segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

 

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Ed. #26 | Segunda-feira, 06 de fevereiro de 2023.
 
 

Tristes Capitais 


Estive em menos de dois meses no local das cenas bárbaras sobre as quais tanto falamos aqui: no Capitólio americano e no Palácio do Planalto. E não consigo descrever ambos os cenários a não ser como imagens de profunda tristeza. 

Washington já é, para mim, uma cidade triste, como ademais quase todas as cidades americanas. Em especial ao redor do Capitólio, há pouca gente que se aventura a caminhar naquelas avenidas gigantescas que quase sempre te fazem sentir minúscula. Dois anos depois da invasão, já não havia nenhuma medida de segurança excepcional, que lembrasse aquela tarde. Mas ao olhar para o prédio, não há mais nada que venha à cabeça, como se fosse um filme-americano-ciclete grudado na memória. 

Como eu já escrevi antes, passei um ano ouvindo colegas dos Estados Unidos tentando desvencilhar-se daquelas imagens que os cortavam fundo na alma. Mas, talvez pela onipresença também das imagens icônicas, que se multiplicaram então imediatamente pelas redes sociais, sites, jornais, o edifício do Capitólio me parecia ainda um prédio invadido, violado. E não seria a própria imagem de um edifício construído para simbolizar o poder de um paiís – nesse caso, o poder popular, o voto do povo nos seus representantes – uma parte importante dele? Aqueles rednecks armados, fantasiados, não teriam sugado a essência de um pedaço da democracia mais antiga do continente? 

A sensação é ainda pior quando se visita o Planalto. Um mês depois, as janelas seguem quebradas, há algumas que foram cobertas com papel-cartão na espera de novos vidros que (ainda) vão substituir os antigos. Do lado de dentro vê-se aquele vidro estilhaçado, aquele mesmo que ficou famoso na montagem da fotógrafa Gabriela Biló publicada na capa da Folha. através do estilhaço se olha para a praça dos três poderes e o que se vê é nossa democracia quebrada. Do lado de fora, pedestres são impedidos de chegar perto por barreiras de metal, guardadas por uma dezena de carros e ônibus da força nacional com seus homens vestidos de negro, fortemente armados. 

 

Mas a sensação não é de segurança, é de uma fragilidade incrível, escura, tenebrosa, que contrasta, como não poderia deixar de ser, com o esplendor claríssimo, também gigantesco e sobre-humano da arquitetura de Oscar Niemeyer.   
 
   

Uma brasiliense, funcionária pública há mais de 30 anos, me disse que se sentiu violentada vendo aquelas cenas. Nos sentimos todos. Outra cidade triste, de uma tristeza tão profunda quanto as profundezas da alma humana. Algo me diz que não entendemos nada. Que povo que somos? E que povo queremos ser?

No relatório de 6 de janeiro, feito pelo Congresso americano, há páginas e páginas de pessoas tão estupefatas como nós que ficamos do lado de lá de uma tela (de computador, da televisão) assistindo à barbárie. “Eu sinto vergonha”, diz um dos testemunhos, sobre o dia da invasão. “Acredito que sou um tipo de traidor”. 

- Como você se sentiu naquela hora?
- Eu senti como se, de novo, nós estávamos em um tipo de evento histórico para alcançar um objetivo.  

A violação continuada se sentiu, como uma névoa transparente no sol escaldante da Brasília, na quarta-feira, dia 1, quando o trânsito foi isolado na via principal por causa da posse dos congressistas. Medidas de segurança em uma capital que viveu um trauma, sim, mas também apenas uma expressão física de um pavor que se espalhava pelas redes sociais pela efetiva campanha de terror promovida pelos bolsonaristas sobre a eleição para a presidência do Senado. O olhar dos governistas traía o receio que mais aquela onda fascista se instalasse, vencesse, mesmo que no final o resultado tenha sido de vitória com certa folga para Rodrigo Pacheco, candidato da situação. Nem um dia de respiro, e o senador Marcos do Val aparece dos “porões” – palavras do Ministro do STF Gilmar Mendes – para transtornar a república com um plano esquisito envolvendo Alexandre de Moraes e Bolsonaro, para anunciar pouco depois que vai pedir o afastamento do ministro à PGR por suspeição. 

São variações do mesmo tema, o mesmo que vem ocupando nossas mentes há mais de quatro anos, quando Bolsonaro apareceu naquele telão da avenida paulista e disse que iria acabar com seus adversários políticos. E quando tentou roubar a eleição, dia após dia. Quando seus apoiadores saíram ameaçando eleitores do Lula. Quando ele jogou a PRF contra os votantes do Nordeste. Quando Carla Zambelli saiu de arma em punho em plena região dos Jardins em São Paulo, perseguindo um homem negro. É o terror constante, a batalha pela única coisa que importa hoje em dia em matéria de política, o controle, ou o caos premeditado, da narrativa sobre um determinado fato. O assalto ao senado representava apenas uma coisa: uma CPI da oposição, regada a absurdos como investigação de prevaricação do ministro da Justiça e do próprio Lula – um celeiro da fake news para causar ruído e dissonância cognitiva o suficiente para perverter o que foi a invasão dos 3 poderes. Lembremos, sempre, que a maior e contínua estratégia do bolsonarismo é “muddy the waters”, turvar as águas, criar de um ambiente informático confuso e desorientador, no qual é difícil para um cidadão comum separar o que é verdade do que é mentira. Eles não vão existir. Eles não vão desistir. 

O deputado André Janones, um dos que ainda agora mais entende a lógica bolsonarista, tuitou sua visão sobre a empreitada contra Pacheco no Senado.  “Não é mais possível governar sem estar em cima do palanque. Essa é a democracia moderna, onde o amadurecimento e o aprofundamento do debate, deu lugar a duas palavras que tenho repetido quase que como um mantra em minhas falas: intimismo e CONST NCIA (aqui leia-se: não descer do palanque)”.

Janones estava certo, trata-se tudo de disputa de narrativa; mas temo que o deputado tenha deixado de lado outro elemento que hoje constitui a base dessa disputa, o terror político. Eu me pergunto se será mesmo possível, num mundo dominado pelos algoritmos ulracapitaistas, que fazem qualquer coisa por dinheiro, formar algo como um “gabinete do amor” como foi aventado, uma equipe de governo especializada em criar engajamento dos apoiadores sem ranço, sem conflito, apenas com a empatia. Temo que não, temo que já tenhamos ultrapassado não só o terreno da campanha eleitoral, mas o próprio campo da política. Uma vez que o bolsonarismo abandonou o jogo político e embrenhou-se no golpismo, com um resultado bastante promissor, talvez agora não estejamos mais presenciando a tal polarização entre petistas e bolsonaristas. Talvez só existam dois tipos de cidadãos: os legalistas e golpistas. Convivência ou violência. Negociação ou barbárie. E talvez esse seja o novo marco sobre o qual devemos orientar nossa cobertura e nossas análises políticas. 

Talvez seja por isso que, mesmo com o passar do tempo, a sensação é de que os maiores símbolos da política como a conhecíamos – o Capitólio e o Planalto – tenham sido perpetuamente dessacralizados, estuprados, quebrados.



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

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