segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

 


Ed. #280 | Sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023.
 
 

A arte de provocar o leitor

reportagem desta semana de Rubens Valente, repórter da Agência Pública que está acompanhando a desintrusão dos garimpeiros em Roraima, traz valiosas informações sobre a operação no Território Yanomami junto com a emoção das descobertas vivenciadas em campo. 

No helicóptero em que sobrevoou o território invadido, o repórter levou também os leitores, atraídos pelo texto fluido, com detalhes que os aproximam do teatro de operações e agregam significado ao texto, desfazendo mentiras, como a suposta violência do Ibama ao queimar as máquinas usadas no garimpo, e revelando a totalidade de estragos ao meio-ambiente em que vivem os Yanomami, nas florestas que pertencem a toda a humanidade. Não há como permanecer indiferente depois de ler a reportagem. 

Essa é uma arte que a Agência Pública, fundada por três repórteres mulheres, orgulha-se em preservar: a de contar histórias que cativam o leitor e fazem com que ele preste atenção em pautas relevantes que muitas vezes se perdem no mar de informações cotidianas.

Acreditamos que um dos poderes do jornalismo é carregar as pessoas a lugares a que jamais foram, ouvir narrativas de realidades muito diferentes das suas, e compreender a complexidade das situações reportadas. Se a forma da reportagem é o texto, que ele seja envolvente como um bom livro. 

Muitas vezes nos dizem que nossos textos são longos demais para um tempo em que as pessoas não lêem. Não nego o fenômeno - mesmo eu, nascida e criada analogicamente, acabo muitas vezes dedicando um tempo desproporcional às notícias, vídeos e comentários nas redes sociais. A sensação de estar informada, porém, não substitui o aprendizado real, que não existe sem emoção, empatia e a reflexão que traz um bom texto - literário ou jornalístico.

Na reportagem de Valente, o desmonte da proteção ambiental no governo anterior, que se tornou quase um clichê na imprensa, revive na descrição minuciosa do garimpo que envenena a Terra Yanomami - anulando qualquer alegação de inocência - e ganha carne e osso na figura dos intrépidos fiscais do Ibama: Roberto Cabral, baleado em uma operação de desintrusão de madeireiros em território Guajajara, em 2015, e agora de volta à ativa depois de ficar na “geladeira” nos anos Bolsonaro; e Hugo Loss (exonerado da direção de fiscalização pelo ex-ministro Ricardo Salles e pelo ex-presidente do Ibama, Eduardo Bin), coordenador da atual operação, entrevistados pela reportagem.

É um drama narrado em tempo real, em que todos os que se negam a permanecer de costas para uma tragédia humanitária dessas dimensões têm capacidade de interferir de alguma forma. Não há mudança social sem engajamento da sociedade pressionando autoridades e responsáveis.

Também nos faz pensar em uma ruidosa ausência no combate a este crime - a das Forças Armadas - que até o momento não enviaram seus helicópteros Black Hawks para atuarem junto com o Ibama, dando agilidade à desintrusão e proteção aos fiscais, como observa o repórter. Um fato que se torna ainda mais significativo quando se lê na coluna do mesmo Valente, publicada ontem, que os militares escolhidos pelo general Heleno (sim, aquele Heleno!) presidem a Sala de Situação Nacional sobre os povos indígenas no Planalto, instituída para cumprir uma decisão do STF em 2020. 

Quando indagada pelo repórter por que os militares foram mantidos ali, a Secom do governo Lula se limitou a responder que “não iria comentar” o assunto. Uma resposta que não combina com a transparência democrática e a urgência da situação. Os conflitos e dilemas do novo governo precisam ser debatidos à luz do sol, sem mais caixas-pretas. 

Nesta semana, chegamos ao total de 11 reportagens que desnudam a condução criminosa da crise sanitária pelo governo Bolsonaro, que provocaram mais de 300 mil mortes evitáveis durante a pandemia. Vamos continuar investigando empresas e autoridades envolvidas em violações de direitos humanos e trazendo os leitores para dentro dos fatos. Se a democracia prevalecer, teremos tempo de apontar erros, investigar problemas e debatê-los enquanto o atual governo ainda estiver no poder.

Agradeço aos repórteres da Agência Pública por manter bem vivo o jornalismo que vai dos centros do poder ao chão das aldeias, sem perder a humanidade jamais. 

Bom Carnaval!



Marina Amaral
Diretora executiva da Agência Pública

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