segunda-feira, 1 de setembro de 2025

 

Por que falar dos jornalistas mortos em Gaza entre tantas vítimas?
No primeiro dia do mês de setembro vocês vão encontrar uma mensagem especial na homepage da Agência Pública. Junto com mais de 150 veículos do mundo todo, participaremos da campanha da Repórter Sem Fronteiras que vai chamar a atenção do mundo todo para a necessidade de proteger os jornalistas palestinos – vários deles mortos em ataques direcionados contra a imprensa por Israel – e exigir acesso irrestrito a Gaza para a imprensa internacional, até o momento impedida de entrar na região pelo governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

E por que é importante dar acesso e garantir a segurança dos jornalistas em Gaza? Por que destacar essas mortes entre as 61 mil vítimas palestinas, 83% delas civis? Por que falar de jornalistas quando os bombardeios, a fome e a falta de assistência médica matam 28 crianças por dia?
 A resposta é simples: sem os jornalistas independentes que continuam trabalhando em Gaza, inclusive como correspondentes da imprensa, você não teria informações confiáveis sobre a guerra. No caso das vítimas jornalistas, além da vida, sempre preciosa, o que também importa é a função social que exercem para que o mundo tome conhecimento do genocídio em curso. 
Sem os jornalistas, não se saberia nada sobre pessoas alvejadas pelo exército israelense na fila de comida, nem sobre a desnutrição e a fome devastadoras em Gaza, que Israel continua a negar. Ninguém ouviria os familiares das vítimas, os profissionais de saúde que lutam para salvar vidas enquanto hospitais são bombardeados, as mães desesperadas para manter os filhos vivos. 

Os crimes de guerra, já denunciados no Tribunal Penal Internacional, seriam apagados pela propaganda israelense. Inclusive o assassinato de jornalistas que são protegidos pela Convenção de Genebra, assim como os profissionais de saúde e os hospitais. 

E é exatamente por isso que o governo de Netanyahu não apenas deixou de proteger os jornalistas palestinos como os tornou alvo de ataques. Isso mesmo. Segundo os dados da Repórter sem Fronteiras (RSF), que coordena a campanha em defesa dos jornalistas, entre os 210 profissionais da imprensa mortos pelo exército israelense em Gaza, pelo menos 56 foram alvos intencionais ou mortos enquanto trabalhavam. É por isso que a RSF pede uma reunião urgente do Conselho de Segurança da ONU “para deter a carnificina”.

No dia 10 de agosto deste ano, um ataque israelense direcionado à tenda de Anas Al-Sharif, correspondente da Al-Jazeera e um dos profissionais de imprensa mais conhecidos por atuar na linha de frente na Faixa de Gaza, matou, além dele, mais cinco repórteres do mesmo veículo. Israel admitiu o ataque direto ao profissional e, sem apresentar provas, acusou Al-Sharif de ligação com o terrorismo.

Em uma entrevista ao podcast “Pauta Pública”, concedida em junho, o jornalista palestino Ramzy Baroud contou como sua irmã, uma médica, foi morta intencionalmente por um drone israelense. Uma prática, segundo ele, que já se tornou comum em Gaza e que evidencia a intenção genocida, inclusive privando os feridos, os desnutridos, de obter assistência médica. São estes profissionais essenciais que estão sendo alvos diretos de Israel: médicos, enfermeiros, socorristas e jornalistas. 

Na segunda-feira passada, 25 de agosto, cinco jornalistas palestinos que trabalhavam para a imprensa internacional foram mortos em um duplo ataque de Israel ao hospital Nasser, em Khan Younis, no sul de Gaza, a mesma cidade em que a irmã médica de Baroud foi assassinada. Depois de o exército israelense atingir cerca de 20 pessoas no primeiro bombardeio, entre eles os jornalistas, o segundo ataque visou os profissionais de saúde que vieram em seu socorro. Dá para acreditar nisso? Pois é verdade.

Desta vez, embora a linha editorial dos grandes veículos estrangeiros continue a privilegiar Israel, inclusive divulgando amplamente a versão israelense de que Al-Sharif tinha ligações com o terrorismo, a AP e a Reuters reagiram e escreveram uma carta conjunta a Netanyahu, exigindo explicações sobre o episódio que matou três jornalistas contratados pelas agências e feriu mais um: “Esperamos que esta investigação seja rápida, completa e forneça respostas claras. Essas mortes exigem responsabilização urgente e transparente”. 

Uma das vítimas, a jornalista Mariam Abu Dagga, que trabalhava para AP e outros veículos, tinha 33 anos e era mãe de um filho de 12 anos, evacuado de Gaza por causa da guerra. Quase todos os dias ela ia ao Hospital Nasser para coletar casos e relatos das crianças desnutridas e transmiti-los à agência, aproveitando a internet do hospital. Como legado, Mariam deixa extensa documentação sobre a fome e o sofrimento das crianças em Gaza, foco de seu trabalho jornalístico, e uma carta para o seu próprio filho. 

“Ghaith, coração e alma de sua mãe, peço que não chore por mim, mas que reze por mim, para que eu possa permanecer serena", escreveu. “Quero que você mantenha a cabeça erguida, estude, seja brilhante e distinto, e se torne um homem de valor, capaz de enfrentar a vida, meu amor. Não se esqueça de que fiz tudo para te fazer feliz, confortável e em paz, e que fiz tudo por você. Quando você crescer, se casar e tiver uma filha, dê a ela o nome de Mariam, como eu."

Por Mariam e por todos os jornalistas que se arriscam para que o sofrimento de Gaza e a crueldade de Israel não fiquem impunes é que participamos dessa campanha. Não podemos deixar que se apague a luz sobre os fatos, tanto mais cruéis quanto mais silenciados. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 
 

 

O novo ataque do agro contra o clima

Era uma bola cantada.

Quando o governo federal colocou em consulta pública o Plano Clima, com as estratégias para reduzir as emissões de gases de efeito estufa do país por setores da economia, já dava para antever que o agronegócio iria se rebelar contra as metas previstas para o setor.

Porque houve uma inovação no processo, e o desmatamento que ocorre dentro de propriedades rurais entrou na conta de emissões da agropecuária, como eu contei na minha coluna de 24 de julhoCom isso, a contribuição do setor nas emissões totais brasileiras cresceu – passando a ser a maior por setor –, de modo que as metas de redução também ficaram maiores.

A proposta, elaborada por equipes técnicas de todos os ministérios que compõem o Comitê Interministerial de Mudança do Clima (CIM) – inclusive do Ministério da Agricultura (Mapa) e da Casa Civil –, é o roteiro para a implementação da nossa nova Contribuição Nacionalmente Determinada, ou NDC, que é a meta que o país assumiu junto ao Acordo de Paris para reduzir suas emissões.

Todos os países participantes do acordo precisam, neste ano, rever suas metas. E o Brasil, como anfitrião da Conferência do Clima da ONU deste ano – a COP30, em Belém –, deu o exemplo logo no fim do ano passado e lançou a sua.

Em novembro do ano passado, às vésperas da COP29, em Baku, o Brasil anunciou uma nova meta climática, se comprometendo a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa entre 59% e 67% em 2035, na comparação com os níveis de 2005. Mas na ocasião não foi detalhado como esses valores poderiam ser alcançados. 

O Plano Clima faz justamente isso, definindo quanto cabe a cada setor da economia. E à agropecuária foi atribuída uma redução de 54% das suas emissões até 2035. 

No último dia 13, a FPA levou suas queixas ao Mapa. “Estão atribuindo ao setor emissões que não são de sua responsabilidade e impondo metas desproporcionais, enquanto deixam de contabilizar o que preservamos e sequestramos de carbono”, afirmou o vice-presidente da FPA, deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), após participar de audiência com o ministro Carlos Fávaro.

Jardim, repetindo um argumento bastante usado pela bancada ruralista para todo tipo de regulação que tenta se impor ao setor, disse que o Plano Clima “concentra a maior carga de obrigações justamente sobre quem já preserva e produz com responsabilidade, adotando uma abordagem punitiva ao agro”.

A FPA também elaborou uma cartilha listando o que eles chamam de “narrativas” do Plano Clima. No documento, a frente parlamentar pede reformulação da proposta em alguns aspectos, como ter um plano setorial específico para tratar de emissões de gases de efeito estufa relacionados a desmatamento e que sejam incluídas as remoções de gases ocorridas em propriedades rurais privadas.

E ainda afirma: “Outro ponto crítico, que precisa estar claro desde o início, é que a soma das emissões atribuídas ao setor agropecuário inclui, em grande parte, áreas fora de sua responsabilidade, como assentamentos rurais, glebas públicas não destinadas, unidades de conservação, territórios de comunidades tradicionais e até o desmatamento legal. Apesar disso, a obrigação de reduzir essas emissões é imputada integralmente ao setor privado, distorcendo sua participação real no total e inflando artificialmente a meta de corte”.

Nesta quarta-feira (27), representantes do governo envolvidos no Plano Clima também foram chamados em audiência na Comissão de Agricultura do Senado para explicar os pontos.

Em que pese o fato de que, na demanda sobre as remoções, o agro tem razão – hoje o gás carbônico que é absorvido pelas atividades agrícolas e também pelas áreas de vegetação nativa dentro das propriedades não é descontado das emissões, por um problema de metodologia internacional que o governo reconhece que precisa ser revisto – no resto parece mais um esforço do setor para tentar aliviar qualquer tipo de regulação e compromisso com a meta de zerar o desmatamento do país.

Assim como ocorreu com toda a pressão da bancada ruralista para mudar o licenciamento ambiental no Brasil. O setor incluiu no PL a isenção da necessidade de fazer qualquer tipo de licenciamento para todos os imóveis que estiverem incluídos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), mesmo se ele não estiver validado. O presidente Lula vetou isso, mas a FPA promete derrubar o veto.

É uma novela que não vem de hoje. Pelo Código Florestal, os donos de terras no Brasil são obrigados a deixar um percentual de suas propriedades com vegetação nativa, no formato de Reserva Legal e Área de Preservação Permanente. E por essa regra, o setor sempre vai argumentar que já é muito conservacionista. E que nunca é reconhecido por isso.

Por outro lado, costuma ignorar alguns fatos importantes sobre a responsabilidade sobre o desmatamento no país. Veja alguns dados apresentados pelo Relatório Anual de Desmatamento do MapBiomas – que é uma espécie de raio-X sobre a evolução do uso do solo no país. 

Na versão mais recente, deste ano, relativa a dados do ano passado, o RAD aponta que:

​​- Apesar de apenas 0,8% dos imóveis cadastrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) terem algum registro de desmatamento em 2024, eles respondem por 88,7% de toda a área desmatada no país.

- Do total de 62.508 imóveis cadastrados no CAR com desmatamento validado em 2024, 46,3% foram reincidentes, ou seja, já tiveram registro de desmatamento em anos anteriores.

- 38,8% dos imóveis no CAR com alerta de desmatamento estão concentrados na Amazônia; Já o Pantanal (99,5%) e o Cerrado (95,5%) têm quase a totalidade do desmatamento no bioma em 2024, em áreas cadastradas no CAR.

- O desmatamento por pressão da agropecuária responde por mais de 97% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil nos últimos seis anos.

Lembrando que o desmatamento é a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa do Brasil. Para o país reduzir sua contribuição com o aquecimento global, é imprescindível atuar sobre esse problema. E aí pouco importa se o desmatamento é ilegal ou legal. Uma vez que a floresta desaparece, o carbono vai para a atmosfera. É uma questão de química.

Quer dizer. Nada mais justo que caiba ao setor colaborar para reduzir isso.

Logo que o Plano Clima saiu, eu perguntei pro Aloisio Melo, que é o secretário de Mudança do Clima, qual foi a lógica por trás da estratégia. Ele disse que a ideia foi considerar o “agente responsável” pelo desmatamento – ou seja, dar mais clareza sobre a responsabilidade pelo problema. O que faz sentido, uma vez que o plano tem como objetivo orientar políticas públicas para conter essas emissões.

Ontem, na comissão do Senado, ele também explicou isso: “O Plano Clima é um plano de ação para fins domésticos, nacionais, que está organizado em termos de quais são as competências institucionais em cada um dos temas. Quais são as políticas públicas que incidem sobre aquelas emissões. Quais são os agentes privados ou públicos que tomam decisões para aumentar ou diminuir as emissões. Então, a lógica de organização é um plano de ação.”

Há um plano setorial voltado para combater o desmatamento em terras públicas, como unidades de conservação, terras indígenas e áreas não destinadas – que está sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente. 

“E no plano da agricultura pecuária, todas as emissões e remoções que ocorrem relacionadas às atividades agropecuárias, seja nos estabelecimentos imóveis rurais, pequenos, médios, grandes, agricultura familiar. A gente incluiu também assentamentos e territórios quilombolas por entender que são áreas que têm essa finalidade produtiva.Em termos de emissão ou remoção das atividades nesses imóveis, propõe-se contabilizar aí”, disse Melo.

Já Marcelo Morandi, da Embrapa, alegou que se “atribuiu para o setor agropecuário o controle de algo que não está na gestão do setor agropecuário fazê-lo enquanto política pública”. Segundo ele, “quem tem a gestão sobre autorização ou não de desmatamento legal ou fiscalização e controle de desmatamento ilegal, não são os ministérios ligados ao setor agropecuário”.

Já estava previsto que ainda haveria ajustes no Plano Clima – é justamente para isso que ele foi à consulta pública. Aguardemos para ver o que pode mudar. Mas certamente vai ser mais uma queda de braço entre agro e governo. 


Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental

Revista Bula - Numa tarde de fevereiro, aos 47 anos, o escritor que fez da solidão literatura despedia-se do mundo

 

A roseira no pátio de Porto Alegre continua exigente. É a metade dos anos 1990, quando o Brasil ainda tenta dizer AIDS sem baixar os olhos, antes de os coquetéis mudarem destinos, enquanto um rádio de pilha na cozinha anuncia frente fria e a chaleira suspira no fogão. Há um homem magro, os dedos manchados de terracota, inclinando-se para aparar um espinho, medir o sol e adiar a chuva; o plástico dos laudos estala, a etiqueta com o seu nome brilha por um instante no bolso do casaco, e o vento minuano roça a vidraça pedindo licença. Entre consultas e telefonemas, de médicos, amigos e editores, ele dita ternura e passa um pano macio no metal frio. O seu timbre percorre os cômodos com a paciência da água que encontra a boca da planta. A cidade sustenta um zumbido contínuo. No jardim, ele repete pequenas liturgias, colhe uma palavra, recusa outra, decide ficar quando tudo aconselha partir. O rosto se vê cansado, o humor vigia de perto, e o caderno fica ao alcance, sobre a mesa, pronto para guardar a lembrança que arde e a esperança que insiste. Pela janela entra um sopro de rua. Do canteiro sobe a tarefa de sempre, fazer desabrochar alguma coisa quando quase tudo parece murchar. Nessa tarde de vidro, Caio Fernando Abreu, autor de “Morangos Mofados”, se inclina sobre a terra e protege, com o próprio corpo, a última chama de um lar.

A vida começa em Santiago, no interior do Rio Grande do Sul, em 12 de setembro de 1948, numa tarde em que o silêncio aprendia a ouvir passos. A família se muda para Porto Alegre durante a adolescência, e a cidade grande abre as cortinas: salas de aula com cheiro de giz, cineclubes cheios de sussurros, redações que acordam cedo. O primeiro conto, “O príncipe sapo”, sai na revista “Cláudia” em 1966; e o romance “Limite Branco” chega às livrarias em 1970. Desde então, uma teimosia mansa sustenta páginas escritas entre empregos, viagens e quartos alugados, com o som das teclas marcando o compasso do fôlego. Nenhuma lenda dá conta de explicar tudo, mas alguns traços persistem: o gosto pela frase que leva mais do que exibe; a paciência do jardineiro que reescreve até que a música fique certa; a confiança de que o detalhe salva. O Brasil entra cedo na sua literatura como pressão, vigilância e febre, longe do cartão-postal.

É 1968, e o regime militar aperta o cerco. Em 13 de dezembro, o Ato Institucional nº 5 desliga luzes de palco, fecha portas de redação e aperta o peito das cidades; o nome de Caio aparece em fichas, e o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social, troca o sussurro pelo carimbo com data e pasta parda. Ele encontra abrigo na Casa do Sol, em Campinas, onde Hilda Hilst oferece mais do que um teto, oferece uma mesa acesa. Há café forte, cadernos abertos, cachorros na varanda, a luz paulista atravessando as vidraças e uma conversa que pede verdade. A correspondência, que a crítica mapeou aos poucos, torna-se oficina prolongada: rascunhos vivos, confissões que tremem, dúvidas que viram degrau. No fim do dia, o papel guarda o que a boca não conseguiu dizer. Chegam os anos 1970 e o autoexílio europeu: Espanha, Suécia, Holanda, Inglaterra, França. São trabalhos de sobrevivência, quartos emprestados, filas de consulado, moedas frias na palma, um passaporte aquecido no bolso, talismã discreto. Nas noites longas, ele observa e anota o idioma novo, os casacos fechados, os dedos escondidos nos bolsos, o riso contido, e dessa travessia nascem contos que trocam a geografia sem perder a temperatura do coração, entre eles “London, London…” e “Paris não é uma festa”. Londres e Paris saem do mapa de papel e viram nomes próprios de uma solidão que aprende a manter o pulso. Ainda assim, a gentileza insiste: a chave que gira sem barulho, a sopa quente na cozinha alugada, a carta que atravessa o Atlântico e chega inteira.

O jornalismo foi sustento e também um laboratório de escuta. Ele atravessou as redações de “Pop”, “Gallery Around” e “Nova”; escreveu para “IstoÉ”, “Manchete” e “Pais & Filhos”; e, nos diários, assinou textos no “Correio do Povo” e na “Zero Hora”, além da “Folha de S.Paulo” e de “O Estado de S. Paulo”. Eram salas frias de ar-condicionado e luz fluorescente, cinzeiros cheios, laudas grampeadas, telefone de fio enrolado, o cheiro de gráfica e café passado. Havia o pauteiro apressado, o copidesque atento e o fechamento que mordia o relógio. Ele cumpria o expediente com competência e, quando a noite descia, levava para o quarto o murmúrio das conversas e os gestos dos anônimos que não couberam na matéria. Fica o registro do esforço de quem pagava as contas e, ao mesmo tempo, afiava a própria voz. A urgência do noticiário passava por um olhar que se demorava nos detalhes do cotidiano, a mão que acende um cigarro para o outro, a xícara esquecida no peitoril, e daí nascia a intimidade semanal que, entre 5 de abril de 1986 e dezembro de 1995, ele praticou no “Estadão”, na coluna “Pequenas epifanias”. Depois, viria a reunião póstuma “Pequenas Epifanias”, publicada pela Sulina em 1996. Era um lugar de confidências nítidas, sem exibicionismo. Ali, os leitores reconheciam a vida quando ela falava baixo.

Nos anos 1980, a sintonia fina encontra a sua frequência e o país puxa as cortinas e encara a claridade com as mãos trêmulas. Em 1982, “Morangos Mofados” capta a febre e a ressaca; em 1983, “Triângulo das Águas” aparece e, no ano seguinte, recebe o Jabuti de 1984; em 1988, “Os Dragões Não Conhecem o Paraíso” chega às prateleiras e rende o Jabuti de 1989; em 1990, “Onde Andará Dulce Veiga?” conquista o prêmio da APCA em Ficção. Ao mesmo tempo, nas páginas de “O Estado de S. Paulo”, a coluna “Pequenas epifanias” afina, semana após semana, um timbre que não prega nem aponta o dedo, apenas se aproxima. As ruas mudam de humor, os comícios explodem em cartazes e vozes, e a literatura brasileira se alarga para caber mais vida. Caio ocupa o ponto onde a intimidade toca a cidade com delicadeza e precisão. Suas páginas se inscrevem na tradição queer do continente como prática de olhar e dizer que reconhece e acolhe.

Em 1994, quando a desinformação ainda pesava e a palavra AIDS cruzava salas em silêncio espesso, ele encurta a distância entre autor e leitor. Torna pública a sua sorologia em três textos, “Cartas para além dos muros”, publicados no “O Estado de S. Paulo”. Há firmeza, sem pose de heroísmo, e uma escolha nítida de cuidado. Ao escrever sobre o próprio corpo, ele lança uma ponte e oferece a quem o lia um respiro. Chegam telefonemas, cartas, bilhetes com cheiro de gaveta; o endereço se torna refúgio compartilhado. Pouco depois, ele volta de vez a Porto Alegre, cuida das plantas, escreve o que consegue, fala longamente com amigos e responde cada envelope segurando o outro do lado de lá da mesa.

Numa tarde de fevereiro, aos 47 anos, transformou medo em coragem e delicadeza em voz para uma geração — e despediu-se do mundo

É domingo, 25 de fevereiro de 1996, e a tarde de Porto Alegre desacelera. Ele está internado desde o começo do mês no Hospital Moinhos de Vento, em luta contra uma pneumonia teimosa. Aos 47 anos, o corpo enfrenta infecções que chegam em ondas, tal qual mar de inverno avançando sobre a areia. No quarto claro, há o som contínuo dos aparelhos, o cheiro limpo do desinfetante, a janela recorta um pedaço de céu. Os amigos telefonam, os pais aguardam no corredor, e a cidade para a qual ele voltara, com as suas roseiras, acompanha em silêncio. No início da tarde, o fim se aproxima sem discurso: complicações relacionadas à AIDS apagam o fôlego e deixam acesa a memória das páginas. No dia seguinte, as notas saem nos jornais, as redações recordam histórias e, em muitas casas, as “Cartas para além dos muros” voltam à mesa, lamparina para quem atravessa a noite. No velório, flores simples e abraços demorados. Nas semanas seguintes, universidades organizam mesas, leitores copiam trechos, e o país tenta nomear a falta.

Em 2025, a presença de Caio se reconhece no uso diário. Reimpressões chegam às prateleiras; clubes de leitura ocupam noites de quarta; o nome segue nos planos de curso; no arquivo da universidade, a consulta com luvas põe em circulação cartas, cadernos e datiloscritos, o grafite ainda ardendo no papel. A tradução inglesa de 2022 continua a trazer visitantes de fora, enquanto as edições brasileiras mantêm os volumes ao alcance da mão, sem peregrinação por sebos. O que legitima este agora é o gesto de leitura: sublinhar, partilhar, pensar junto prevenção, desejo e cuidado. Ele volta assim, na temperatura das conversas. Nas redes, estudantes, tradutores e artistas compartilham, recortam e sublinham trechos; em salas de aula e consultórios, os livros amparam conversas difíceis. Ali, pesquisadores e leitores por afeto encontram vestígios que acendem uma sala. O movimento é contínuo, silencioso e firme; a cada marca de lápis, um retorno.

Falar de amores e amizades pede um acordo: nada de violar o que foi dito ao pé do ouvido. Na Casa do Sol, as cartas para Hilda Hilst correm sobre uma mesa marcada de uso, xícara fumegante ao lado, cães passando pela varanda, a luz de Campinas atravessando as persianas. A confiança tem cheiro de papel seco e café. Ele arrisca quedas, celebra pequenas vitórias, pede ajuda sem pedir. “Numa Hora Assim Escura”, organizada por Paula Dip, devolve esse fio de respiração à luz pública e nos permite ouvir o que a página sussurra entre linhas. Entre os interlocutores íntimos, está o poeta e jornalista Nei Duclós: nos anos 1970, envelopes cruzam o país com vocativos que abrem guarda e mostram um Caio desalinhando a própria armadura, confessando dívidas, prazos, rascunhos, e encontrando, no mesmo gesto, o ânimo para continuar. Essas páginas revelam o ateliê da prosa, a tesoura no excesso, o adjetivo poupado, a esperança presa por um clipe. Na rotina fora do papel, uma engenharia de cuidado se sustenta sem alarde: editor que segura o prazo, colega que atende na madrugada, leitor jovem que chega com caldo e xerox, e depois volta para casa com o livro molhado de sublinhos. Quando frases apócrifas voltam a circular, a casa se recompõe e oferece o antídoto: a edição de “Cartas”, organizada por Ítalo Moriconi, e o volume de Paula Dip recolocam na mão do leitor a voz exata, com seus silêncios e respirações. É ali que a ternura adquire aresta, e se entende como uma lealdade sem verniz.

O que a sua prosa faz, com superfície clara e fundo profundo, é confiar que o detalhe guarda o abismo. Mesmo quando o texto fala baixo, existe um impulso lírico que dispensa holofote; a emoção chega inteira, com a testa encostada no vidro da janela para ver a chuva cair por dentro. Medo, desejo, espiritualidade terrena e humor que ri de si chegam como fôlego, sem se travestirem de tese. Em tantos contos, o homoerotismo atravessa o mundo narrado; a epidemia de HIV acontece no tempo vivido; a ditadura e o exílio pesam como ar denso sobre a pele dos personagens. Ele escreve recolhendo objetos depois de uma ventania e, ao arrumar a mesa, encontra a forma de continuar. Por isso a leitura consola sem adormecer, porque a beleza chega junto da ferida.

Há música atravessando essas páginas. O conto-título de “Morangos Mofados” pisca para os Beatles. Em outros trechos, Janis Joplin, Rolling Stones e Caetano surgem como fósforos acesos. Vira pulso. O pop e a balada afinam a dicção dos contos e das crônicas e ajudam a explicar por que tantos leitores recentes, alguns vindos por atalhos digitais, permanecem pelo desenho minucioso da frase. Em Caio, a referência recorta a cena no ponto exato, abre o vão de luz e deixa entrar o ar que faltava.

O rastro material dos livros, manuscritos, folhas datilografadas, objetos, fitas e fotografias volta à luz, em caixas e vitrines, e devolve um Caio de mesa: correções à mão, recados no canto da folha, papéis com tinta ainda viva. Nas livrarias, as reimpressões mantêm o conjunto ao alcance; e a tradução inglesa “Moldy Strawberries”, de “Morangos Mofados”, continua a irradiar leitura crítica em outras latitudes. Quando uma edição chega com cuidado, perguntas se acendem. Quando um arquivo se organiza, o passado recupera a temperatura do presente.

É tentador empacotá-lo em frases de efeito. Seria um erro. O que a sua obra oferece, com elegância sem verniz, é atenção radical a corpos ameaçados e a desejos sem armadura, inteligência do afeto que não disfarça precariedades, humor que não vira o rosto diante da dor. Entre a notícia urgente e a música que o português pode fazer, Caio ergueu um refúgio de linguagem, capaz de acolher quem chega e de manter acesa a luz de quem permanece.

Revista Bula

A Revista Bula é uma plataforma digital brasileira fundada em 1999, que atua como revista e também como editora de livros. Com foco em literatura, cultura, comportamento e temas contemporâneos, adota uma linha editorial autoral, com ênfase em textos opinativos e ensaísticos. Seu conteúdo é amplamente difundido por meio das redes sociais e alcança milhões de leitores por mês, consolidando-se como uma das referências em jornalismo cultural no ambiente digital. Além da produção de conteúdo editorial, a Bula mantém uma linha de publicações próprias, com títulos de ficção e não ficção distribuídos em formato digital e impresso.


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N. 98