Da Agência Pública
Por Sérgio Ramalho
Mal havia amanhecido quando Ângelo embicou o carro no acostamento
tomado pelo mato às margens da estrada do Furado, em Paciência, na zona
oeste do Rio. A diarista Maria do Rosário foi a primeira a embarcar no
Fiat Uno, ano 1999, rumo à estação de trem de Santa Cruz. As lanternas
do aparentemente bem conservado veículo ainda estavam acesas quando o
ex-rodoviário passou à frente da 36ª DP (Santa Cruz) para encerrar, 100
metros depois, o percurso de pouco mais de 8 quilômetros da “viação
Coringa”. Uma linha clandestina de transporte de passageiros em carros
de passeio que opera livremente na região.
Todos os carros da linha ilegal têm afixados aos para-brisas um
adesivo em formato de círculo, com um sinistro sorriso cerrado. Vem daí a
irônica alcunha de “Coringa”: “Os garotos do mototáxi que colocaram
esse apelido. Antes, a gente chamava de ‘viação palhacinho’, mas aí veio
esse filme e os garotos passaram a chamar assim”, conta Maria do
Rosário, uma frequente usuária do serviço clandestino. Já no ponto
final, que fica na esquina das ruas Dom João VI e Senador Camará, colado
aos mototaxistas, a diarista aperta o passo para subir os degraus que
levam às catracas de embarque nos trens na estação de Santa Cruz e
seguir uma jornada de mais de duas horas até chegar ao trabalho em
Botafogo, na zona sul do Rio.
Tutelada pela milícia que atua nos conjuntos habitacionais Zaragosa,
Sevilha e Jardim Palmares, em Paciência, a linha clandestina opera no
vácuo deixado pelas empresas regulares de transporte. “Se a gente
esperar por um 809 ou 868 [números das linhas regulares que teoricamente
circulam pelas estradas Aterrado do Leme e Furado], vai chegar atrasado
ao trabalho todos os dias. Aqui, nesse trecho, a coisa mais difícil que
tem é ver um ônibus”, conta o ex-comerciário Jonas, que depois de ter
perdido o emprego numa rede de supermercados, comprou um carro para
fazer transporte de passageiros.
Desempregados, Jonas e Ângelo foram empurrados para a
informalidade. Segundo eles, o adesivo afixado aos veículos serve para
identificar quem está autorizado a trabalhar na linha, “Dizem que tem
mais de 200 carros de passeio fazendo esse itinerário”, diz Ângelo.
“Trabalhei muito tempo como leão [rodoviário, no jargão da categoria],
mas as empresas foram fechando e acabei aqui, mas não reclamo. Pelo
menos tenho um trabalho”, resigna-se. Os veículos autorizados a circular
na linha pagam entre R$ 50 e R$ 80 semanais aos cobradores da milícia.
Os valores exigidos são definidos de acordo com critérios individuais:
“Depende do que o cobrador acha que a gente ganhou na semana”, diz
Jonas.
Para embarcar num dos carros, o passageiro tem que desembolsar R$
3,50. O mesmo valor é cobrado de idosos, crianças e estudantes. Não há
gratuidade na “viação Coringa”. Por dois dias, na primeira quinzena de
outubro, percorri o trajeto feito pelos veículos autorizados pelos
milicianos a operar na rota clandestina. As estradas do Furado e
Aterrado do Leme cortam áreas ora rurais, ora industriais, ora urbanas.
Ao todo, permaneci na região por quase dez horas, sem ver um único
ônibus regular no caminho.
Há trechos onde a estrada do Furado corre paralela ao maciço que
inclui o Monte das Respostas, uma grande área verde com mata nativa onde
evangélicos se reúnem para fazer orações. As ruas próximas em geral são
esburacadas e mal iluminadas. “Antigamente isso tudo era área de
desova. As criaturas dominavam tudo, mas agora tá mudando”, conta o
vigilante missionário Ezequiel. Aos 52 anos, ele alterna o serviço de
segurança na Metalis, indústria de alumínio, que fica na estrada
Aterrado do Leme, e “o ofício de espalhar a palavra”. “Já fui criatura
também, mas me converti”, lembra.
Ezequiel embarca no Gol dirigido por João quando o veículo passa pelo
Jardim Palmares. O vigilante mora no Condomínio Zaragosa, um aglomerado
de prédios de quatro andares do programa Minha Casa Minha Vida. Veste
uma camisa social azul, fechada até o pescoço e empapada de suor.
Carrega uma bolsa cruzada no peito, de onde tira uma bíblia. O ar
condicionado do carro de João não dá vazão para o calor de 32 graus.
Ezequiel,
o quinto passageiro no Gol de João, se acomoda com dificuldade no banco
traseiro do veículo. Ele é um homem negro, forte, do tipo armário, com o
rosto largo e cara de poucos amigos – até começar a falar. “Abençoado,
você não se importa se a gente abrir os vidros, né? O ar não tá dando
vazão e o vento alivia um pouco, né?”, pergunta ao motorista. Um senhor
que sentava no banco ao lado de João ainda olhou para trás, mas logo
abriu o vidro, girando a manivela na porta.
Todos relatam as dificuldades de mobilidade na região: “Abençoado,
aqui não tem ônibus. Se você conseguir trabalho na Metalis, vai ter que
se acostumar a andar assim”, sentencia Ezequiel em resposta à minha
pergunta sobre a melhor forma de chegar à indústria. “Você não mora por
aqui, né?”, diz o segurança num misto de afirmação e pergunta. Sou
envolvido na prosa por João, logo após Ezequiel se ajeitar no assento:
“Esse aí tá perdido, tentando chegar na Metalis”. Daí o vigilante
missionário manda de bate-pronto: “Estou indo para lá, abençoado. É um
bom lugar para se trabalhar, mas você tem cara de doutor”.
Mudo o rumo da conversa para falar do transporte e sou logo
interrompido por João, que culpa os empresários de ônibus pela falta de
opções de mobilidade. “Cresci na zona oeste, já morei em Bangu, Campo
Grande e agora Santa Cruz. A gente sempre sofreu para pegar um ônibus.
Por isso, as Kombis e as vans foram ganhando espaço. Agora, como tá tudo
muito caro e ninguém tem dinheiro, a gente usa carro normal para fazer
lotada. Não ganha muito, mas no fim da semana dá para queimar uma
carninha”, conta João.
O senhor no banco da frente reclama que não tem gratuidade na linha
clandestina. O homem, que diz ter 72 anos, também se queixa do calor, da
aposentadoria que recebe como bancário e diz que, quando não tem
dinheiro, é obrigado a esperar pelo ônibus: “Não tem horário certo, mas
passa e não tenho que pagar a passagem”. João, o motorista, mostra ter
alguma intimidade com o passageiro: “Você tá sempre reclamando, mas
sempre roda com a gente. Sabe que não tem ônibus”. O passageiro dá de
ombros e segue em silêncio.

Sérgio Ramalho/Agência Pública
Por falta de ônibus de empresas regulares, moradores recorrem à linha clandestina de transporte
Falidas: 14 empresas de ônibus, cinco na zona oeste, fecharam as portas
Diretor do Sindicato dos Rodoviários do Rio de Janeiro, Antônio
Bustamante diz que a categoria está fazendo um censo para saber quantos
postos de trabalho foram perdidos nos últimos anos na capital: “Há uns
dez anos, o sindicato tinha uns 40 mil associados, entre motoristas,
cobradores e outros trabalhadores envolvidos na atividade de transporte
de passageiros. Quando as Kombis e vans começaram a aparecer, a situação
foi mudando. Ainda não terminamos a contagem, mas chegamos agora a 19
mil rodoviários”, lamenta Bustamante.
Segundo o sindicalista, 14 empresas de ônibus que atuavam na cidade
faliram na última década. Os primeiros a perder os empregos foram os
cobradores, mas a situação foi se agravando mesmo devido à concorrência
feita pelo transporte clandestino. “No início, o valor da passagem era
muito inferior às tarifas praticadas pelas empresas, mas atualmente o
preço é quase o mesmo. Com a diferença de que num ônibus regular o
passageiro tem a quem recorrer em caso de acidente”, argumenta o
sindicalista.
Bustamante
afirma que a situação é ainda mais grave nos bairros da zona oeste do
Rio de Janeiro, onde as milícias faturam alto com a cobrança de “taxas
de segurança” aos motoristas que fazem o transporte clandestino. “Nos
últimos cinco anos, cinco empresas que mantinham atividade nessa região
faliram. Algarve, Rio Rotas, Bangu, Sofia e Andorinha não aguentaram a
asfixia imposta pelo transporte clandestino e encerraram as atividades,
deixando milhares de desempregados.”
Representantes do Consórcio Santa Cruz, que reúne empresários do
setor na zona oeste, estimam que 2.500 postos de trabalho deixaram de
existir como consequência da falência das empresas regulares. Em nota,
afirmam que veículos usados no transporte clandestino de passageiros
fazem concorrência direta às empresas, circulando em 100% dos
itinerários regulares. Os empresários do setor se sentem tão acuados que
só aceitam falar sob a condição de anonimato: “É comum você ver carros
com homens armados, os milicianos, ameaçando motoristas e até fazendo
piquetes à frente dos pontos de ônibus em terminais, como de Campo
Grande e Santa Cruz, para impedir que os ônibus deixem os pontos nos
horários estabelecidos. Ficam lá, ameaçando os rodoviários, até que os
carros clandestinos fiquem lotados e saiam”, disse um empresário da
região.
Nesse cenário, os rodoviários são as principais vítimas de ameaças e
até mesmo agressões de milicianos e motoristas que fazem transporte
clandestino de passageiros. Antônio Bustamante, diretor do Sindicato dos
Rodoviários do Rio, confirma que a entidade presta assistência a
motoristas que apresentam quadro de síndrome do pânico depois de ter
sofrido ameaças e agressões enquanto trabalhavam em linhas, sobretudo,
nos bairros da zona oeste. “Por medida de segurança, nós evitamos a
exposição desses funcionários, que muitas vezes se vêm obrigados a pedir
demissão do trabalho por não aguentar a pressão dos envolvidos com o
transporte clandestino”, diz Bustamante. Tanto o sindicalista quanto os
empresários atribuem à falta de fiscalização a atual situação do sistema
regular de transportes de passageiros na cidade.
“Não há repressão por parte das autoridades do município ao
transporte clandestino. Já enviamos inúmeros ofícios à Secretaria
Municipal de Transportes [SMTR], Secretaria de Ordem Pública [Seop],
Coordenadoria de Transporte Complementar, prefeitura, enfim, nada se
resolve e a situação só se agrava”, diz outro empresário.
Em um dos processos (0228870-39.2018.8.19.0001, de 24 de setembro de
2018) que tramita na 16ª Vara de Fazenda Pública no Tribunal de Justiça
do Estado, os consórcios que operam o sistema BRT pedem o ressarcimento
dos prejuízos causados no setor. Ali são listados 15 ofícios enviados
nos últimos três anos à administração municipal sem que haja uma efetiva
adoção de medidas para minimizar os impactos no sistema.

Sérgio Ramalho/Agência Pública
Adesivo afixado aos veículos serve para identificar quem está autorizado a trabalhar na viação Coringa
Batman e Coringa na terra das milícias
O uso de imagens por grupos milicianos para mostrar poder e impor
medo aos moradores das áreas dominadas na zona oeste do Rio remete à
fictícia Gotham City, a cidade berço de heróis e vilões dos quadrinhos
da DC Comics. Foi em Cosmos, sub-bairro de Campo Grande, que o
ex-policial militar Ricardo Teixeira da Cruz adotou o morcego para
demarcar o território sob domínio da organização criminosa
autodenominada Liga da Justiça. Conhecido como Batman, o ex-PM era um
dos matadores do grupo paramilitar chefiado pelos irmãos Jerônimo,
conhecido como Jerominho, e Natalino Guimarães. Dois ex-policiais civis
que usaram da influência na região para se elegerem aos cargos de
vereador e deputado estadual, respectivamente.
Batman e os irmãos acabaram presos e condenados por formação de
quadrilha e outros crimes. Uma década depois, Natalino e Jerominho
voltaram às ruas de Campo Grande. Atualmente, Jerominho usa as redes
sociais para anunciar que será candidato a prefeito do Rio de Janeiro.
Batman, o principal matador da organização criminosa, segue preso numa
penitenciária federal de segurança máxima fora do Rio. O morcego ainda
pode ser visto em veículos que circulam pela região.
Assim como o morcego, o uso do adesivo que lembra um palhaço
sinistro, tem o objetivo de perpetuar no imaginário dos moradores dessas
regiões a sensação de impotência, explica o sociólogo e professor da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Souza
Alves. Mais do que servir de demarcador de território, o emprego de
símbolos serve para aproximar no inconsciente das pessoas a imagem
desses criminosos a seres invencíveis e onipresentes: “Tenório
Cavalcante já usava de símbolos para construir no imaginário do povo
pobre da Baixada Fluminense a ideia de que tinha o corpo fechado. Como
se fosse uma divindade, protegida pela capa preta, sem esquecer da
metralhadora que carregava para toda parte. Agora, os milicianos
recorrem a símbolos ou imagens que remetem a figuras com superpoderes. É
um salto na construção de uma imagem de imortalidade, de superioridade,
que tem como objetivo gerar nas pessoas subjugadas uma sensação de
extrema impotência”, acredita.
Autor
do livro Dos barões ao extermínio: a história da violência na Baixada
Fluminense, Souza Alves ressalta outro ponto em comum entre os
milicianos da nova era e os justiceiros dos anos de 1950. “Ambos
recorrem do clientelismo para manterem as pessoas sob domínio. Quando
eles autorizam o funcionamento de uma linha clandestina de transportes,
por exemplo, não vendem a imagem de que estão apenas voltados a obter
lucros. Esses paramilitares querem passar a imagem de que a iniciativa
deles gerou empregos aos motoristas e meio de locomoção aos passageiros.
Ao não agir contra esses grupos, o poder público alimenta esse estado
paralelo”, conclui o sociólogo.

Linha de transporte clandestina opera na zona oeste do Rio
O rosto por trás da “viação Coringa” é um mistério
A identidade do responsável pela milícia que usa adesivos para
identificar os carros autorizados a fazer transporte clandestino em
bairros da zona oeste é um mistério. Como o Batman e o Coringa (Joker)
da DC Comics, o paramilitar que lucra com a cobrança de “taxa de
segurança” dos motoristas que circulam na linha clandestina é conhecido
apenas pelo apelido de “Palhacinho”. A simples menção à alcunha tem o
efeito de afastar as pessoas.
Numa das viagens que fiz na linha irregular, um dos motoristas reagiu
com impaciência à pergunta sobre o responsável pela ideia de colocar os
adesivos nos para-brisas dos carros: “Por que você quer saber disso?
Vou te avisar logo que não quero confusão para o meu lado. Minha avó
costumava dizer que a curiosidade mata o gato”.
A reportagem enviou mensagem à Secretaria de Polícia Civil
questionando a atuação do grupo paramilitar, seu chefe e o uso de
imagens para demarcar os veículos que circulam na linha clandestina,
passando rotineiramente à frente da delegacia de Santa Cruz para chegar
ao ponto final à frente da estação de trem. Em uma linha, a assessoria
de comunicação da instituição informou que a Delegacia de Repressão às
Ações Criminosas Organizadas (Draco) e a 36ª DP investigam em sigilo a
atuação da organização criminosa.
A SMTR informou em nota que aplicou até outubro 1.507 multas por
transporte irregular de passageiros em veículos particulares na cidade,
sem detalhar por região ou bairro. A Coordenadoria Especial de
Transporte Complementar, órgão da Seop, disse reprimir o transporte
pirata feito em vans e Kombis. Segundo a assessoria, “Santa Cruz é um
dos campeões no número de remoção de vans e Kombis piratas. No bairro,
de janeiro a outubro passado, foram aplicadas 1.189 autuações, 324
utilitários foram rebocados, sendo 33% deles clandestinos”. As ações de
enfrentamento do transporte pirata são feitas em parceria com as
polícias Militar e Civil.