Um ser obsessivo, aferrado às próprias mentiras e que consegue, com tanto vigor, defender seu mundo paralelo e que convence os mais próximos que o absurdo faz algum sentido. Um menino frágil criado na lógica devoradora de gente do ultracapitalismo americano. Uma pessoa que acredita naquela babaquice de “loser” e “winner”.
Um dos episódios que mais me marcou foi o relato do assistente especial Cassidy Hutchinson que disse ter ouvido Trump dizer ao seu secretário de governo Mark Meadows: “O presidente estava furioso com a decisão [da Suprema Corte] e como ela estava errada, e por que não fizemos mais ligações, era uma típica explosão de raiva com essa decisão… E o presidente então disse algo como: ‘Não quero que as pessoas saibam que perdemos, Mark. Isso é vergonhoso. Descubra como. Precisamos descobrir isso. Não quero que as pessoas saibam que perdemos’”. Trump, assim como Bolsonaro, foi o primeiro presidente em décadas a perder a campanha para reeleição.
Perdido em seu devaneio de grandeza, Trump premeditou cada passo que levaria à invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, assim como Bolsonaro e sua gangue (seus filhos e generais como Braga Netto) premeditaram cada passo que levou ao 8 de janeiro de 2023.
Outro dos grandes méritos do trabalho da CPI foi relacionar os tweets de Trump como documentação de posicionamentos públicos com o que ele estava ouvindo de seus assessores (que diziam repetidamente que não houve fraude), e ainda com como cada um dos tweets foi importante na decisão dos manifestantes de irem para Washington – gente de organizações de ultradireita como Oath Keepers, Proud Boys, Three Percenters. Uma das consequências desse trabalho investigativo é demonstrar cabalmente como posicionamentos em redes sociais levam a ações violentas no mundo real.
Mas, para mim, a maior virtude desse documento final é lograr subverter, acredito que de maneira bastante consciente, o uso do adjetivo “corrupto” que Trump tanto queria relacionar ao processo eleitoral. O termo é usado várias vezes para se referir às ações do próprio ex-presidente americano, de derreter, destroçar a democracia, pervertendo-a.
“Esse não foi um plano simples, mas sim um plano corrupto”, escreveu Liz Cheney, vice-presidente da CPI, no seu texto introdutório. “Funcionários eleitos, trabalhadores eleitorais e servidores públicos se opuseram à pressão corrupta de Donald Trump”.
É usado também no resumo executivo para descrever como Trump “pressionou de maneira corrupta o vice-presidente Mike Pence para recusar-se a contar os votos do colégio eleitoral” e como Trump “tentou corromper o Departamento de Justiça Americano”. E foi usado na imprensa para relatar as conclusões do documento.
Dá a impressão que os congressistas chamaram para si a tarefa de ressignificar o que é, afinal, a corrupção, para talvez recolocá-la na pauta política para nomear aqueles que tentam corromper a própria essência da democracia e do espírito da lei, seja com ou sem propina, seja por pressão, por ameaça, bullying, violência, ou promessa de benesses futuras.
Por aqui, nosso ambiente político também se beneficiaria enormemente se concordássemos que todo o plano para não reconhecer o resultado eleitoral foi um plano corrupto na sua essência, no sentido de corromper a espinha dorsal da nossa democracia.
Seria um excelente legado desse episódio torpe da nossa história. Um retorno ao espírito da palavra, essa também sequestrada pelo bolsonarismo.
Termino aqui com a definição do Houaiss, e aviso que na próxima semana não teremos newsletter porque teremos Carnaval, enfim.
CORRUPÇÃO, substantivo feminino ato, processo ou efeito de corromper(-se)
1 deterioração, decomposição física, orgânica de algo; putrefação ‹c. dos alimentos› 2 modificação, adulteração das características originais de algo ‹c. de um texto› 3 (1821) fig. depravação de hábitos, costumes etc.; devassidão 4 ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, ger. com oferecimento de dinheiro; suborno ‹usou a c. para aprovar seu projeto entre os membros do partido› 5 emprego, por parte de grupo de pessoas de serviço público e/ou particular, de meios ilegais para, em benefício próprio, apropriar-se de informações privilegiadas, ger. acarretando crime de lesa-pátria ‹é grande a c. no país› 6 jur. disposição apresentada por funcionário público de agir em interesse próprio ou de outrem, não cumprindo com suas funções, prejudicando o andamento do trabalho etc.; prevaricação |
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