
Nos últimos anos, o jurista Pedro Serrano se converteu em um dos mais
competentes analistas sociais do país. Através do estudo aprofundado
das mudanças nas leis e nas constituições, Serrano entra no terreno da
formação das ideias e princípios, das mutações na opinião pública,
refletindo-se em um neoconstitucionalismo que visa erradicar os
princípios humanistas que regeram as Constituições no pós-guerra.
Na segunda-feira passada, Serrano proferiu brilhante palestra na Escola de Governo.
Abaixo, uma síntese do que foi dito.
A crise política atual não é apenas do modelo de Estado, mas do modelo de vida pós 2a Guerra.
No direito constitucional se confunde República com Democracia.
República significa a periodicidade do mandato. É um conceito que
explica toda a estrutura do Estado, das instituições, da estabilidade do
funcionário público aos cargos de confiança, subordinando tudo ao grupo
que foi eleito. Toda a estrutura foi pensada a partir dessa conceito.
Outra noção é da República a partir do conceito de bem público.
Ressurge, então, a ideia de democracia e da soberania popular, que refunda a ideia da República, a noção de bem público.
O primeiro ciclo democrático, logo depois das Revoluções francesa e
americana definiam um contrato social anterior ao Estado, que precedia
os governantes.
A idéia central do liberalismo político é que as pessoas têm o
direito de se levantar contra o governante que não respeitem o contrato
social.
Até então, a democracia significava o voto da burguesia, os que detinham a propriedade e a renda.
Por isso, as primeiras constituições do mundo visavam conter os
ímpetos das revoluções populares. Foi assim com a Constituição francesa,
limitando o coto censitário à burguesia; e a Constituição americana,
visando conter as leis dos estados, muitas delas beneficiando os
pequenos produtores.
Ao longo dos séculos houve transformações intensas através dos
mecanismos de resistência, que levaram gradativamente as mulheres, os
trabalhadores, os negros a conquistar espaço, marcadamente no final do
século 19, criando a ideia da democracia universal e do bem público no
sentido amplo.
Nesse período, as teorias política e jurídica democráticas tendiam a
fortalecer a ideia da soberania popular: democracia é a decisão tomada
pela autoridade investida para tal, que seguem determinados
procedimentos, respeitando direitos das minorias etc. É um sistema que
pressupõe a ideia de conflito social e político e visa compor os
conflitos através de ideias regradas.
O bem público é tido como bem do Estado, titularizados pelas
autoridades democráticas e guiados por determinados procedimentos e
pelos limites de autoridade que a Constituição estabelece.
Até então, a Constituição ficava no mesmo patamar das leis comuns.
A era do humanismo
As tragédias da 1ª e 2ª guerra geraram grandes problemas para a
humanidade. A 1ª Guerra Mundial foi causada pela democracia. A 2ª Guerra
demonstrou o grande problema simbólico, de regimes totalitários que
ascenderam pela via democrática. E irão se transformar em regimes
autoritários pela via das leis aprovadas pelo Congresso e convalidadas
pelo Judiciário.
Na Itália, várias leis produzidas na década de 20 levaram ao
fascismo. Na Alemanha, três meses depois de eleito, Adolf Hitler
promulgou a Constituição de Weimar que, no artigo 48 abria a
possibilidade de decretação do estado de exceção. O Parlamento aprovou e
o Judiciário aceitou.
Assim como no episódio do impeachment brasileiro, foi golpe no
sentido material, mas não no sentido formal. O nazismo e o fascismo eram
doenças da razão, movidos por ideias tidas como científicas e
valendo-se dos instrumentos democráticos.
O pós-guerra trouxe para o homem ocidental a perda do sentido tanto
da razão como da democracia, mostrando-se formas vazias que não
necessariamente significavam melhorias éticas e sociais.
Toda história do pensamento político e humano no pós-guerra, foi uma
busca de resgatar esse sentido. No Direito, as Constituições do
pós-guerra tentaram a recuperação dos princípios democráticos e
republicanos.
A Constituição deixou de ser vista apenas como conjunto de normas que
estipula autoridades e procedimentos e passa a ser conjunto de normas
que estabelecem conteúdos, opções morais e políticas que não são
colocadas à disposição das maiorias eventuais. E esses valores são os
chamados direitos humanos, negativos e positivos: os negativos, de
liberdades respeitadas e os positivos, das obrigações de realizar
direitos sociais.
O bem deixa de ser visto como elemento material. Bem púbico passa a
ser visto como elemento imaterial, de obediência aos direitos
fundamentais. Deixa de ser público, no sentido Estatal, mas do bem
comum.
No Ocidente desenvolve-se uma visão humanista da democracia como
sendo a convivência comum. As pessoas passam a assimilar a subjetividade
democrática, a tolerância, voltada para encontrar o senso comum, uma
forma de vida compartilhada; por isso os direitos sociais.
Não existe bem comum em uma sociedade com modos de vida diferentes, que não partilham das mesmas formas de vida.
E esses valores vão se espalhando nas relações pessoais, no respeito à
divergência, na solidariedade com a dor, na benevolência com o
adversário caído.
A truculência dos novos tempos
Agora, as novas formas do capitalismo levam a um divórcio entre
liberalismo econômico e político. O Capital passa a ter outra
conformação: capital financeiro-tecnológico-militar.
Necessita muito mais do Estado para poder se reproduzir. O Estado é o grande garantidor de todas as operações do mundo.
Esse modelo produz grandes desigualdades sociais e passa a exigir um
Estado mais autoritário, com maior repressão. Coloca em crise todo o
modelo de Estado do pós-guerra.
Introduz-se, então, o neoconstitucionalismo. Ingressa-se em um novo
período no qual entra em crise a ideia da Constituição, da República
como bem comum, de direitos sociais como fundamentais para a democracia.
É só conferir a ampliação do número de presos, de mortos. Aqui no
Brasil se tem a polícia que mais Mara e morre no mundo, 3.500
assassinatos por ano, 60 mil mortos pela violência, 60% dos presos sem
direito de defesa.
Não estamos mais na época dos governos de exceção, mas da nova forma,
de medidas na democracia com viés autoritário. Leis e procedimentos
democráticos são utilizadas para ampliar o estado de exceção. Aqui, o
sistema de justiça é o autor soberano das medidas de exceção, tendo como
base social de apoio a ralé que busca a ordem e os órgãos de mídia que
reproduzem esse espírito.
Adota-se o direito anglo-saxão, que parte da ideia de nação única,
que favorece o domínio da elite branca sobre o restante da Nação. Os
demais grupos acabam não tendo representação no sistema de justiça, no
sistema político.
Mudam-se os valores. Passa a imperar a força bruta, a intolerância, o preconceito.
Volta-se à Constituição de 1934 que, no artigo 139, estipulava a
eugenia como mecanismo de criação da educação, estimulando o veto aos
casamentos interraciais e inter-sociais, só integrando os brancos que
vieram da Europa.
É o caso do Supremo, hoje, votando a favor do casamento homoafetivo,
do aborto. Mas votando a prisão em segunda instância, justamente aquela
que pega a periferia, em um momento em que o desenvolvimento da
defensoria pública permite um mínimo de defesa jurídica para os de
baixo.
A Constituição corrompida
Por ser extensa, a Constituição brasileira amplia brutalmente o poder
do Judiciário para avançar em todos os temas. Ela exige um Judiciário
que se ligasse ao comum, que encontrasse no interesse público o
significado da Constituição.
Mas ocorre uma corrupção do sentido da Constituição, como garantidora
dos direitos fundamentais. Há um esvaziamento do sentido que levou à
sua votação, o sentido do que é público: direitos sociais amplos, penal
restritivo.
O Judiciário é o lugar da política interpretativa; o Supremo toma a
decisão política institutiva, de instituir novas leis sem nunca ter sido
votado.
Ou, então, de combater o crime. Nos sistemas democráticos, nunca foi
papel do Supemo de combater o crime. Esse é papel do Ministério Público,
da polícia. O papel do Judiciário é garantir que as decisões do campo
penal obedeçam aos direitos constitucionais fundamentais.
Com isso, a ideia do bem comum como constituinte da República vai se
esvaindo. É uma nova modelagem de Estado que esvazia a democracia.
A democracia é um estado de guerra, mas permeado por movimentos de diplomacia. É diálogo e é conflito.
Vivemos longo período de diálogo. Agora, estamos na guerra. E
tenta-se consolidar o Estado de Exceção com teorias pretensamente
científicas, similares ao do racionalismo alemão que levou ao nazismo.
No campo do direito, surge a teoria da bandidocracia, o direito penal
do inimigo. São teorias fraudulentas do direito, que visam transformar a
Constituição.
A democracia é um sistema vivo, no qual ora os direitos estão em expansão, ora em refluxo.
A efetividade da Constituição depende da lealdade de seus aplicadores
aos princípios definidos. Em relação ao direito à moradia, quem
interpreta melhor a Constituição? Os movimentos de direitos à moradia ou
o Judiciário que ordena a retomada da posse? Os movimentos, óbvio. Quem
é o titular da interpretação da Constituição éa população, não a
autoridade. O centro do direito é o povo no exercício amplo de seus
direitos.
Por isso, a única forma de defender e ampliar os direitos é através
do confronto (não o confronto violento ou armado), da transgressão. Não
há democracia sem que se permita certas formas de transgressão. No mundo
anglo-saxão permite-se a transgressão como forma de assimilar
conflitos.