Poder
O golpe sem disfarces
A despeito do esforço midiático para despistar a plateia, as conversações grampeadas confirmam o complô e apontam seus autores
por Mino Carta
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publicado
30/05/2016 05h04
Eraldo Peres/AP e STF

 
As forças parlamentar e judiciária, unidas no golpe,
 correm o risco de separar-se. Na encruzilhada, com quem ficariam a casa
 grande e a mídia nativa?
As conversas gravadas por Sérgio Machado, e até o momento divulgadas pela Folha de S.Paulo, imprimem novo ritmo e novo rumo à manobra golpista
 que afastou Dilma Rousseff e entregou o governo interino a Michel 
Temer, o arguto professor de Direito Constitucional que rasga a 
Constituição.
Na semana passada permitia-me prever a 
provável separação entre o poder togado e o poder parlamentar, unidos 
pelo e no golpe. A hipótese agora se fortalece, e a confirmação vem da 
própria mídia nativa. Não folheava os jornalões desde a aprovação do impeachment pela Câmara e a partir de segunda 23 passei a ler suas sessões políticas.
Na terça, elegia-se Romero Jucá
 a bode expiatório e como questão central apontava-se o “pacto” aventado
 na conversa entre Machado e o ex-ministro para estancar a sangria 
desatada da Lava Jato. 
A verdade factual sacramenta outra 
evidência, ao alcance da compreensão até do mundo mineral: ocorrido em 
março passado, o fatídico diálogo é, em primeiríssimo lugar, a prova 
irrefutável do golpe em marcha, e apresenta inclusive as forças 
envolvidas na trama. Ali se estabelece a premissa indispensável ao 
propósito do “pacto”, derrubar Dilma. 
Perguntei aos meus estupefactos botões 
como haveria de revidar o poder togado à ameaça do poder parlamentar. 
Mais, de que lado ficariam a casa-grande e a mídia nativa. Antes que 
respondessem, Temer entra em cena e joga a carta do pacote econômico do 
ministro Meirelles, o homem de todas as estações, a quem certamente não 
faltou a colaboração de José Serra. 
De quem recordo uma frase retumbante, 
pronunciada na cozinha da minha casa, durante a campanha eleitoral de 
2002, enquanto jantávamos um risotto ai porcini: “Eu sou muito mais de esquerda do que o Lula”.
Pois na tarde de terça os economistas do governo interino, vendilhões do País, firmaram a rendição ao mais cruel neoliberismo,
 a doença que uma centena de multinacionais, especuladores e rentistas 
impõe ao mundo para condenar à miséria a larga maioria e enriquecer mais
 e mais uma ínfima minoria. Comedida, a mídia de quarta celebra em 
manchetes o corte de gastos prometido pelo pacote e deixa em segundo 
plano a sua essência nefasta.
Convoco novamente os botões: por quê? 
Parece óbvio que uma súbita dúvida assola a casa-grande. O caminho do 
golpe tenderia a bifurcar-se, e a encruzilhada exige meditação profunda 
ao tornar possível, quem sabe provável, uma escolha. Temer e o Congresso
 ou Moro e o Supremo? A leitura dos jornalões induz os botões a 
acentuarem a gravidade do momento e a dificuldade da opção.
Na quarta, a Folha coloca em manchete o anúncio do corte dos gastos do governo e relega um novo diálogo dos idos de março, entre o mesmo Machado
 e Renan Calheiros, a uma chamada modesta na primeira página e relato na
 quarta. Soletram os botões: mais uma conversação edificante para 
confirmar o golpe, o pavor da Lava Jato de quem tem culpa em cartório e o
 envolvimento do Supremo na grande tramoia urdida contra o Brasil.
A terceira conversa gravada, entre machado e José Sarney, a
 menos significativa, revela apenas a intenção do ex-presidente de 
livrar Machado do julgamento de Moro, ao mexer pauzinhos não declinados.
CartaCapital preocupa-se 
com o destino do País brutalmente desigual e pratica o jornalismo com 
honestidade e fidelidade canina à verdade factual. Fato é que o governo 
Lula representa a quadra mais feliz na história do Brasil em termos de 
paz e bem-estar interno e prestígio internacional.
 
- A lição de Faoro: só a deliberação constituinte recompõe a ordem constitucional em colapso (Foto: Adriana Lorete)
O ex-metalúrgico soube implementar um 
começo de política social e promover uma política exterior independente.
 Contou com uma conjuntura mundial favorável, e este é fato, assim como é
 fato que o PT no poder se portasse como todos os demais partidos.
Dilma Rousseff não
 tem o carisma e o extraordinário tino político de Lula e cometeu erros 
graves de pontos de vista variados. Em boa parte manteve, porém, as 
políticas sociais do antecessor, ao meio de uma situação econômica cada 
vez mais adversa. Além disso, trata-se de uma cidadã correta, corajosa e
 muito bem-intencionada. Talvez um tanto ingênua, murmuram os botões.
Ouço-os, a despeito do tom opaco: seria bom saber como reagiu às razões de João Roberto Marinho,
 chamado em Palácio para escutar queixas em relação à constante 
agressividade global, sempre disposta a inventar, omitir e mentir.
Sustentou então o herdeiro do nosso colega Roberto não 
mandar nos seus empregados jornalistas, livres de propalar o que bem 
entendem, e, de resto, não ter condições de impedir o efeito manada na 
direção do golpe. Que fez a presidenta? Caiu das nuvens? Respondeu à 
altura a tamanha desfaçatez? De todo modo, como se deu que pudesse 
esperar por outro comportamento?
Cabem mais interrogações: que disse Dilma ao chamar o presidente do STF para discutir as posições do Supremo na perspectiva
 do golpe e ouvir a reivindicação de aumento de salário? A situação se 
apinha de dúvidas e incógnitas. Por exemplo. Os efeitos do pacote 
econômico, bastante agradáveis para a casa-grande, são altamente 
daninhos para um povo acostumado há tempo a manifestar sua insatisfação 
por ruas e praças.
Outra incógnita diz respeito ao inter do processo de impeachment,
 a prever no espaço máximo de 180 dias a sessão definitiva do Senado, 
presidida pelo ministro Lewandowski, não se sabe se já premiado pelo 
invocado aumento.
Na entrevista a CartaCapital da edição passada, a presidenta afastada referia-se
 à possibilidade de conquistar seis votos no Senado, de sorte a 
invalidar a maioria que a afastou. De fato, basta reverter dois votos em
 relação ao resultado da primeira sessão. A chance não teria crescido 
diante dos últimos, surpreendentes eventos?
Há quem volte a falar em eleições gerais antecipadas, quem
 sabe para outubro de 2017. Solução sensata demais para ser viável. 
Ideal mesmo, declaram soturnamente os botões, seria refundar o Brasil, 
tão favorecido pela natureza e infelicitado fatalmente por uma dita 
elite, prepotente, arrogante, hipócrita, corrupta, egoísta e 
incompetente. Ah, sim, ignorante. E movida a ódio de classe.
Abandono-me ao devaneio ao imaginar a convocação de uma 
Constituinte finalmente exclusiva. E me vem à memória a lição de 
Raymundo Faoro, contida em um dos seus livros mais recentes, A Assembleia Constituinte – A legitimidade recuperada.
Comenta Faoro a crença de que “só revoluções vitoriosas 
podem convocar Constituintes”. E emenda: “Na verdade, sempre que há 
crises ou colapso de uma ordem constitucional, ela só se recompõe pela 
deliberação constituinte, a deliberação constituinte do povo, se 
democrático o sistema a instituir”. 

 
 
 
