Artigo
A reforma tributária e o último suspiro da proteção social
A reforma tributária em discussão na Câmara aprofunda as desigualdades
Davi Ribeiro

O Brasil não voltará a crescer de forma sustentável sem desconcentrar renda.
No
“debate nacional” protagonizado pelos donos do poder é necessário
insistir no óbvio. Foi o que fez o economista francês Thomas Piketty em
sua recente passagem por aqui: “O Brasil não voltará a crescer de forma
sustentável enquanto não reduzir a desigualdade e a extrema concentração da renda no topo da pirâmide social”.
Destacou que somos “um dos países mais desiguais do mundo”, só superados pela África do Sul e
por alguns países do Oriente Médio, segundo as medições do instituto de
pesquisa que dirige, o World Wealth and Income Database.
Para o autor de O Capital no Século XXI,
a saída passa pela correção da crônica injustiça do sistema tributário e
pelo aprofundamento das “políticas sociais adotadas nos últimos anos”. A
mediocridade da agenda de reformas no Brasil caminha, porém, na
contramão dos truísmos reafirmados por Piketty. Um dos
objetivos da radicalização do projeto neoliberal em curso é a destruição
do Estado Social inaugurado em 1988. No último país das Américas a
abolir a escravidão, argumenta-se que as demandas sociais da democracia
“não cabem no orçamento”.
Este processo de destruição pela asfixia financeira
está sendo encenado pelo “teto” dos gastos públicos até 2036, pela
ampliação da desvinculação constitucional de recursos para o gasto
social (de 20% para 30%); e pela reforma da Previdência, que deve
extinguir o direito básico à proteção na velhice.
O último suspiro da
proteção social provavelmente virá da reforma tributária em tramitação
no Congresso. Em primeiro lugar, ela não enfrenta as injustiças do
sistema de impostos. Nenhuma atenção é dada ao essencial, contrariando a
experiência de muitos países desenvolvidos há mais de um século:
alíquotas mais altas do Imposto de Renda,
combate às isenções para rendas de capital (como os dividendos pagos
pelas empresas a seus acionistas) e taxação sobre transações
financeiras, herança, patrimônio e grandes fortunas.
- Não adianta ignorar os alertas de Piketty (Foto: Pilar Velloso)
Em segundo lugar, a reforma extingue diversos
tributos (IPI, IOF, CSLL, PIS, Pasep, Cofins, Salário-Educação,
CIDE-Combustíveis, ICMS e ISS), a serem substituídos por um imposto
sobre o valor agregado de competência estadual (Imposto sobre Operações
com Bens e Serviços, IBS) e outro sobre bens e serviços específicos, de
alçada federal (Imposto Seletivo, IS).
A simplificação do sistema de
impostos é necessária. O problema é que os tributos constitucionalmente
vinculados para a proteção social estão sendo extintos e substituídos
por novos tributos sem vinculação. Caminha-se no sentido de desmontar as
bases de financiamento das políticas sociais asseguradas pela Constituição de 1988 (CSLL, PIS, Pasep, Cofins) e por legislações anteriores (Salário-Educação).
A concretização dessas mudanças fragilizará o financiamento da Educação
e o orçamento da Seguridade Social, afetando a sustentação dos gastos
em setores como Previdência Social, Assistência Social, Saúde e
Seguro-Desemprego.
Na prática, o “Teto de Gastos”, a
ampliação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e a reforma
tributária acabam com as vinculações constitucionais de recursos para as
políticas sociais. Esse fato acentuará a assimetria entre a captura de
recursos públicos pelo poder econômico e pela sociedade.
A história aponta vários exemplos nesse sentido.
Observe-se que desde a Constituição de 1934 tem prevalecido a
obrigatoriedade constitucional de se aplicarem no setor educacional
porcentuais mínimos das receitas de impostos da União, dos estados e dos
municípios.
A ditadura desobrigou os governos federal e
estaduais dessa vinculação. Em consequência, declinaram os gastos com
educação dessas instâncias.
Esse fato contribuiu para a
aglutinação de grupos políticos e ideológicos de diferentes correntes em
torno de um movimento reivindicando “mais verbas para a educação”.
Diante desse cenário, ocorre, em 1976, a primeira tentativa de aprovar
sua emenda nesse sentido, de autoria do senador João Calmon. Em 1983, a
Emenda Calmon foi reapresentada e aprovada pelo Congresso.
Posteriormente, a Constituição de 1988 restabeleceu de vez a prática,
inaugurada em 1934.
Outro exemplo emblemático é a experiência do
Sistema Único de Saúde no início dos anos 1990, quando o Ministério da
Previdência decidiu utilizar integralmente as contribuições de
empregados e empregadores sobre a folha de salários para cobrir os
benefícios previdenciários.
O buraco na saúde pública permaneceu até 1996,
quando o Congresso aprovou a Contribuição Provisória sobre Movimentações
Financeiras (CPMF). A área econômica do governo Fernando Henrique
Cardoso passou, no entanto, a utilizar os recursos conforme as
conveniências da gestão das contas públicas. Nesse cenário,
parlamentares defensores do SUS conseguiram aprovar, em 2002, a Emenda
Constitucional 29, a estabelecer vinculação dos orçamentos nos três
entes federativos.
E o que dizer da
Seguridade Social, cujos recursos constitucionalmente vinculados (basta
ler com atenção o artigo 195) são desviados para outras finalidades
desde 1989? Como se vê, para os donos do poder, vale tudo para capturar
recursos públicos. O que acontecerá com o financiamento da proteção
social num contexto em que a Constituição não o ampare?
A resposta é igualmente óbvia,
sobretudo após o País enveredar pela agenda de reformas “do mercado”,
recusando-se a ouvir o que diz Piketty e outros críticos. Pobres
“capitalistas” autofágicos, incapazes de “precificar” os custos
econômicos, políticos e sociais de não enfrentarem a abissal
concentração de renda no Brasil, com um sistema tributário mais justo e
progressivo, e com o fortalecimento da rede de proteção social.
* Professor do Instituto de
Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do
Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Política Social.
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