A crônica de um
fracasso
Heitor Scalambrini Costa
Professor da Universidade Federal de
Pernambuco
Governos têm sucesso quando executam políticas públicas que
respondem aos desafios apresentados, e criam assim condições para um futuro
melhor. No caso do que se convencionou chamar da crise de desabastecimento de
água em São Paulo, algumas características deste evento foram sendo delineadas,
e hoje estão bem definidas.
O sistema Cantareira, que abastece 364 municípios paulistas, de um
total de 645, atendendo 27,7 milhões de pessoas que respondem por
73% da receita da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico de São Paulo, a
Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo detém 50,26% das ações da
companhia, e os outros 49,74% estão nas mãos de acionistas privados), poderá
deixar 6,5 milhões de paulistanos sem água em suas torneiras. A culpa é menos de
São Pedro do que do governo de São Paulo que administra a Sabesp, e que
subestimou os impactos das mudanças climáticas, da extração desordenada e
descontrolada de recursos hídricos, da falta de conservação e proteção dos
mananciais, e, não menos relevante, da poluição.
Faltaram planejamento estratégico na gestão integrada e
compartilhada dos recursos hídricos, e os investimentos necessários em obras que
poderiam ter amenizado o racionamento existente (sobre o qual o presidente da
Sabesp demonstrou descaso ao dizer que “Não existe racionamento, existe uma
administração da disponibilidade de água”).
Em 2004, uma série de seminários com especialistas debateram a crise
de 2003 do sistema Cantareira, e apontaram para a necessidade de ampliar a
disponibilidade de água do sistema, indicando que o melhor caminho para isso era
buscar água no Vale do Ribeira através de uma obra que demoraria aproximadamente
10 anos para ser estudada, projetada e concluída, mas que, caso tivesse sido
realizada, provavelmente não haveria problema de escassez de água como ocorre
atualmente.
E a falta de transparência ficou evidenciada, mais do que nunca,
quando foi tornado público um relatório de 2012 da própria Sabesp, revelando o
risco de desabastecimento no sistema Cantareira, e alertando investidores da
Bolsa de Valores de Nova York para a estiagem prevista e seus impactos nas
finanças da empresa. Somente encarou o problema a partir do inicio de 2014,
quando criou um bônus para quem economizasse água.
A irresponsabilidade técnica e gerencial da empresa merece ser
destacada. O plano enviado a ANA (Agência Nacional de Águas) para operar o
sistema Cantareira até abril de 2015 não tem amparo adequado na realidade. A
probabilidade de recuperação do sistema é altamente arriscada, com um cenário
traçado que já não se confirma neste mês de outubro (2014).
A arrogância e soberba dos gestores da água em São Paulo levaram a
Justiça Federal a proibir a captação da segunda cota do volume morto do sistema
Cantareira, já que a empresa vinha captando mais água que o autorizado. Tudo se
faz para não decretar oficialmente o racionamento, nem prejudicar o valor de
suas ações na bolsa. A água é tratada como um mero “negócio”, não como um bem
coletivo.
Apesar dos problemas verificados nos anos 2000, o que se constatou
foi um aprofundamento ainda maior da política da água como mercadoria, e da
empresa a serviço do mercado e de interesses políticos escusos, com diretorias
indicadas por estes interesses inconfessos, sem nenhuma abertura para um
planejamento técnico sério, vinculado às necessidades da população. Prova disso
é o quadro funcional da Sabesp, reduzido de 21 mil trabalhadores para 14 mil. Em
particular, o setor de engenharia e operação foi diminuído a ponto de,
atualmente, várias unidades terem um quadro de técnicos capacitados abaixo da
necessidade para a atividade fim da companhia. Por outro lado, no último balanço
divulgado foi comemorado um lucro de 1,9 bilhões de reais da companhia,
mostrando que do ponto de vista mercadológico a empresa vai bem.
O centro da questão está na malfadada gestão dos recursos hídricos
de responsabilidade do governo do estado de São Paulo. Não por acaso o
Ministério Público possui, segundo a Promotoria de Justiça do Grupo de Atuação
Especial do Meio Ambiente, 50 investigações sobre a gestão da água feita pela
Sabesp.
A mercantilização de um bem essencial a vida, cujo lucro, ao invés
de usar na realização de obras, paga dividendos a acionistas e especuladores é
que tem provocado uma crise de tal dimensão, e consequentemente o
sofrimento da população paulista.
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