segunda-feira, 22 de maio de 2023

SAINDO DA PRISÃO COM DIVIDAS

 


Olá.

“Salve, José, meu aliado. Na paz? Mano, você que trabalha nessa parada de jornalismo, tem uma fita esquisita que tá acontecendo com um conhecido aqui da quebrada. Vai vendo: tem um parceiro que saiu da cadeia e depois de uma cota ficou sabendo que estava devendo uma multa de R$ 30 mil pro estado. O mano tá em choque. Tá ligado o que é isso?”  

Foi assim, numa conversa por telefone com um amigo, que me deparei, pela primeira vez, com a informação de que pessoas condenadas estavam saindo da prisão com dívidas, mesmo após cumprirem a pena privativa de liberdade. Na época, a princípio, me pareceu absurdo, sem sentido e de se tratar de uma situação específica. No entanto, quando o assunto envolve pobre e justiça, há de se considerar que algo errado ou injusto pode estar acontecendo.

Comecei a pesquisar o tema. Em pouco tempo, vi que de fato há alguns crimes em que a pessoa pode ser condenada à prisão e ainda ter que pagar uma multa. Então entrei em contato com ele para pedir o telefone do rapaz que havia relatado sobre a dívida, para entender a história a partir do seu ponto de vista. 

“Meu parça, lembra daquela história do seu amigo que saiu da cadeia com uma multa? Você tem o contato dele?”, perguntei.  

“Mano, não tenho. Mas amanhã vou num projeto social lá na Favela da Felicidade encontrar uma rapaziada que saiu do sistema. Se quiser colar, me dá um salve. Você é bem vindo”, ele respondeu.

No dia seguinte, cheguei na sede da associação às 9h30 e algumas pessoas já estavam por lá. Naquela manhã eles se reuniram para participar de um projeto de arte relacionado à vivência no cárcere. Dali, uma van iria levá-los para o ateliê de um artista plástico. Antes de saírem, sentamos em cadeiras organizadas em um círculo, e fui convidado a falar o motivo da minha presença.

Diante do pouco tempo para me explicar - a van estava a caminho -, fui direto ao ponto: “Rapaziada, primeiro, agradeço o espaço e a oportunidade. Meu nome é José, sou repórter e trabalho para um site, um veículo de comunicação independente, que se chama Agência Pública. Estou começando a fazer uma reportagem sobre pena de multa. Alguém sabe o que é? Tem multa para pagar ou conhece alguma pessoa que está nessa situação?”, indaguei aos presentes. 

Sem demora, diversas pessoas começaram a contar experiências que elas mesmas ou conhecidos estavam passando. O assunto foi crescendo, vários relatos surgiram. Alguns contaram que estavam com dívidas de R$ 16 mil, e até de R$ 30 mil. Enquanto algumas pessoas se mostravam revoltadas, outras se diziam prejudicadas com os valores cobrados pela Justiça. Logo notei que, se naquele espaço com apenas dez egressos havia tantos casos, tudo indicava que a situação era mais grave do que eu pensava. Por conta do tempo curto, tomei nota dos relatos, peguei alguns contatos e saí de lá para continuar apurando a reportagem.  

Nos 4 meses após aquela ligação, encontrei diversos outros casos, ouvi relatos de quem acompanha o assunto de perto, levantei dados, apurei informações e conversei com uma série de especialistas. Descobri que o número de pessoas que precisam pagar multas para o Estado é muito maior do que aquele pequeno grupo que conheci na sala do projeto social. Segundo dados do Tribunal de Justiça (TJ-SP), no estado de São Paulo, os casos passaram de 06 em janeiro de 2020 para 208 mil em março de 2023

O crescimento vertiginoso tem a ver com o julgamento de réus em dois conhecidos casos que deram vários nós no sistema de Justiça e na política brasileira: a operação Lava Jato e o Mensalão. No passado, a pena de multa era aplicada, mas a Fazenda Pública deixava de executar a maioria das cobranças por considerar que o custo que a pessoa condenada tinha com o processo era maior do que a quantia a ser paga. 

Mas no fim de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso decidiu que a multa é de natureza penal. A nova compreensão foi seguida pelo Superior Tribunal de Justiça e consolidada pelo chamado Pacote Anticrime, projeto de lei de autoria do então ministro da Justiça e atual senador Sérgio Moro (União Brasil), que virou lei em 2019. O objetivo do Supremo era tirar dinheiro dos réus com patrimônios gigantescos, como os condenados no Mensalão e na Lava Jato, como nos explicou o professor e pesquisador Luigi Giuseppe Barbieri Ferrarini.  

Só que a mudança no entendimento impactou a vida das pessoas pobres condenadas que hoje tentam se erguer após o cumprimento da pena. É o caso de uma jovem grávida de oito meses que descobriu que estava com a multa em aberto quando viu, no caixa do supermercado, que o saldo de R$ 375,00 em sua conta bancária estava bloqueado pela justiça.  Ou no caso de um homem cuja motocicleta utilizada para gerar a principal fonte de renda da família corre o risco de ser penhorada. E também com um idoso que passou a ter uma série de problemas econômicos e chegou a viver na rua por não ter condições de pagar a multa.

A experiência de fazer essa reportagem me mostrou que, sob o argumento de estarem aplicando a lei, os juízes que aplicam as penas de multa têm contribuído para dificultar a ressocialização de pobres condenados. 

Na prática, essas pessoas cometeram erros, foram punidas e sobreviveram à desumanidade de um sistema carcerário falho e falido, mas, por conta da pena de multa, seguem presas – mesmo fora da prisão. A lei que deveria ser aplicada para ajudar na ressocialização, acaba perpetuando a pena. 

Me deparar com essas histórias deixou ainda mais claro que o aspecto punitivista que impera no sistema de justiça criminal é aplicado mais severamente a depender da cor, do endereço e da classe social do réu. A humanização das pessoas presas é fundamental e urgente. O racismo estrutural, a desigualdade social e outras peculiaridades do país não são considerados pelos que aplicam sentenças acreditando que estão fazendo justiça. 

Sentença não é justiça. E o sistema de Justiça frequentemente age de forma injusta no Brasil. Investigar contradições como essa, especialmente quando elas prejudicam a vida de muita gente, é uma prioridade para a Agência Pública. Mas descobrir esses desvios é muito difícil, e exige tempo e dedicação dos repórteres. Se você quer ver mais reportagens como essa na Pública, considere fazer uma doação recorrente.


 
QUERO MAIS REPORTAGENS SOBRE INJUSTIÇAS
Um abraço,

José Cícero
Repórter da Agência Pública

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