domingo, 24 de novembro de 2019

Esquerda urbana perdeu a conexão com o Brasil real, comentário de Leandro A.

O Brasil real não está nos campi das federais ou nas classes médias intelectualizadas das grandes cidades


Por Leandro A.
Comentário no post O fim da democracia e os homens-bambus, por Luis Nassif
Oportunismo e arrivismo sempre existiram, são apenas prismas do grande poliedro chamado egoísmo.
O que está em jogo neste grande xadrez (para nos valer da terminologia nassifiana), é a capacidade de traduzir a mentalidade em voga para fins eleitorais, em tempos de modernidade líquida, captando o simbolismo político que traduza a voz da maioria.
A esquerda urbana, gestada no academicismo das grandes universidades públicas e movimentos sociais de trabalhadores, perdeu a conexão com o Brasil real. Não consegue mais traduzir em seu discurso as plataformas variadas dos cidadãos que vivem nesse país imenso.
A direita, pelo contrário, incorporou a percepção do homem comum do interior. O apelo sertanejo, a bandeira do agro, a destruição ambiental como simples pedágio para o progresso, a teologia da prosperidade neopentecostal, que transmuta o desejo de vencer na vida à qualquer custo como uma cruzada divina. Enfim, todo um simbolismo arcaico, construído sobre as necessidades primárias do homem, sem o verniz da sofisticação da noção de convívio e civilidade que se aprimora nas grandes metrópoles.
O Brasil real não está nos campi das federais ou nas classes médias intelectualizadas das grandes cidades. São apenas bolhas num universo de primarismo e ignorância. Na realidade do interior não existem comunidades LGBT, não existem direitos humanos como direitos fundamentais inatos. Não existem direitos trabalhistas, mas encargos trabalhistas. Existe propriedade privada e poder econômico como condição “sine qua non” de cidadania, é a mentalidade do que “você vale o que você tem” em seu prisma mais escancarado.
Uso de armas, preconceito contra gays e lésbicas, são tônicas comuns nesses núcleos sociais. Grupos de minoria nunca tiveram direitos nesses ambientes, portanto, todo esse discurso moderno e inclusivo das esquerdas apenas refrata os valores do “homem do campo”. Praticamente não existem universidades publicas no interior profundo, e, por tabela, não há valorização do ensino superior gratuito, visto como uma das causas pela formação de “comunistas, maconheiros e gays” nas grandes cidades.
Há um tempo atrás, quando a influência do americanismo (globalização) não se fazia sentir tanto, predominava aquela clássica visão utópica do caipira, do sorocabano, do gaudério no sul, como sendo a mentalidade comum no interior. Isso fabulou. É preciso ter em vista que a internet mudou o paradigma de mudança dos valores. Hoje, numa cidade de cinco mil habitantes, o descoladinho da hora consegue imitar a barbearia da Quinta Avenida. As pessoas não têm como parâmetro de vida uma pessoa de existência honesta, digna, honrada etc. Seus novos tipos ideais são pessoas ricas, magras, brancas, caucasianas, bem sucedidas financeiramente. Não importa como se chegou lá, pois se chegou é porque o Senhor prosperou! Poder aquisitivo lava qualquer mácula neste novo estilo de mentalidade rural. O Sertão mítico de Guimarães Rosa é uma fábula perto das paisagens de lavouras de soja, Round Up e Hilux.
A elite rural sempre teve viés conservador e provinciano, mas assim como se verifica nos EUA, podemos falar que no Brasil interiorano predomina agora uma ideologia “Tea Party”. O fator evangélico agregou uma agressividade que não havia na exposição de tais valores como virtudes do cristão. A intolerância com as religiões afro é apenas a primeira ponta desta visão de imposição à força dos valores conservadores judaico/cristãos. A Igreja Católica é a bola da vez. Ser católico nas pequenas cidades começa a soar como sinônimo de permissivo e “idolatria”. Pastores bem sucedidos, casados com belas esposas, com seus SUV começa a influenciar mais o imaginário do povão que o Padre, “homem que veste saia”, “pedófilo”.
Poderia dizer mais, abordar outras facetas dessa nova mentalidade caipira, mas fica nítido que o discurso de Bolsonaro, do desprezo pelo meio ambiente à defesa da embaixada em Israel, passa pela adoção irrestrita desses valores do Brasil Real do interior. A eliminação do outro como “modus operandi” político sempre foi a principal plataforma política do interior. É costume nas pequenas cidades que a família dos derrotados busque um exílio forçado, assim como seus principais apoiadores.
Enquanto assistimos à essa mentalidade tacanha adquirir formas concretas de manifestação política, num contexto de fechamento de fábricas e indústrias e abertura de novas fronteiras agrícolas, resta evidente que o modelo da grande metrópole como trampolim para ascensão social perdeu apelo junto ao imaginário comum. Os filhos da terra agora querem lavouras de soja e criação de boi, querem viver num Texas que fala português e não em São Paulo, essa Nova York do mundo bizarro, retratada pelo Cidade Alerta.
E Lula solto envereda pela mesma miopia da esquerda, num discurso para convertidos. Desconsiderando que o operário não quer melhor salário, quer apenas garantia de ter seu emprego, não importa que tenha que abrir mão de domingos, feriados. Afinal, o que é o domingo se comparado à perda da fonte de renda (e de cidadania)?

Sou morador – forçado – do interior. O que procurei descrever é o que vivo, tendo passado por umas oito cidades até sessenta mil habitantes, por força de concurso público. Ser à favor de políticas públicas contra a desigualdade, graduado em universidade federal, e ainda por cima entusiasta de Lula, me tornam portador da letra escarlate.

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