quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

 


Natalia Viana da Agência Pública natalia@apublica.org Cancelar inscrição

seg., 30 de jan. 12:00 (há 3 dias)

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Ed. #25 | Segunda-feira, 30 de janeiro de 2023.
 
 

Queremos CPI 


Ou melhor dizendo: eu quero. Depois da leitura do formidável relatório sobre a invasão do Capitólio, em Washington, em 6 de janeiro de 2021, tenho a certeza que o nosso golpe só será desnudado completamente com uma força investigativa que vá além do olhar policial e jurídico; e que enverede pelo terreno da política, de como as conspirações são construídas no dia a dia. Uma CPI no Congresso para apurar os eventos de 8 de janeiro deste ano, com ampla capacidade investigativa. Quero.    

O relatório de mais de 800 páginas feito pela comissão parlamentar americana é um exemplo. Traz uma narrativa meticulosa dos fatos, com o endosso de ser um documento oficial. 

Logo na introdução, deixa claro que há apenas um responsável pela insurreição: “As evidências levaram a uma conclusão absoluta e direta: a causa central de 6 de janeiro foi um homem, o ex-presidente Donald Trump, a quem muitos outros seguiram. Nenhum dos eventos de 6 de janeiro teria acontecido sem ele”.

Como só pode fazer um órgão que tem o poder real de investigar e obter documentos – o que supera, claro, o que podemos fazer nós, jornalistas – o relatório traz muitas informações inéditas e, principalmente, organiza a narrativa sobre o que aconteceu de fato. 

É recheado de aspas de centenas de entrevistas, mais de quatro mil notas de rodapé, links para documentos e minutagens de conversas e tomadas de decisões que trazem um raio-x de todas as diferentes maneiras como Trump e sua corja tentaram sabotar o processo de certificação da vitória de Biden, e depois tomar o poder pela violência. 

O benefício desse grande mapa da mina vai além de oferecer uma versão unificada de uma tramoia que se desenrolou de maneira multifacetada, em diversas plataformas e à frente de todos, numa dissonância cognitiva própria dos tempos do excesso de informação. Como observou o articulista do Washington Post Benjamin Wittes, ele oferece um roteiro para a Justiça, os políticos, pesquisadores e jornalistas aprofundarem e buscarem a responsabilização de cada um dos principais envolvidos. 

Aprendemos que também nos golpes modernos – multifacetados, digitais e reais ao mesmo tempo, realizados simultaneamente por centenas ou milhares de indivíduos – a curadoria é tarefa essencial. 

Apontar, isolar, hierarquizar e contextualizar os eventos e pessoas-chave é tarefa hercúlea, mas tão importante quanto reunir evidências concretas do que se disse, do que se fez, e de que consequências cada coisa teve.   

Por aqui, passamos exatamente pelo mesmo processo. 

 

Assim como nos EUA, o que vimos foi um “plano de muitas partes para anular a eleição presidencial”. E assim como nos EUA, ver o desenrolar da investigação poderia, em câmera lenta, permitir que um assunto de tamanha gravidade não perdesse a importância com o tempo, num país em que um escândalo costuma suplantar o outro com tremenda rapidez. 
 
   

Por seu lado, o presidente Lula já disse que não apoia a ideia de uma CPI sobre o 8 de janeiro. Em entrevista à Natuza Nery, ele disse que uma CPI “não vai ajudar” e “pode criar confusão tremenda”. Para Lula, já existem instituições que estão cumprindo seu papel de investigar os atos, como a justiça e até a PGR, que agora resolveu trabalhar.  

De fato, há cascas de banana. Pra começar, seguem rodando nos grupos de Telegram e Whatsapp bolsonaristas a versão de que foram infiltrados que promoveram a invasão e que os manifestantes seriam “pacíficos”; corre ainda a amalucada teoria que o governo – em especial Flávio Dino – sabia o que ia acontecer, mas deixou a coisa rolar para depois endurecer a repressão contra bolsonaristas e ganhar apoio político. Essa mesma versão dos fatos já chegou ao mainstream através da boca de ninguém menos que o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (ele disse que o governo queria “se fazer de vítima”). Assim como a candidatura de Rogério Marinho à presidência do Senado, lançada na semana passada com a presença da nata do bolsonarismo, isso prova que a força de ultradireita está se reordenando e precisa, para manter seu apelo popular, de novas narrativas desinformacionais que se consolidem perante o público – ou “uma grande confusão”, como bem resumiu o presidente. Rogério Marinho, aliás, já disse que quer propor uma CPI, e o próprio Flávio Bolsonaro disse que “a CPI seria o instrumento adequado para averiguarmos falhas por ação ou omissão” do atual governo. 

Vale lembrar que até mesmo a CPI da Covid funcionou malandramente como um canal para a propagação de teorias negacionistas, conforme nós mostramos na Pública.   

Fato é que a CPI já tem as assinaturas necessárias, para o bem ou para o mal.  

Mas, se for séria, a comissão poderá trazer mais do que esses embates mesquinhos sobre teorias furadas. Com toda razão, o relatório americano foi chamado de “um dos documentos mais importantes da história”, e deixa alguns legados essenciais para entendermos como funciona e funcionará a política na era digital, ou a tecnopolítica. Pra começar, é um tremendo avanço que os parlamentares americanos tenham levado a sério os registros de redes sociais como documentação da conspiração. Juntam-se aos registros tradicionais, como gravações da Casa Branca, como elementos de prova que agora devem obrigatoriamente fazer parte de qualquer investigação desse tipo.

Além disso, a verdade é que há muito que não sabemos sobre a dinâmica de tais acontecimentos.  E entender os buracos legais e cognitivos nos ajudaria a remediá-los para evitar algo assim no futuro. Dou só um exemplo. Valdemar da Costa Neto defendeu o ex-ministro da Justiça Anderson Torres em relação à minuta do golpe que esse mantinha em casa, dizendo que documentos desse tipo “tinha na casa de todo mundo”. 

Onde estão esses documentos? Quem estava entregando esse tipo de documento para autoridades em Brasília? Qual deveria ter sido a postura de um Ministro da Justiça e um presidente de partido ao receber um documento desse?  Prevaricaram?   

Eu tenho argumentado que não é possível olhar a tentativa de golpe no Brasil sem olhar para os EUA, e vice-versa: são irmãs siamesas. Mas há dois aspectos pouco explorados pela CPI do Capitólio que poderiam ser aprofundados por um olhar cínico por aqui. Primeiro, a responsabilidade das Big Techs que, por motivos óbvios, acabaram recebendo um olhar leniente dos parlamentares americanos. Aqui no Brasil, poderia-se averiguar quais foram, afinal, as salvaguardas que elas mobilizaram antes, durante e depois, se de fato estavam comunicando as autoridades e se de fato derrubaram conteúdos golpistas que poderiam ter deixado tudo pior. Ou se só esperaram o circo pegar fogo para agir. (E no nosso caso é mais interessante, porque pode entrar o tema da soberania nacional). Em segundo, seria possível aprofundar a investigação sobre a rede transnacional de operadores políticos que, desde os EUA, estão exportando o modelo de desestabilização das eleições inventado por Trump (no relatório americano, isso nem mereceu menção, afinal o que importa a eles é interferência internacional sobre a democracia deles). 

Em ambos os casos, deputados americanos já se disseram dispostos a colaborar.  

O que aconteceu em 8 de janeiro é sério demais para ser tratado como apenas um percalço em uma transição de poder turbulenta ou um crime pontual. Estamos diante de um novo fenômeno político que pode ou não se consolidar e se internacionalizar de acordo com a maneira como lidamos com ele. 

É preciso entender como são dados os golpes na era virtual, e principalmente como será possível impedir algo que é tramado às abertas, inflamado por campanhas de desinformação, coordenado internacionalmente, transmitido via livestreaming em redes sociais e financiado via PIX. 



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

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