O julgamento de Lula e os espectros de Porto Alegre
por Thomas Bustamante
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publicado
26/01/2018 13h49,
última modificação
26/01/2018 16h23
O que vemos nesse processo é uma espécie de “justiça fast-food”, onde as conclusões já vêm prontas
Sylvio Sirangelo / TRF4

A opção dos desembargadores do TRF4 pelo corporativismo coloca em xeque o Estado de Direito.
Na primeira instância, o PT era
apontado como beneficiário de atos indeterminados decorrentes de uma
espécie de “conta corrente” de propina que mantinha com a OAS. Mas culpa
de Lula não era de gerir esse esquema, autorizar e chefiar as fraudes
em licitações etc. Lula foi condenado por Moro em razão de supostamente
ter recebido um apartamento da OAS, ou melhor, recebido um apartamento
melhor e mais valioso do que aquele que havia sido por ele adquirido de
uma incorporadora posteriormente adquirida pela OAS.
Como não se comprovou nenhum “ato
de ofício” de Lula conferindo qualquer vantagem à OAS, Moro sustenta que
esses “atos de ofício” são dispensáveis e que a responsabilidade de
Lula deriva do fato de ele ter aceito o apartamento em troca da quitação
de dívidas espúrias que a OAS tinha com o seu partido.
Essa narrativa é frágil por várias
razões. Primeiramente, Lula não era Presidente da República desde 2010
e, por isso, não poderia ter praticado qualquer ato de governo capaz de
conferir à OAS um benefício que justificasse essa benesse. Em segundo
lugar, a própria “conta de propina” não estava provada no processo, uma
vez que foi indeferida perícia contábil e inexiste prova do denominado
“caminho do dinheiro”, ou seja, a origem e o destino dos recursos
oferecidos pela OAS.
Finalmente, ainda que houvesse uma
prova de que a OAS “reservou” o apartamento tríplex para Lula, não
estava provado que Lula tivesse aceito o apartamento e definitivamente
não estava provado que o ex-presidente recebeu o apartamento ou tenha
qualquer outro tipo de acréscimo patrimonial. Pelo contrário, a prova
que se tem é de que o apartamento permanece até os dias atuais na
propriedade da OAS.
O acórdão do TRF, no entanto, aprofunda a violação ao princípio do Estado de Direito.
Na nova narrativa, Lula seria responsável não apenas por ter recebido
para si uma vantagem – o apartamento no Guarujá – mas por ser o “grande
gerente do esquema de propina” montado na Petrobrás. Gibran, Paulsen e
Laus consideram Lula responsável por todos os malfeitos de todos os
diretores da Petrobrás, simplesmente por tê-los nomeado ou mantido nos
seus cargos depois de iniciado o esquema de propina para favorecimento
em licitações. O apartamento no Guarujá passa a ser apenas um detalhe,
uma espécie de sobra que Lula pega para si após ter se beneficiado do
esquema por mais de uma década.
Qual o problema dessa segunda narrativa?
O mais grave problema,
provavelmente, está no fato de que essa mirabolante narrativa não tem
lastro probatório nos autos. Mesmo se tomarmos como incontroverso que
houve um esquema criminoso entre os diretores da Petrobrás e as empresas
participantes dos consórcios vencedores, teria que estar provado que
Lula participou desse esquema, nele interveio ou deixou propositalmente
de atuar para terminar com ele depois que tomou ciência de sua
existência.
O TRF-4 adota, dessa vez de
maneira muito mais expressa do que Moro, a denominada “teoria do domínio
do fato”. Lula é pessoalmente responsável, do ponto de vista criminal,
por tudo o que Paulo Roberto Costa, por exemplo, fez de errado na direção da Petrobrás.
O problema dessa narrativa é que
ela pressupõe essa conclusão como uma verdade dada, não se preocupando
em provar a veracidade dessa história “mais além de qualquer dúvida
razoável” (beyond reasonable doubt).
Raras vezes, no Brasil, se leu uma
decisão tão preocupada em discorrer considerações teóricas sobre a
prova, mas raras vezes se viu também uma decisão tão pouco preocupada em
manter-se fiel aos rigorosos standards de prova que ela prometeu aplicar.
A decisão afirma estar aplicando o
critério da prova inequívoca, que não admite qualquer dúvida razoável,
mas se contenta apenas em estabelecer uma versão que seja coerente com
os indícios encontrados nos depoimentos de co-réus e em notícias de
jornal citadas na sentença de primeiro grau.
Ao tentar se justificar para o
público externo, a corte enfaticamente sustenta: “estamos julgando
fatos, não pessoas”; ou então: “uma convicção há que estar provada mais
além de qualquer dúvida”, não sendo lícito ao juiz decidir apenas com
base nas suas impressões.
No entanto, contenta-se com uma
espécie de “reconstrução coerentista” que é aceita como suficiente para
oferecer a prova para suas convicções. Nessa perspectiva, basta ao juiz
apresentar uma versão dos denominados “fatos primários” (aqueles capazes
de levar à tipificação da conduta na norma) que seja coerente com os
“fatos secundários” (aqueles de fato verificados no processo com base em
parâmetros objetivos).
O standard da “prova mais
além de qualquer dúvida” não se sustenta com a possibilidade (ou mesmo
uma probabilidade!) da versão narrada na denúncia estar correta. Ele
exige muito mais. Só se cumpre esse critério probatório se não for possível imaginar nenhum “mundo possível” (possible world) em que os fatos secundários sejam verdadeiros, mas os fatos primários sejam falsos.
Traduzido em termos concretos, o
tribunal deveria ter formulado a seguinte pergunta: “é possível
imaginar, diante da prova apresentada, uma explicação da realidade em
que sejam verdadeiros os fatos secundários, mas não os primários?” Ou
ainda: “é possível imaginar um cenário em que as propinas pagas à
Petrobrás tenham existido, mas não tenham beneficiado a Lula ou este não
tivesse conhecimento e controle sobre elas?”
Repare que aqui não basta que seja
possível, ou coerente, ou até mesmo provável que Lula soubesse dos
acertos de propina e tivesse controle sobre eles. Exige-se mais: que não
seja possível uma explicação alternativa para os fatos, na qual Lula
não configure como o grande gerente desse esquema de propinas.
No processo, não há nada que leve a
essa conclusão. Aliás, uma análise cuidadosa deixa perguntas que
dificilmente um defensor da tese do Tribunal conseguiria responder: “por
que, então, Paulo Roberto Costa recebeu para si centenas de milhões de
dólares de propina, enquanto Lula ficaria apenas com uma reforma em um
apartamento de classe média?” Ou então: “por que Lula só receberia sua
fração em 2014, quatro anos depois de seu mandato ter acabado?”
Se Lula era o grande articulista,
talvez fosse possível imaginar duas hipóteses: 1) ou Lula queria
beneficiar a si próprio e a seus parceiros com essa propina, ou 2) Lula
queria manter o seu partido no poder e financiar campanhas eleitorais.
Na primeira hipótese, a pergunta
seria então: “por que Lula não recebeu mais nada durante o mandato?” “Se
ele era o grande chefe, por que Paulo Roberto Costa, que seria o seu
subordinado, recebeu centenas de milhões de dólares?
Na segunda hipótese, a pergunta
seria: “por que Lula deixou Paulo Roberto Costa receber centenas de
milhões de dólares enquanto o seu partido político ficava com menos do
que isso?”
Se estivéssemos diante de um
pragmatismo absurdo, de alguém que coloca o seu partido político acima
do Estado de Direito e da lei, que é tão instrumentalista a ponto de
achar que a sua permanência no poder é mais importante do que a
preservação do patrimônio do povo que ele pretende governar, “por que
deixar alguém que estaria roubando os recursos que seriam do próprio
partido político que ele resolve proteger mesmo à custa de tanto risco e
tanta ilegalidade”?
Essas perguntas poderiam ser
feitas, mas em nenhum momento são sequer cogitadas. E pior, a hipótese
de que Lula seria o “grande gerente” que comandaria o esquema de
propinas é tão coerente com os fatos provados nos autos quanto a
hipótese de que os diretores da Petrobrás, líderes partidários e
gerentes de empresas beneficiadas com o esquema estariam enganando a
Lula e colhendo benefícios para si próprios sem o seu consentimento. O
que leva, então, o tribunal a optar pela primeira hipótese?
Não se poderia dizer, por exemplo,
que Lula simplesmente perdeu o controle sobre seus aliados, como é
típico no “presidencialismo de coalizão”? Não foi exatamente isso
(perder o controle sobre seus aliados) que fez com que Dilma Rousseff
fosse cassada por um impeachment questionável? Ora, a prática ensina que
no presidencialismo de coalizão é fácil perder o controle sobre uma
enorme base aliada. Lula não poderia ter simplesmente perdido o controle
moral e jurídico sobre essa base, da mesma forma que Dilma perdeu o
controle político sobre sua base, levando a uma insurgência contra ela?
Por que pressupor, a priori, que essa hipótese é impossível? Lula não poderia simplesmente estar sendo enganado pelas pessoas que ele indicou?
De modo semelhante, no que concerne ao apartamento no Guarujá, a hipótese do primeiro depoimento de Léo Pinheiro é
de que o apartamento não era de Lula (apesar de ter sido montado para
tentar seduzi-lo com a possibilidade de compra) e este não sabia da
existência de qualquer esquema de propinas em sua empresa, enquanto a
hipótese do segundo depoimento de Léo Pinheiro é de que o
apartamento seria de Lula e a ele teria sido dado como uma forma de
pagamento pelos créditos que o PT adquiriu junto à OAS em vista dos
alegados esquemas espúrios de corrupção.
A pergunta que se faz é: por que acreditar no segundo depoimento de Léo Pinheiro, mas não no primeiro depoimento?
Seguramente, o segundo depoimento é
coerente com a tese que o MP adota (de que Lula era o grande gerente do
esquema de corrupção), mas será mesmo que existe prova “acima de
qualquer dúvida razoável disso”? É realmente impossível a existência de
qualquer outra explicação para o fato de a OAS ter reservado esse
apartamento para Lula?
Lembre-se que o custo total das
obras de reforma do apartamento foi um valor absolutamente ínfimo e
insignificante, quando comparado aos valores bilionários dos contratos
ou às centenas de milhões de dólares recebidas de propina pelos
diretores da Petrobrás. Como acreditar então que Lula comprometeria
tantos recursos do seu povo, correria tantos riscos, com tantos
benefícios para pessoas que não exerciam funções-chave em seu projeto de
governo, para ganhar tão pouco?
O que vemos nesse processo é uma
espécie de “justiça fast-food”, onde as conclusões já vêm prontas e o
juiz se comporta como um roteirista que pretende criar uma história
bonita que agrade a imprensa, ou acalme os mercados e os seus colegas
quando a Justiça é acusada de politizar-se. É uma opção por um
corporativismo que coloca em xeque o Estado de Direito e vende nossas
garantias constitucionais a preço de banana.
O que mais me escandaliza na decisão é que eu tive a impressão de que esses Desembargadores são completamente diferentes de Sérgio Moro.
Moro é um juiz que declara seu ódio ao PT, aparece em foto se
confraternizando com réu do PSDB, manda fazer condução coercitiva
espalhafatosa contra Lula, manda conduzir coercitivamente blogueiros e
jornalistas de esquerda, enquanto tolera que audiências protegidas pelo
segredo de justiça sejam transmitidas ao vivo para sites de direita, faz
interceptações telefônicas ilegais e depois manda para a imprensa, na
véspera do julgamento de um impeachment de Presidente da República, com o objetivo de desestabilizar o país.
Mas assistindo ao julgamento, não
me passou pela cabeça em nenhum momento que os desembargadores
estivessem em um complô malévolo para destruir o PT ou inviabilizar
eleitoralmente a esquerda brasileira, como muitos estão alegando por aí.
A impressão que eu tive é mais grave: é de que eles agem assim de forma
natural, agem com base no arbítrio, na discricionariedade livre, no
“achismo” e na narrativa mais coerente com as verdades ditadas pela
grande imprensa e pela onda malévola de punitivismo mesmo quando pensam
não estar agindo por preconceitos políticos. Ou seja, o espectro que nos
ronda depois desse julgamento é o medo de que a forma como julgaram
Lula seja a única maneira pela qual podemos esperar que eles julguem
qualquer outra pessoa, como eu e você.
*Thomas Bustamante é doutor em Direito (PUC/RJ) e Mestre (UERJ),
com período de investigação na University of Edinburgh, Reino Unido. É
Professor de Filosofia do Direito da UFMG, onde é membro do corpo
docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em
Direito. Autor da obra Teoria do precedente judicial: a justificação e
aplicação de regras jurisprudenciais.
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