuário é fundamental. Em plataformas como o Facebook, o conteúdo deve ficar acima da concordância silenciosa, mas abaixo da indignação tão desesperançada que imaginamos não haver discussão possível com o interlocutor. Um ambiente de interação desenhado para produzir esse tipo de engajamento a qualquer custo não é, claramente, o mais propício à construção de pontes políticas entre os sujeitos. A arquitetura da plataforma é, em última instância, definida para estimular o engajamento a qualquer custo, que, por sua vez, alinha-se com um modelo de negócios tendo em vista o lucro. Já o debate democrático e a política, por definição, devem derivar da conciliação de interesses coletivos.

Não exatamente pelos mesmos motivos, mas com base em uma lógica de excitação para a produção semelhante, o Instagram é conhecido por ser especialmente prejudicial à saúde psicológica de seus usuários (Scott, 2018). Na plataforma, o uso típico leva a uma curadoria de imagens da própria vida – e do próprio corpo – que, quanto menos real, mais costuma despertar reações positivas dos seguidores. E esse é um ciclo que se retroalimenta, dada a própria natureza mimética de comportamento nas redes sociais, com perfeição encenada estimulando mais perfeição encenada, e alguns distúrbios no caminho.

Um relatório da Sociedade Real Britânica de Saúde Pública aponta para efeitos como solidão, ansiedade, depressão e impactos na autoimagem corporal. Seria incorreto atribuir aos criadores da plataforma um plano para torná-la o que é hoje. Mais realista é perceber a cumplicidade e facilitação dos modelos de negócios das plataformas e das redes sociais com esse jogo de cópia viral de comportamentos que mobiliza uma exponencialidade dos engajamentos, a despeito dos possíveis efeitos sociais e individuais nocivos.

Em alguns casos, o incentivo financeiro à viralização é inerente à própria plataforma. No Instagram, essa estrutura se formou paralelamente, com empresas de publicidade utilizando o número de seguidores apurado pela plataforma para determinar quantias a serem pagas àqueles que promovem marcas ou conteúdos.

É diferente do que ocorre com o YouTube, em que o dono do canal, além de também poder obter algum tipo de financiamento em agências de publicidade, pode ser remunerado diretamente pela exibição de anúncios segmentados embebidos nos vídeos pelos algoritmos da empresa. Em tese, trata-se de uma política bastante justa de divisão dos lucros obtidos pela exploração daquele trabalho autoral expresso no vídeo. O problema é que, sem regulação e automatizado por algoritmos que só visam à combinação entre gigantesca audiência segmentada e lucros, esse sistema se transforma em uma corrida pelo mínimo denominador comum. Ou pior.

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