quinta-feira, 25 de maio de 2023

 

É o Ibama ou é a boiada que está de volta, Lula?


Os últimos sete dias trouxeram o que se podia esperar de melhor e de pior do governo Lula em relação à gestão ambiental. A partir do momento em que o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, indeferiu o pedido de licença para perfuração da Petrobras na Foz do Amazonas, na costa do Amapá – o que foi interpretado inicialmente como um sinal de força da área ambiental –, desenrolou-se uma sequência de eventos que acabaram culminando nesta quarta-feira, 24, em um esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA). 

Nesta quarta, uma comissão mista do Congresso aprovou a Medida Provisória (MP) que tinha sido baixada logo no primeiro dia do governo Lula, reorganizando a Esplanada dos Ministérios. Mas os parlamentares promoveram alterações importantes no texto que retiraram poder de Marina Silva e de Sonia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas, sem que houvesse empenho do governo Lula para evitar o que, não sem motivo, já está sendo chamado de uma nova boiada.

Não parou aí. A Câmara ainda afrouxou a Lei da Mata Atlântica, retomando uma série de jabutis à Medida Provisória 1150/2022 que já tinham sido retirados pelo Senado. Fica nas mãos de Lula agora vetar a mudança, apoiada pelo Ministério de Minas e Energia, como mostramos na semana passada. 

Para complementar o tratoraço, os deputados aprovaram, no fim do dia, a urgência do Projeto de Lei (PL) 490, que estabelece o chamado “marco temporal”, segundo o qual demarcações de terras indígenas só poderiam ocorrer em terras ocupadas pelos povos tradicionais em 1988. 

“ Reflexo da falta de apoio no Congresso e das pressões da oposição, sem dúvida, mas tudo indica que os dois ministérios foram jogados para o sacrifício pelo governo. É impossível não imaginar que ambiente e questões indígenas estão sendo rifados. De novo.
Não à toa, há quem diga que nem Bolsonaro conseguiu fazer tantos estragos para o ambiente em apenas um dia como ocorreu ontem.

Como é possível ler sobre o que aconteceu ontem em praticamente todos os veículos de imprensa, vou me ater aqui a analisar apenas alguns pontos.

Em uma das mudanças com maior potencial de estrago para a política que visa zerar o desmatamento da Amazônia até 2030, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) sai do MMA e vai para o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos. Só não foi pior do que se tivesse voltado para o Ministério da Agricultura – como Bolsonaro tinha feito em seu governo e Lula desfez com a MP. Mas passa a mensagem de enfraquecimento da capacidade do MMA de lidar com o avanço da motosserra em terras privadas. 

Segundo dados do Relatório Anual de Desmatamento referente a 2021 (o de 2022 está para ser publicado), feito pelo projeto MapBiomas, 76% de todo o desmatamento do país ocorrido naquele ano se concentrou em terrenos identificados como imóveis rurais.

O CAR é um importante instrumento criado na reforma do Código Florestal, em 2012. A lei estabelece que todas as propriedades rurais precisam entrar nesse cadastro, que é autodeclaratório. O dono da terra vai lá e coloca dados como a localização da propriedade, o tamanho, qual é a área de produção e, o mais importante: quanto ela tem de Reserva Legal e de Área de Preservação Permanente (APP), como margens de rio e topos de morro. Ou seja, quanto da propriedade está em conformidade com o que é obrigada a cumprir em termos de proteção da vegetação nativa.

Pelo Código, propriedades na Amazônia têm de preservar 80% da área como Reserva Legal. As que estão na Amazônia Legal, mas dentro do bioma Cerrado, 35%, e no resto do país, 20%. Até a criação do CAR, havia apenas estimativas de quanto de fato havia de passivo ambiental nos imóveis rurais do país. Dados como o do MapBiomas citados acima só foram possíveis a partir do CAR. O cadastro surgiu com o objetivo não só de responder a essa questão, como também criar maneiras de punir quem desmatou ilegalmente e possibilitar a reparação do dano.

Verdade seja dita que, até hoje, passados 11 anos da aprovação do novo Código Florestal, o Programa de Regularização Ambiental ainda não foi implementado – foi, aliás, adiado mais uma vez na mesma MP que trouxe os jabutis contra a Lei da Mata Atlântica. O CAR teve uma grande adesão, mas ainda há falhas. Justamente por ser autodeclaratório, ele demanda que haja, por parte dos órgãos públicos, a validação daquelas informações. 

Nem sempre o proprietário fala  a verdade. Fora que muito gaiato grileiro que desmatou uma terra pública – ilegalmente, portanto – cadastra a área no CAR como se isso fosse uma ‘prova’ de que a terra é dele. 

Mas mesmo com as várias limitações desse processo, o CAR se tornou uma ferramenta fundamental de informação e de combate ao problema. O Ibama é capaz, por exemplo, de multar remotamente um desmatamento em área privada a partir do cruzamento de imagens de satélite com as informações que constam no CAR. 

A justificativa do deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), relator da MP que propôs a mudança, é que no Ministério da Gestão haveria “neutralidade” nas decisões. 

“Se o critério é que quem defende o meio ambiente não tem isenção para defender o meio ambiente com os órgãos de meio ambiente. Se dizem que quem é indígena não tem isenção para cuidar dos povos que cuidam dos povos indígenas, daqui a pouco vai se fazer uma lei para dizer que o Ministério da Fazenda não tem isenção para ficar com a Receita Federal, porque afinal de contas o Ministério da Fazenda quer arrecadar”, afirmou ontem Marina Silva. 

Enquanto a comissão mista decidia sobre o futuro de sua pasta, a ministra era sabatinada na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, onde deu a declaração em defesa da não alteração das funções do ministério. “Note bem! Não é um cadastro rural. É um cadastro ambiental rural em benefício da proteção ambiental, que também é em benefício dos produtores rurais”, disse.

O secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do MMA, André Lima, também se manifestou sobre isso. “Se o CAR - Cadastro AMBIENTAL Rural tem finalidade ambiental ... de monitoramento de cumprimento do Código Florestal, faz sentido ser vinculado a um Ministério NEUTRO? Qual a lógica? Neutralizar o CAR?”, escreveu Lima no Twitter (mantive a grafia e os formatos que ele usou).

Em nota técnica enviada à comissão mista, Lima argumentou que a mudança é “prejudicial à política de monitoramento e controle dos desmatamentos”, assim como para a gestão do CAR. 

“Como instrumento de controle e planejamento ambiental, exige uma capacidade técnica e competências materiais e humanas de gestão e implementação de legislações ambientais altamente complexas (…) Exige ainda do gestor do Cadastro que tenha capacidade de aferir a situação ativa ou inativa (com pendências) dos imóveis inscritos em face do cumprimento de requisitos para sua validade, relacionados com as leis referidas”, escreveu.

Os sinais são todos muito ruins. Quando Lula assumiu o governo, depois de se esforçar, ao longo de toda a campanha, para se posicionar no espectro oposto ao de Bolsonaro no quesito ambiental, foram inúmeras as vezes que se declarou que o desmonte tinha acabado. Era um tal de “Ibama voltou”, o “combate ao desmatamento voltou”, o “Fundo Amazônia voltou”, a “agenda climática voltou”. 

O que está voltando, nesse momento, porém, é a boiada. E se não quiser perder os recursos de outros países que estão sendo prometidos para o Brasil, se não quiser pôr a perder o protagonismo tão almejado nas negociações internacionais, Lula precisa conseguir estancar o gado. 

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental

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