terça-feira, 30 de julho de 2024

 

A inteligência artificial tem sede - e está de olho no Brasil  


A história se repete. Assim como no caso da famigerada lei das Fake News (PL 2630), a proposta de regulamentação da Inteligência Artificial (PL 2338) foi adiada já três vezes já na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial do Senado, criada pelo presidente Rodrigo Pacheco apenas para esse fim. As coincidências não acabam aí. Também teve assédio online contra quem se colocou a favor da regulamentação, bolsonaristas disseram que a proposta seria algum tipo de censura, e a falta de votação beneficia as mesmas empresas, sim, as Big Tech.   

Agora, no caso da lei de regulamentação de IA, quem melou a votação que estava agendada para acontecer em 9 de julho foi a Confederação Nacional da Indústria. A CNI resolveu boicotar o projeto de lei alegando que, se fosse adiante, o Brasil iria perder a competitividade e investimentos na área de IA e corria até “risco de sofrer um isolamento e atraso tecnológico”. A CNI, ecoando as Big techs, afirmou ainda que não houve discussão ampla sobre o tema. 

Pra quem estava atuando diretamente na negociação, a cartada da CNI foi um choque – afinal, as Big Techs e a própria CNI foram ouvidas ao longo de dois anos, houve 14 audiências públicas, um seminário internacional, mais de cem manifestações de especialistas e dezenas de emendas parlamentares de última hora. 

Mas o que estava por trás do posicionamento foi o fato que, segundo apuração da jornalista Patrícia Campos Mello, as Big Techs teriam ameaçado não trazerem seus Data Centers para o Brasil caso a lei fosse aprovada como estava.    

De fato, quem leu o documento da CNI encontrou uma perspectiva aterradora – que beira um escândalo. Segundo ele, o Brasil tem dois grandes diferenciais competitivos para desenvolvimento e uso da IA:  “O tamanho e a heterogeneidade da população, que pode alimentar com informações as bases de dados que treinam as aplicações de IA generativa”, e “a matriz energética limpa para atender a demanda dos datacenters”, por oferecer “energia limpa, segura, barata e abundante”. 

Acontece que, desde o lançamento do Chat GPT, começou uma verdadeira corrida-do-ouro para a construção de Data Centers e de acesso aos recursos naturais que são necessários para eles funcionarem: energia barata – e de preferência renovável – e água. Muita água. 

Isso porque a IA processa muito mais dados para cada resposta que envia do que, por exemplo, o algoritmo de busca do Google. Para se ter ideia, entre 2021 e 2022, quando a Microsoft abraçou a Open AI e outras ferramentas de IA, seu consumo de água aumentou em 34%. A sede por água é acompanhada pela demanda por energia – tanto que Sam Altman, CEO da Open AI, alertou para uma “crise econômica catastrófica” e anunciou um plano de investimento massivo em energia nuclear.  

A corrida por novos Data Centers tem movimentado até o mercado imobiliário norte-americano. Vale ler este elogioso artigo do site americano Market Watch, por exemplo, descrevendo que as áreas mais “hot” do mercado imobiliário para comércio “não estão em Manhattan ou Miami. Em vez de hotéis elegantes ou torres de escritórios reluzentes, os novos queridinhos do setor são centros de dados, que consomem muita energia, frequentemente localizados em lugares como o norte da Virgínia; Columbus, Ohio; e Salt Lake City”. Especialistas consultados pelo site afirmam que há mais investimentos indo para Data Centers do que qualquer outro tipo de construções, como hotéis ou hospitais. 

Com a necessidade de energia barata e muita água, é claro que os olhos se voltam para a América Latina, e em especial para o Brasil, que possui 12% da água doce do mundo e uma matriz energética considerada limpa. Abundam pela internet relatórios de mercado demonstrando como a América Latina é o local ideal para a construção dessas infraestruturas. 

Chile, México e Brasil são pontos principais centros “devido às suas localizações estratégicas, infraestrutura robusta e políticas governamentais favoráveis”, como aponta este relatório da consultoria Helmi, que prevê que os investimentos devem quase dobrar antes do fim da década.

Nada disso ocorre sem um enorme impacto social e ambiental. No Uruguai, o Google planejava construir um Data Center em um terreno de 29 hectares em Montevidéu, mas protestos eclodiram na capital quando houve uma seca que durou meses. O projeto teve que ser reformulado pela empresa, incluindo refrigeração por ar e não por água, para ser aprovado. No Chile, um projeto de um novo Data Center em Cerrillos, área central do país, foi suspenso pela Justiça depois de protestos dos moradores locais. O projeto previa o uso de 169 litros de água por segundo. 

Aos poucos, outras comunidades começam a questionar este uso dos recursos naturais para servir às sedentas máquinas de IA – que, claro, atendem muito mais a consumidores do norte global que às populações locais. 

No estado mexicano de Querétaro, já há 10 Data Centers em funcionamento, e planos para outros 18, segundo Ana Valdivia, especialista em IA do Instuto para Internet da Universidade de Oxford disse ao site Mongabay. Um dos principais investidores é a Microsoft, que promete “acelerar a transformação digital do México” ao oferecer “para todas as organizações em todo o mundo, fornecendo acesso local a serviços em nuvem escaláveis, altamente disponíveis e resilientes”.

Com a emergência climática, o estado mexicano está sob risco de seca – e boa parte da sua população já tem que caminhar horas para encontrar água. Segundo Ana Valdivia, “os centros de dados estão extraindo água potável para seus negócios econômicos” enquanto os moradores “têm que caminhar quase um dia para regar seus feijões”.

(Aliás, quem nunca viu um Data Center, é algo pavoroso, digno e de filme de ficção científica: são fileiras e fileiras de hardware cercados de sistemas de esfriamento, com pouquíssimo trabalho humano envolvido, funcionando a toda. Uma infinidade de máquinas, sozinhas, consumindo energia e água enquanto processam todas as perguntas da humanidade.

Voltemos ao documento da CNI, uma peça que poderia figurar num museu do entreguismo nacional. Uma da maiores discordâncias das Big Tech e do CNI à lei proposta pelo Senado é o fato de que a lei prevê pagamento para uso de conteúdo que tem copyright para treinamento de IA. A ideia é não permitir que ferramentas como Chat GPT usem e abusem do fruto do nosso trabalho, para depois lucrarem com ele. 

Daí aquele item sobre sermos uma nação grande e diversa que pode alimentar as maquininhas de IA preditiva. Apesar da LGPD apontar no sentido oposto, parece que os donos da indústria estão contentes em vender os nossos dados bem baratinho – ou melhor, de graça. 

Essa é apenas uma das preocupações que fizeram a lei adotar uma filosofia “principiológica” em vez de prescritiva: como não se sabe o que ainda se vai inventar no campo da inteligência artificial, estabelecem-se princípios ao desenvolver tais ferramentas. E, a isso, a CNI responde no seu pronunciamento, sem nem corar: “O modelo regulatório sui-generis voltado para direitos do cidadão leva à insegurança jurídica”. 

Nada de novo sob o sol, por mais que se escondam sob os novos termos de ESG, economia “descarbonizada” e , agora, “powershoring” – termo que significa que empresas estão terceirizando suas plantas e Data Centers para países onde a energia é “limpa”, bem localizada, mas, principalmente, barata.   

Afinal, se nossa natureza, nossos recursos, nosso trabalho, nossos corpos, valem muito menos do que dos trabalhadores do norte, assim também será com nossos dados. 

É a boa e velha Macondo de sempre, já diria o escritor Gabriel García Márquez. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

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