terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

 



Revelações da CPI do Capitólio


“E o que Trump vai fazer é apenas declarar vitória. Mas isso não significa que ele é o vencedor. Ele só vai dizer que é o vencedor... Os democratas, mais do nosso povo, votam cedo. O voto deles vai pelo correio. E então eles terão uma desvantagem natural, e Trump vai tirar vantagem disso – essa é a nossa estratégia”, disse o assessor de Donald Trump e mentor dos Bolsonaro, Steve Bannon, na noite de 31 de outubro de 2020, seis dias antes de Trump de fato se declarar vencedor nas eleições americanas e dizer que houve fraude, lançando a seguir uma empreitada na justiça para melar a votação e dar um golpe eleitoral. 

“Quando você acordar na manhã de quarta-feira, vai ser uma tempestade. [Trump] vai sentar ali e dizer ‘eles roubaram. Estou instruindo o procurador-geral a fechar todas as urnas em todos os 50 estados’. Não vai sair fácil”, completou Bannon. 

A frase foi dita para parceiros comerciais chineses, e é apenas uma das pérolas contidas no Relatório da CPI que apura os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos. Assim Bannon – o mesmo homem que disse que Bolsonaro não devia aceitar sua derrota apenas minutos depois do TSE declarar a vitória de Lula – detalhou com exatidão o plano que Trump levaria a cabo nas semanas seguintes.

Sigo mencionando o relatório final da CPI – essa será a última newsletter sobre o tema – porque ele funciona para compreender melhor a versão americana de toda a série de tentativas amalucadas que Bolsonaro perseguiu para tentar dar um golpe de Estado aqui no Brasil. 

E temos muito o que aprender com isso. 

Por exemplo, assim como aqui, houve uma “minuta do golpe” nos EUA. Um documento golpista escrito por um membro do Departamento de Justiça (DOJ), o equivalente ao nosso Ministério da Justiça, chefiado por Anderson Torres no último ano de governo Bolsonaro.  O plano de Trump era levar o DOJ a pressionar os estados onde ele havia perdido para recontarem os votos e, assim, atrasar ou sabotar a vitória democrata.  

“Apenas diga que a eleição foi corrupta e deixe o resto comigo e com os congressistas republicanos”, disse Trump ao então secretário de Justiça, Jeffrey Rodsen, que recusou peremptoriamente.    

Então Trump resolveu passar por cima do seu próprio secretário (que equivale a um ministro) e começou a se encontrar com um advogado do DOJ, de nome Jeffrey Clark, um funcionário de segundo escalão. Foi Clark que escreveu a “Minuta do Golpe” dos americanos, um documento que seria enviado pelo DOJ para os legisladores do estado da Geórgia dizendo:  

O Departamento de Justiça está investigando várias irregularidades na eleição de 2020 para presidente dos Estados Unidos. O Departamento irá atualizá-lo conforme possível sobre o progresso da investigação, mas neste momento identificamos preocupações significativas que podem ter impactado o resultado da eleição em vários Estados, incluindo o Estado da Geórgia.

À luz desses desenvolvimentos, o Departamento recomenda que a Assembleia Legislativa da Geórgia se reúna em sessão especial para que seus legisladores estejam em posição para obter testemunhos adicionais, receber novas evidências e deliberar sobre o assunto de acordo com seus deveres sob a Constituição dos Estados Unidos. 

A carta seria enviada também para outros estados-chave onde Trump perdeu para Joe Biden. Mas com a recusa do secretário de Justiça, Trump decidiu nomear o seu comparsa, Jeffrey Clark, como novo secretário. O plano só falhou porque todo o primeiro escalão do DOJ disse que ia se demitir, e assim o Departamento ficaria caótico e não iria conseguir colocar pressão nos estados para reverter o resultado eleitoral.

Outra parte do plano poderia ser também descrita como uma “operação tabajara” – sei que o nome é preconceituoso porque faz referência aos indígenas nordestinos, e não o endosso; mas queria relembrar o adjetivo usado por Alexandre de Moraes – assim como o plano de Bolsonaro e Daniel Silveira para gravar o ministro do STF. Ali nos EUA, a coisa beirou o surrealismo e envolveu bem mais gente. 

Como vocês sabem, as eleições nos EUA são indiretas, e, portanto, são representantes eleitos que votam nos candidatos escolhidos por casa estado. Esses representantes são devidamente registrados com antecipação e, de acordo com o número de votos em cada região eleitoral, são ligados ao partido republicano ou democrata. Pois bem. Em diversos estados, Trump e aliados do partido republicano chegaram a reunir “falsos eleitores indiretos” para fazer uma seção de votação fake. Uma farsa completa, mas, mesmo assim, essas pessoas se reuniram, esses votos foram dados e falsos documentos atestando mais votos em Trump foram enviados para o Congresso para serem usados no fatídico dia 6 de janeiro de 2021, que é quando os congressistas iriam abrir esses votos indiretos e declarar oficialmente o novo presidente da República. 

Entenderam? Tem uma cerimônia oficial acontecendo em cada estado, que é só pró-forma porque todo mundo já sabe quem ganhou as eleições, e a turma do candidato derrotado decide fazer outra votação na mesma hora, fingindo serem os representantes reais do povo para o voto indireto.  

O plano maluco apareceu no final de dezembro, quando todas as ações na Justiça tinham sido extintas e até a Suprema Corte conservadora tinha rejeitado uma ação do Estado do Texas para que revertesse os resultados em 4 outros estados.  

Bom, não deu certo. 

Essas são apenas duas das sete etapas tentadas por Trump e seus comparsas descritas com esmero no relatório da CPI, que pode ser lido na íntegra aqui

 

Mas o relatório tem ainda outros dois grandes méritos. Primeiro, ele desnuda de maneira cabal quem é esse homem que apareceu na vida pública mundial por ser um boçal e ter liderado um reality show no qual demonstrava, justamente, o escroque que era.   
 
   

Um ser obsessivo, aferrado às próprias mentiras e que consegue, com tanto vigor, defender seu mundo paralelo e que convence os mais próximos que o absurdo faz algum sentido. Um menino frágil criado na lógica devoradora de gente do ultracapitalismo americano. Uma pessoa que acredita naquela babaquice de “loser” e “winner”. 

Um dos episódios que mais me marcou foi o relato do assistente especial Cassidy Hutchinson que disse ter ouvido Trump dizer ao seu secretário de governo Mark Meadows: “O presidente estava furioso com a decisão [da Suprema Corte] e como ela estava errada, e por que não fizemos mais ligações, era uma típica explosão de raiva com essa decisão… E o presidente então disse algo como: ‘Não quero que as pessoas saibam que perdemos, Mark. Isso é vergonhoso. Descubra como. Precisamos descobrir isso. Não quero que as pessoas saibam que perdemos’”.
Trump, assim como Bolsonaro, foi o primeiro presidente em décadas a perder a campanha para reeleição. 

Perdido em seu devaneio de grandeza, Trump premeditou cada passo que levaria à invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, assim como Bolsonaro e sua gangue (seus filhos e generais como Braga Netto) premeditaram cada passo que levou ao 8 de janeiro de 2023. 

Outro dos grandes méritos do trabalho da CPI foi relacionar os tweets de Trump como documentação de posicionamentos públicos com o que ele estava ouvindo de seus assessores (que diziam repetidamente que não houve fraude), e ainda com como cada um dos tweets foi importante na decisão dos manifestantes de irem para Washington – gente de organizações de ultradireita como Oath Keepers, Proud Boys, Three Percenters. Uma das consequências desse trabalho investigativo é demonstrar cabalmente como posicionamentos em redes sociais levam a ações violentas no mundo real.

Mas, para mim, a maior virtude desse documento final é lograr subverter, acredito que de maneira bastante consciente, o uso do adjetivo “corrupto” que Trump tanto queria relacionar ao processo eleitoral. O termo é usado várias vezes para se referir às ações do próprio ex-presidente americano, de derreter, destroçar a democracia, pervertendo-a. 

“Esse não foi um plano simples, mas sim um plano corrupto”, escreveu Liz Cheney, vice-presidente da CPI, no seu texto introdutório. “Funcionários eleitos, trabalhadores eleitorais e servidores públicos se opuseram à pressão corrupta de Donald Trump”. 

É usado também no resumo executivo para descrever como Trump “pressionou de maneira corrupta o vice-presidente Mike Pence para recusar-se a contar os votos do colégio eleitoral” e como Trump “tentou corromper o Departamento de Justiça Americano”. E foi usado na imprensa para relatar as conclusões do documento. 

Dá a impressão que os congressistas chamaram para si a tarefa de ressignificar o que é, afinal, a corrupção, para talvez recolocá-la na pauta política para nomear aqueles que tentam corromper a própria essência da democracia e do espírito da lei, seja com ou sem propina, seja por pressão, por ameaça, bullying, violência, ou promessa de benesses futuras. 

Por aqui, nosso ambiente político também se beneficiaria enormemente se concordássemos que todo o plano para não reconhecer o resultado eleitoral foi um plano corrupto na sua essência, no sentido de corromper a espinha dorsal da nossa democracia. 

Seria um excelente legado desse episódio torpe da nossa história. Um retorno ao espírito da palavra, essa também sequestrada pelo bolsonarismo. 

Termino aqui com a definição do Houaiss, e aviso que na próxima semana não teremos newsletter porque teremos Carnaval, enfim.

CORRUPÇÃO, substantivo feminino
ato, processo ou efeito de corromper(-se)

1 deterioração, decomposição física, orgânica de algo; putrefação ‹c. dos alimentos›
2 modificação, adulteração das características originais de algo ‹c. de um texto›
3 (1821) fig. depravação de hábitos, costumes etc.; devassidão
4 ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, ger. com oferecimento de dinheiro; suborno ‹usou a c. para aprovar seu projeto entre os membros do partido›
5 emprego, por parte de grupo de pessoas de serviço público e/ou particular, de meios ilegais para, em benefício próprio, apropriar-se de informações privilegiadas, ger. acarretando crime de lesa-pátria ‹é grande a c. no país›
6 jur. disposição apresentada por funcionário público de agir em interesse próprio ou de outrem, não cumprindo com suas funções, prejudicando o andamento do trabalho etc.; prevaricação 

 



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

Nenhum comentário:

Postar um comentário