O futuro do Uruguai, após Mujica
por Thiago Domenici
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publicado
03/12/2014 14h45
Que esperar do sucessor, Tabaré Vazquez. O salto político e cultural, em
dez anos de Frente Ampla. A importância da nova Lei de Mídia
Mujica, senador mais votado numa vitória histórica
da Frente Ampla: “Não sirvo para velho aposentado, acariciando
lembranças. Ainda restam muitas injustiças”
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O médico oncologista Tabaré Vázquez, 74 anos, voltará
a comandar o Uruguai a partir de março do ano que vem em substituição
ao atual presidente, José Mujica, 79 anos, ambos da mesma coligação de
esquerda, Frente Ampla (FA). Vázquez venceu o segundo turno das eleições
no último final de semana com 56,6% dos votos. Seu adversário, Luis
Lacalle Pou, 41 anos, do conservador Partido Nacional (PN), obteve
43,4%. Com a vitória, os frenteamplistas garantem o terceiro mandado
seguido da coligação, que iniciou seu ciclo de poder com o próprio
Vázquez, em 2005. No Uruguai, o mandato dura cinco anos e não há
reeleição.
Como nas duas primeiras legislaturas da FA
(2005–2015), Vásquez desfrutará de maioria parlamentar – a coalizão de
esquerda terá nos próximos cinco anos 50 dos 99 deputados e 15 dos 30
senadores. Durante sua campanha, Vázquez tranquilizou empresários e o
mercado. Afirmou que, se ganhasse, continuaria com a atual política
econômica, a mesma desenvolvida durante sua presidência, com o atual
vice-presidente de Mujica, Danilo Astori, novamente como ministro da
Economia. Vázquez é visto por muitos como um socialista light e “amigável com os mercados”.
Como proposta eleitoral, ele apresentou uma agenda de
dez pontos. Entre eles, prometeu baixar os impostos e investir em
educação e tecnologia. Entre suas prioridades está também o controle da
inflação, que ao fim de 2013 estava em 8,6%. Além disso, prometeu
reformas nas políticas educacionais e de segurança pública, os dois
temas que mais preocupam os cidadãos uruguaios ultimamente. Durante o
primeiro turno eleitoral, os uruguaios votaram em um plebiscito sobre a
redução da maioridade penal. Ao longo da campanha, pesquisas chegaram a
indicar que a opção pela manutenção dos 18 anos como idade inicial para a
responsabilidade penal perderia por mais de 20 pontos percentuais, mas a
proposta de diminuição para 16 anos acabou rejeitada por 53% dos
votantes.
Apesar do grande sucesso internacional do atual
presidente José “Pepe” Mujica, internamente Vázquez é o político mais
popular do Uruguai e a principal figura da esquerda no país. Consta em
sua biografia que estudou medicina por influência de um câncer sofrido
pela mãe (que também vitimou seu pai, uma irmã e um irmão).
Nos anos 1960, durante o curso de medicina, decidiu
abrir uma clínica gratuita para atender a população carente do bairro La
Teja, em Montevidéu. Militante do Partido Socialista, aliava a pratica
da medicina à direção do modesto Club Progresso de La Teja, que chegou a
ganhar o campeonato nacional de futebol em 1989 e acabou disputando a
Copa Libertadores da América duas vezes.
Em 1989, foi eleito prefeito de Montevidéu, no que
constituiu a primeira grande vitória eleitoral da Frente Ampla. Em 1994,
disputou a eleição presidencial, ficando em terceiro lugar. Em 1999,
foi candidato novamente. No primeiro turno, foi o mais votado, mas, no
segundo, foi derrotado. A eleição de 2004 confirmou o seu elevado
carisma e o Uruguai elegeu seu primeiro presidente esquerdista.
O surgimento da Frente Ampla, em 1971, abrigando todo
o espectro de orientação política e ideológica de esquerda, de
comunistas a sociais-democratas, quebrou o ciclo do bipartidarismo do
país. Até quatro décadas antes de Vázquez chegar ao poder, o país era
governado ora pelo Partido Nacional (PN), também chamado de Blanco, ora
pelo Colorado, ambos muito antigos, fundados em 1836. Neles predominaram
desde sempre grupos centristas e de direita, sendo os colorados mais ligados à elite comercial urbana e os blancos, aos grandes fazendeiros.
No ano da criação da FA, o país já vivia um momento
de violência política iniciado no final da década de 1960, com o
enfrentamento entre grupos guerrilheiros urbanos e forças policiais e
militares. Nesse período, parte da esquerda abandonou a
institucionalidade política vigente e iniciou mobilizações clandestinas
com vista à revolução socialista. Diversos movimentos armados surgiram,
mas nenhum deles atingiu a dimensão e o impacto do Movimento de
Libertação Nacional Tupamaros (MLN–T), fortemente influenciado pelo
êxito da Revolução Cubana e heterogêneo do ponto de vista de suas fontes
e referências teóricas, que incluíam marxismo, leninismo, anarquismo,
liberalismo e nacionalismo. Os tupamaros acreditavam que o exemplo
cubano era prova concreta de que a consciência de classe nascia da luta e
que a luta armada seria a única via revolucionária possível para a
América Latina. Mas o contexto regional, com ditaduras militares no
Brasil, no Chile, no Paraguai e na Argentina, influenciou também o país,
e a luta armada foi solapada. Quando as Forças Armadas assumiram o
comando do país, em 1973, já eram frequentes as violações de direitos
humanos e a ocupação militar dos espaços políticos. A ditadura uruguaia
durou 12 anos e foi marcada por perseguições e assassinatos de
militantes de esquerda e férrea censura à manifestação do pensamento.
A história do país é das mais interessantes. Desde
sua fundação oficial, com intermediação britânica, em agosto de 1828, de
um século a outro, o Uruguai já passou de região de disputa fronteiriça
entre dois impérios, o português e o espanhol, a Estado-tampão por
fazer fronteira com Brasil e Argentina. E já foi chamado de “Suíça das
Américas” no início do século passado, devido ao perfil de país
desenvolvido, com altos índices de estabilidade social e política.
Em termos territoriais, é menor que o estado
brasileiro do Rio Grande do Sul. Na América do Sul, é o segundo menor e
tem pequena população – há dez anos, mantém-se na faixa de 3 milhões,
sendo que quase a metade vive na capital. A expectativa de vida na casa
dos 77 anos e o alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) fazem do
Uruguai uma exceção no Cone Sul. No entanto, sua população está
envelhecida – 19% têm mais de 60 anos, enquanto no Brasil são 11%.
Soma-se a esse cenário a alta emigração de jovens, que saem do país em
busca de empregos no exterior.
Como seus vizinhos, o país abriu sua economia e
iniciou um processo de privatização das estatais no início dos anos
1990. Esse movimento tipicamente neoliberal, no entanto, foi menos
intenso por lá. Algumas privatizações foram impedidas graças a
plebiscitos e a mudanças na Constituição. Pode-se afirmar que o Uruguai
foi o único país do mundo que derrotou as privatizações em consulta
popular: num plebiscito ocorrido em fins de 1992, 72% dos uruguaios
decidiram que os serviços essenciais continuariam sendo públicos.
Na mesma década, como uma estratégia para atrair
empresas para seu território, o governo mudou a legislação para
favorecer a implantação de instituições financeiras. Tal mudança atraiu
um número grande de empresas desse setor, o que ajuda a explicar o fato
de o país ter fama de ser um paraíso fiscal. Apesar disso, em 2011, a
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE)
anunciou que o país aplicou as medidas necessárias para deixar a chamada
“lista cinza” de paraísos fiscais, que inclui nações com pouca
transparência fiscal e pouco cooperativas na troca de informações. Esses
centros não cooperativos são acusados de sediar evasores fiscais
estrangeiros, que aplicam bilhões de dólares inacessíveis a suas
autoridades locais. No caso uruguaio, a OCDE destacou que o país assinou
sete acordos sobre troca de informação fiscal. As medidas adotadas pelo
país foram aplicadas depois de um relatório entregue pelo Fórum Global
de Transparência Fiscal e Troca de Informação, realizado em 2009,
durante a Cúpula do G20 na França.
Vale destacar que o Uruguai é o país com o menor
índice de percepção de corrupção da América Latina, segundo a ONG
Transparência Internacional e o relatório anual do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e o mais seguro para viver com a
taxa de analfabetismo próxima de zero.
Durante os últimos sete anos, o crescimento econômico
médio anual foi de 6,4%, um dos maiores da América do Sul. O país tem
atualmente a menor taxa de desemprego de sua história, em torno de 6%.
Com PIB nominal de 56 bilhões de dólares e
crescimento de 4,2% no ano passado, o país figura como a 76ª economia do
mundo. O setor de serviços é o principal ramo de atividade e responde
por 71% do PIB, seguido do industrial, com 21%, e do agropecuário, com
7,5%. A indústria uruguaia destaca-se nos ramos têxtil, alimentício e
químico, mas depende fortemente da importação de combustíveis e de
matéria-prima, posto que é escasso em relação a recursos minerais. Além
disso, no setor de agropecuária, a exportação é o principal destino dos
produtos, sobretudo para seus principais parceiros comerciais: Brasil,
China e Argentina. A criação de bovinos e ovinos, além da exportação de
carne, lã e couro, assim como derivados do leite, sustenta o setor. Na
agricultura, os produtos mais produzidos são o trigo, o arroz e a soja.
O mais famoso escritor uruguaio, Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina,
disse certa vez que os uruguaios têm certa tendência a crer que o país
existe, “embora o mundo não o perceba”. No Brasil, por exemplo, o
Uruguai é conhecido por conta de Punta del Este, região turística com
cassinos que têm grande visitação, ou então quando se trata de relembrar
a derrota da seleção brasileira para o time celeste no Maracanã, em
1950. Para Galeano, os meios de comunicação, “aqueles que têm influência
universal”, “jamais mencionam esta nação pequenina e perdida ao sul do
mapa”.
Há certo exagero na fala do escritor, que é anterior
ao sucesso internacional de Mujica, o presidente de estilo desleixado e
alheio a qualquer solenidade que ganhou os holofotes do mundo, mas que,
no próprio quintal, enfrenta críticas. Mujica é um ex-militante tupamaro
que levou seis tiros e ficou 15 anos preso, 11 dos quais em uma
solitária, onde chegou a beber a própria urina para não morrer de sede.
Ainda em sua juventude, quando simpatizava com o anarquismo, iniciou sua
militância no PN e acompanhou ativamente a criação de uma ala
progressista dentro do partido tradicional. Nessa fase de sua vida,
conciliava a atividade política com sua ocupação principal, a de
floricultor.
Somente na década 1960 ingressou no MLN–T. Sua
primeira eleição, a deputado, ocorreu somente quando tinha 59 anos, mas
desde então nunca mais perdeu um pleito. Em 1999, ganhou uma cadeira no
Senado e, durante o primeiro governo Vázquez, foi ministro da
Agricultura e da Pesca. Em 2008, deixou o ministério e começou a tecer
sua candidatura presidencial. Seu programa de governo tinha uma
estratégia continuísta dentro do frenteamplismo progressista. O tom
social-democrata exaltava as altas taxas de crescimento do PIB e das
exportações do período Vázquez, os grandes investimentos públicos em
educação, infraestrutura e tecnologia, a reforma tributária progressiva e
a correção dos déficits sociais.
Mujica costuma dizer que seu modo de vida austero é
um protesto contra a distorção dos valores da república por políticos.
“Ninguém é mais do que ninguém e, por isso, os presidentes devem viver
como a maioria que os elegeu e não como a minoria.” Quando eleito, por
exemplo, não quis ocupar a residência oficial, o palácio de Suárez y
Reyes. Continuou vivendo em sua chácara, no bairro Paso de la Arena, na
saída oeste de Montevidéu, um local de sítios e de pequena atividade
industrial, agrícola e granjeira. Na residência de 45 metros quadrados e
teto de zinco, Mujica mora com a esposa, a senadora Lucía Topolansky, a
quem conheceu na guerrilha, e com a cachorra Manuela, que ficou
aleijada de uma das patas depois de ser atropelada pelo dono, que
dirigia um pequeno trator agrícola. Topolansky esteve perto de ser vice
de Tabaré nas eleições. No entanto, o posto ficou com Raúl Séndic, de 52
anos, filho do ex-líder tupamaro homônimo. Séndic, inclusiver, é
considerado um nome provável para as eleições de 2019.
Mujica doa 90% de seu salário de presidente –
equivalente a 25 mil reais mensais – ao plano de moradia do governo,
chamado Juntos. O único bem que possui em seu nome é um Fusca azul de
1987, que recentemente recebeu oferta milionária de compra de um xeque
árabe – o ex-tupamaro declinou da oferta. Em recente entrevista ao
diário Folha de S.Paulo, perguntado
sobre o balanço de seu governo, respondeu: “Balanço de governo? Não sou
dono de armazém, não faço balanços, é preciso olhar para a frente”. A
verdade é que Mujica deixa a presidência com uma aprovação de 64% do
eleitorado uruguaio, além de ter sido eleito senador – o mais votado –
para a próxima legislatura.
Seu mandato foi marcado, sobretudo, por políticas
sociais agressivas e medidas progressistas como a legalização do aborto,
da maconha e do casamento gay. Para ele, no entanto, suas grandes
realizações foram as conquistas sociais, a diminuição da pobreza e a
criação de empregos. Antes de 2005, 39% da população viviam abaixo da
linha da pobreza – hoje, são apenas 11%. A indigência também caiu de 5%
para 0,5% nos últimos dez anos. Na economia, o Uruguai ampliou
significativamente sua participação internacional. Desde 2004, o país
quintuplicou suas exportações e, desde 2009, esse número dobrou. No
âmbito latino-americano, o Uruguai também ampliou sua participação na
Unasul (União de Nações Sul-Americanas), no Mercosul e na Celac
(Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe).
As polêmicas mais recentes envolvendo Mujica tratam
de sua decisão de receber refugiados sírios bancando 100% dos gastos com
seu deslocamento e reassentamento. Em outubro passado, um grupo de 42
pessoas chegou ao país e, até fevereiro do ano que vem, chegarão mais
120 refugiados sírios. Mujica anunciou ainda a decisão de receber seis
prisioneiros da prisão americana de Guantánamo. No entanto, embora a
atitude tenha repercutido bem internacionalmente, segundo a BBC, a
maioria dos uruguaios reprovou o movimento do presidente, assim como no
caso da regulamentação da produção e do consumo da maconha. Dois em cada
três uruguaios são contra, segundo todas as sondagens da opinião
pública. Pesquisa revelada em dezembro de 2013, da consultoria Equipos
Mori, mostra que somente 24% a aprovam.
Mujica reconheceu falhas de seu mandato. Afirmou à
Telesur que seu sucessor poderá “fazer mais coisas” no âmbito da
educação. Em 2012, o Uruguai ficou em 56º lugar entre 65 países
avaliados no Pisa, prova internacional que avalia a qualidade da
educação. Foi o pior resultado de sua história. A seu favor, Tabaré tem o
sucesso do Plano Ceibal (Conectividade Educativa de Informática Básica
para o Aprendizado Online), que deu computador pessoal a todos os mais
de 300 mil alunos da rede pública e seus professores. Além disso, o
governo encerrou o ano de 2013 enredado em um escândalo decorrente da
falência da companhia aérea local Pluna, que resultou na prisão de três
empresários e no pedido de processo do ministro da Economia, Fernando
Lorenzo, e do presidente do Banco da República, Fernando Calloia, pelo
suposto delito de abuso de poder.
Noves fora, com muito mais avanços do que
retrocessos, a realidade é que o Uruguai tem uma tradição de mais de um
século como um país de leis de vanguarda na América Latina. Décadas
antes de toda a região, foi o primeiro a aprovar o divórcio (1907). Oito
anos depois, implementou a jornada de trabalho de oito horas. Em 1932,
tornou-se o segundo país das Américas a conceder o direito de voto às
mulheres – o primeiro foram os EUA. Exatamente um século depois da
aprovação do divórcio, o Uruguai se tornou, em 2007, o primeiro Estado
latino-americano a conceder a união civil entre pessoas de mesmo sexo.
Ainda em apoio à união homossexual, o parlamento abriu as portas para a
adoção de crianças por casais gays em 2009. Em 2010, o governo
decretou o fim da restrição à entrada de homossexuais nas Forças
Armadas. Questões polêmicas na área médica também foram enfrentadas – e
aprovadas – pelos uruguaios, como a permissão da eutanásia, em 2009,
quando doentes terminais expressam sua vontade de interromper
tratamentos médicos para o prolongamento da vida. Por essas e outras, o
Uruguai ocupa o topo do ranking do índice de democracia da revista The Economist,
que, no ano passado, teceu loas ao país em editorial, elegendo-o o
“país do ano”. E a figura de Mujica, diz a publicação, encarna esse
Uruguai progressista, justamente por seu estilo de “franqueza incomum
para um político”. “Modesto, mas corajoso, liberal e amante da diversão
(…)”, disse a publicação.
Após a confirmação da vitória de seu correligionário, Mujica afirmou, em entrevista concedida à Televisão Nacional do Uruguai,
que favorecerá uma transição fluida ao futuro mandatário e que vai
contribuir com o que for necessário. “Assim, não sirvo para velho
aposentado retirado em um rincão acariciando lembranças. Enquanto meus
ossos e o chassis responderem, vou fazer tudo o que puder porque ainda
restam muitas injustiças. E vou seguir lutando por isso, porque o prêmio
não está no final, mas no caminho”, afirmou.
Resta a Vázquez aproveitar o momento e surfar na onda
criada por Mujica internacionalmente, além de sanar os problemas
internos mais urgentes e tratar de outras questões polêmicas, como a Lei
de Mídia. Em sua primeira fala pública da segunda fase da campanha,
Vázquez anunciou que, se vitorioso, a Lei de Mídia será “improrrogável” e
se comprometeu a regulamentá-la. No Uruguai, os grupos Romay, De
Feo-Fontaina e Cardoso-Scheck controlam 95% do mercado de televisão
aberta do país.
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