quinta-feira, 4 de julho de 2024

 

Decisão do STF: a montanha pariu um rato

Foram sete anos para o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovar a descriminalização da maconha, e o resultado não só não modifica as políticas letais de segurança pública, baseadas na famigerada guerra às drogas, mas sequer corrige a injustiça comprovada em levantamentos e estudosflagrados com a mesma quantidade de drogas, negros são processados por tráfico enquanto brancos são enquadrados como usuários. 

Como resumiu a ministra Cármen Lúcia ao defender, com base nessas pesquisas, a definição de um critério objetivo (a quantidade) para essa separação: “Aquele menino ou aquele rapaz ou aquela pessoa que fosse pega numa determinada localidade, com determinadas características pessoais, era considerado traficante com a quantidade muito menor de drogas do que outro, em outra situação, em outro local, com outras características pessoais, passava a ser considerado apenas usuário”.

O problema é que, ao contrário do que pretendia a ministra, na forma em que foi formulada a decisão de tratar como usuário, não sujeito a processo penal, os que forem flagrados com até 40 gramas de maconha não protege os meninos negros e pobres da arbitrariedade de policiais, promotores e juízes.

Isso porque, de acordo com a decisão do STF, “essa presunção relativa de uso pode ser afastada quando estiverem presentes outras circunstâncias que caracterizariam tráfico de drogas”, como explicou o advogado especialista em direito penal e legislação sobre drogas Cristiano Maronna à jornalista Natuza Nery no podcast O Assunto.

 O modo de embalar a erva, as circunstâncias e local da apreensão estão entre os exemplos citados pelo ministro Alexandre de Moraes que poderiam levar o portador de uma quantidade pequena de maconha a um processo penal por tráfico. 
Todas elas sujeitas “ao valor probatório do testemunho policial e das provas a ele ancoradas”, nas palavras de Maronna. 

“A gente sabe pelas pesquisas que a grande maioria dos processos por tráfico de drogas, primeiro, envolve pequenas quantidades, compatíveis com o uso pessoal e, segundo, são processos em que as únicas testemunhas são os policiais envolvidos na ocorrência, que naturalmente confirmam a versão que eles próprios deram na fase de inquérito policial. Essa mecânica viciada que orienta a aplicação da lei de drogas infelizmente continua intacta, continua ilesa”, completou o advogado.
 
Ou seja, na prática “vai mudar muito pouco porque, afinal de contas, qualquer pessoa que for flagrada com a posse de drogas vai ser conduzida a uma delegacia para que se avalie se o caso é de uso ou de tráfico de drogas”. Tal como acontece atualmente.
 Do lado dos considerados usuários, cabe acrescentar: tanto a legislação vigente como a decisão do STF tratam todos os que eventualmente consomem drogas como “doentes”, obrigados a passar por tratamentos duvidosos. Já pensou, por exemplo, se qualquer pessoa flagrada com um drinque fosse tratada como alcoólatra? 
Há outro ponto delicado na decisão do STF: ela é transitória, valendo até que uma legislação completa sobre o assunto seja aprovada pelo Congresso Nacional. E aí, como sabemos todos, tudo indica que também essa questão será utilizada politicamente para agradar aos direitistas de olho na virtude alheia que compõem a maioria do Legislativo. 

Afinal, a obscurantista PEC (proposta de emenda constitucional) de autoria de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que propõe a criminalização de porte ou posse de qualquer quantidade de droga, já foi aprovada no Senado por ele presidido. Falta agora a votação na Câmara, que pouco alento traz para os que, de fato, se preocupam com o uso abusivo de drogas.

Como acontece no debate sobre o aborto, em que o proibicionismo acaba com qualquer possibilidade de prevenção consequente da gravidez indesejada – como a educação sexual nas escolas ou o acesso à pílula do dia seguinte –, há muito pouca informação disponível e confiável sobre o impacto real das diferentes drogas na saúde, impedindo uma abordagem mais consequente sobre o tema até mesmo pela imprensa, que tem o dever de divulgar informação de qualidade de interesse público. 

Posso apostar com vocês que um jovem que tem, por exemplo, acesso à informação sobre a (má) qualidade da maconha que circula no país – revelada em detalhes na reportagem “Como nasce o prensado”, publicada há mais de seis anos na Agência Pública e até hoje uma das mais lidas – tem mais motivos para tomar cuidado com o que consome do que aqueles sujeitos à pregação moralista de adultos desinformados, não raro abusivos em relação ao álcool e aos medicamentos de tarja preta. 

Informação sem preconceito e debate baseado em informação de qualidade são os melhores antídotos à adicção ou abuso de drogas lícitas e ilícitas. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

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