terça-feira, 30 de maio de 2023

 

Eu, meu celular e o ladrão


Foi tão rápido que eu não tive tempo de ficar indignada. Estava no trem da CPTM, indo da Barra Funda ao Itapevi, região metropolitana de São Paulo, e, entre uma mensagem e a próxima no WhatsApp, coloquei o celular no bolso. Quando lembrei da mais nova urgência fabricada para pegar novamente o aplicativo – nem trinta segundos depois – o aparelho não estava lá. Remexi todos os bolsos, perplexa, e então algumas pessoas me disseram terem visto um homem, de jeans e camiseta preta, parar atrás de mim por uma fração de minuto, pouco antes da última estação. Saiu assim que a porta abriu em Osasco. 

Moro longe, o furto aconteceu na metade do caminho, tive pouco ânimo para descer na estação seguinte e tentar fazer um escândalo, buscando registros visuais, em vídeo, do tal ladrão. Ele estaria já longe. Esperei chegar em casa para valer-me de todas as ferramentas digitais que um celular Android permite. O aparelho estava desligado. A função “localizar celular” pelo Google, portanto, não servia. Seria difícil encontrá-lo sem isso.

Então, uma aflição: sem telefone, fui tentando lembrar todas as vulnerabilidades que agora me atravessavam ao ter aquela máquina, extensão mesma de tudo o que eu sou, na mão de um criminoso. 

Pensei nos meus aplicativos de banco. E estava ainda tentando contactar o meu gerente quando recebi um email. Havia se passado três horas até que o ladrão reunisse tantos celulares quanto conseguira faturar nos vagões da CPTM para começar a invadir cada um deles. O meu, reconheço, tinha uma senha fácil de quebrar, por pura displicência. 

Com raiva do ladrão e imaginando que ele quebraria minha senha, resolvi passar no mercadinho ao lado de casa e gastar o máximo que conseguisse da minha conta. Mas o email dizia que ele tinha sido mais malandro: pedira um empréstimo no Nubank, meu banco virtual ou fintech. Ganhou cem reais a mais. 

Começavam ali algumas horas de "gato e rato" virtual. Liguei para o banco e disse que ele estava naquele momento movimentando a conta. A atendente me contou que ele transferira 200 reais. Bloqueou o aplicativo.

Voltei então ao “localizar celular”; estava inabilitado. Provavelmente, ele o inabilitou assim que ligou para sacar meu dinheiro. 

Comecei, aí sim, a ficar preocupada. 

Quais as fronteiras virtuais que uma pessoa conseguirá acessar estando de posse do meu celular? O que ele pensa? Quais serão suas prioridades? Quão proficiente em tecnologia será esse rapaz ou os seus comparsas, com quem provavelmente ele estaria trabalhando àquela hora? O que ele quer de mim? 

Um aplicativo de banco estava bloqueado, mas não conseguia acessar o outro. Tentei pelo online banking e, para meu desespero, a mensagem era que havia outra seção aberta, na mesma hora. Mais gato e rato. Eu sentia sua presença virtual, como se tivesse ainda ali no trem, com ele respirando na minha nuca. 

Foi quanto talvez a coisa mais sinistra aconteceu. Tentei verificar os aparelhos conectados à minha conta do Google e vi, horrorizada, que ele se conectara ao meu Gmail pouco depois das 20h. Mudara a senha. A sensação era horrível: ele estava dentro de mim. E não tinha muito o que fazer. Já eram 20:25. Desconectei meu velho celular, mudei a senha (duas vezes), mas reparei que, logo depois de mudar a senha, ele conseguiu entrar na minha conta de outro celular, um Iphone. 

Ele tem um Iphone, e eu não, pensei. Senti um calafrio. 

Reparei que a minha conta do Google é talvez a infraestrutura virtual mais íntima que alguém poderia acessar. Para quem usa Android, está ali toda a sua rota de viagem diária, todas as vezes em que você desviou do caminho para dar uma chance ao destino. Está todo o histórico de navegação, pra quem usa Google Chrome; estão as senhas no autocomplete, seus sites preferidos, a maneira idiota com a qual você mata o tempo quando a vida parece chata demais para ser vivida.  

É por isso que a proeminência do Google é difícil de captar completamente. O Facebook, o WhatsApp, o Twitter, são sites – lugares – onde você entra para fazer uma coisa e sai. O Google é a internet. 

Você abre seu celular, entra em site, sai de site e não sai nunca do Google. No Brasil, 78% dos celulares rodam em sistema operacional Android; só 21% usam IOS, o sistema do Iphone. E assim como outras plataformas digitais, o Google tem feito mudanças para que as pessoas passem cada vez mais tempo na plataforma, gerando mais “eyeballs” e portanto mais anúncios. 

É isso o que a empresa busca quando te oferece, enquanto produtor de conteúdo, uma variedade de ferramentas das quais seu negócio ficará tão dependente que você jamais conseguirá se livrar. Também vem daí a adoção rápida da Inteligência Artificial na busca, que vai reduzir os clicks em links para sites de jornalismo, para os usuários ficarem por lá mesmo.     
E aquele homem estava dentro da minha conta do Google.   

Para que alguém acessa a conta do Google de outra pessoa? Provavelmente, para tentar fazer compras via Google Pay, coisa que não uso; para acessar senhas de sites financeiros, coisa que também não guardo; ou para buscar dados de cartão de crédito no meu email. 

Mas, e se o ladrão tivesse passado esses vinte minutos buscando entender quem sou eu, lendo e remontando esse quebra-cabeça que se conforma quando lemos as palavras escritas a cada email enviado? Por vinte minutos, um estranho teve acesso aos meus pensamentos, meus segredos, minhas cartas de amor de mais de uma década, a todas as desilusões amorosas e felicitações que eu dei e recebi, às dúvidas e angústias; ele sabe segredos que eu não contei pra ninguém – de um livro que me envergonharia de ter lido a um curso que eu fiz na calada da noite. Ele sabe dos meus sonhos para o futuro – que eu não contei pra ninguém, só mandei para mim mesma por email (sou dessas). Teria ele entendido quem eu sou, o que faço para viver, teria ele uma compreensão do meu trabalho? Teria ele encontrado fotos minhas, descoberto como eu envelheci nos últimos anos?  

 

A intrusão do meu feudo digital mais íntimo – minha conta do Google – foi uma violência brutal, que me deixou lívida. Ele fez tudo isso sem encostar a mão em mim, sem me ver o rosto. Eu senti a sua presença da mesma forma, movimentando-se pelo meu vasto mundo de dados, registros e bits digitais.
 
 

Mudei a senha de novo, observei com atenção se haveria outra movimentação; nada. Pedi ajuda a uma generosa amiga com o WhatsApp no meu laptop, mas parei de um susto quando pensei que ele poderia estar lendo todas as mensagens. Até mesmo o Signal, meu querido aplicativo que criptografa todas as mensagens e as devora depois, não era mais seguro.

Fiquei com receio de me comunicar com minha família. Estava devassada.    

Ainda diante do meu computador, consegui fazer o Boletim de Ocorrência online. Alguma pessoa, um ser humano da polícia, leu meu relato e aprovou que ele se tornasse um documento oficial sobre um roubo que ocorreu dentro do trem. Mandei por email ao Nubank, e finalmente, de posse do BO, outro ser humano na fintech decidiu que era hora de agir. Na manhã seguinte, recebi outro email: haviam localizado a conta para a qual havia sido transferido o meu dinheiro, acharam parcos 44 reais, e me reembolsaram.

Recebi a transferência com o nome de um homem. Meu ladrão? Seu comparsa? Um laranja? Pouco importava; foi minha vez de encontrar vestígios desse rapaz, com todas as ferramentas digitais que minha profissão me permite, como que querendo invadir-lhe a vida em retaliação. 

Não foi difícil encontrar, dentre tantos homônimos, o sujeito de vida triste. Nasceu em uma cidade pobre na periferia de São Paulo. Pardo, tem dez anos a menos do que eu. Não consta que tenha filhos. Mora a algumas estações de trem, ali mesmo em volta de Osasco, onde passou boa parte das suas desavenças. Foi preso e condenado por pequenos delitos, serviu pena de trabalho comunitário, conheceu temporariamente a cadeia antes de ser libertado. Chegou a ter um emprego e uma carteira de trabalho em algum momento. Em outro, foi fichado por violência doméstica.   

Deixei a sua história triste de um lado; agora eu já sabia sobre ele o tanto que ele sabia sobre mim. Decidi não avançar para suas redes sociais e nem buscar ver seu rosto. Não quero saber se um dia ele se sentar ao meu lado, na nossa velha linha 8 da CPTM. 

Tudo isso aconteceu sem que eu visse ninguém. Tudo, desde o susto até o remédio, aconteceu mediado por interfaces e protocolos que operam em servidores, alguns na Faria Lima e outros a milhares de quilômetros daqui. O reparo final aconteceu no site do Magazine Luiza: ordenei um novo celular. Então me senti segura de novo para pôr o pé pra fora de casa, 42 horas depois, mais calma, com uma certa sensação ilusória de ter retomado as rédeas da minha vida digital.


Natalia Viana
natalia@apublica.org

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