Crise Política
Impeachment como golpe
De 2005 para cá, os processos na América Latina apresentam
claro viés antipopular
por Marcos Coimbra
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publicado
05/05/2016 04h03
Fernando Frazão/ Agência Brasil
Processos de impeachment são
hoje corriqueiros na América Latina. Vira e mexe, um presidente da
República é impedido. Mas nem todos são iguais. Ao contrário, há impeachments muito diferentes de outros.
Até o fim do século passado, eram raros. A onda só começou no início da década de 1990, quando saíram de moda os golpes militares.
Proliferaram e se tornaram comuns apenas a partir de então. Antes,
valia uma regra simples: quando as elites achavam indesejável um
presidente, convocavam as Forças Armadas e removiam o problema. Não há
um caso de presidente latino-americano destituído por militares por
fazer um governo antipopular. Todos os derrubados incomodavam “los que mandan”.
A solução parecia boa, mas envelheceu.
Norte-americanos e europeus toleravam os generais por achá-los úteis no
mundo polarizado da Guerra Fria. Depois da queda da União Soviética, os
fardados perderam a serventia e deles só restou a imagem de truculência e
breguice.
Além disso, à medida que a economia dos países
latino-americanos se modernizava, se desenvolvia e tornava mais complexa
a estrutura social, com uma nova classe trabalhadora e novos setores
médios, o recurso a golpes e ditaduras tornou-se disfuncional. A palavra
de ordem na região passou a ser redemocratização. Nos moldes
latino-americanos, bem entendido. Nada que efetivamente ameaçasse o
velho edifício de privilégios e reservas de poder que resiste ao tempo
em nossas sociedades.
Um dos maiores especialistas em impeachments
presidenciais modernos na América Latina é Aníbal Pérez-Liñán, da
Universidade de Pittsburgh. É dele a conta a seguir: entre 1990 e 2004,
nada menos que seis presidentes enfrentaram processos de impeachment no Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador e Paraguai.
Desses, quatro perderam o mandato, um foi destituído pelo Congresso,
que considerou menos traumático para o país proclamá-lo louco, e apenas
um manteve-se no cargo, mas de mãos atadas e sem poder.
Houve também
alguns quase impedimentos. No Peru, um presidente fugiu para não ser
julgado e houve outro no Equador que se safou, mas caiu no ano seguinte.
Sem contar os três chefes de governo que tiveram de renunciar na
Argentina e na Bolívia, ante sublevações parlamentares e protestos civis
que, provavelmente, redundariam em deposições. Todos somados, foram 11
quedas de presidente em 15 anos, quase uma a cada 12 meses.
A canadense Kathryn Hochstetler, ao
estudar o fenômeno, identificou um elemento fundamental nessa onda de
impedimentos presidenciais característicos da história latino-americana
daquele período. Coerentemente com os tempos de redemocratização em
curso, foram processos em que “(...) os protestos de rua jogaram papel
decisivo na determinação de quais presidentes iriam ser efetivamente
derrubados, o que sugere que os movimentos sociais haviam se tornado o
novo 'poder moderador' nos regimes civis”.
Nas palavras do professor Leon Zamosc, da Universidade da Califórnia, aqueles foram “impeachments
populares”, nos quais a mobilização de trabalhadores, camponeses, donas
de casa e estudantes forçou o sistema político a agir. Em todos os
países onde ocorreram (Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia, Paraguai e
até na Argentina e no Peru), anunciaram a mudança que chegaria dali a
alguns anos, com as vitórias eleitorais de partidos trabalhistas.
De 2005 para cá, a história dos impeachments
na região tem sido outra. Todos os exemplos recentes o atestam: o que
aconteceu no Paraguai, este em curso no Brasil e o anunciado na
Venezuela.
De maneira simples, poderíamos designá-los como impeachments
antipopulares. A pantomima parlamentar que derrubou Fernando Lugo no
Paraguai, as manobras políticas, empresariais e midiáticas que provocam a
queda de Dilma Rousseff e a investida que pode levar ao impedimento de Nicolás Maduro na Venezuela são o inverso do acontecido na era dos impeachments populares.
No conteúdo e na forma, esses de agora
têm parentesco estreito com os golpes militares. Reinstalam no poder
velhas oligarquias, subtraem direitos, implementam agendas regressivas
na política, na cultura e na convivência social e levam a retrocessos
nas políticas públicas. Mas se apresentam fantasiados de legalidade,
como seus antecessores faziam. No Brasil, até na retórica se parecem.
Aqueles que chamaram o golpe de 1964 de “revolução” hoje dizem que o impeachment de Dilma “não é golpe”.
Certo é: assim como certos impeachments descortinam o futuro, outros fazem girar para trás a roda da história.
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