É de
Montevidéu, no Uruguai, que o empresário Jonas Rafael Rossatto, de 29 anos, comanda o
Canabista,
serviço por assinatura que entrega no Brasil kits mensais com produtos
(legais) selecionados por influenciadores do universo de consumidores
de maconha.
Após escolher pacotes que variam entre 9,90 reais e 98 reais, os
assinantes recebem em casa discretas caixas com sedas, manuais e
acessórios. Com três meses de vida, o serviço tocado por Rossatto e
outros dois sócios conta com 150 assinantes, com idades entre 18 e 58
anos.
Leia Também:Maconha, um mercado de quase 6 bilhões de reais
"Sempre explicamos que não trabalhamos com aditivos, nem com produtos
ilícitos. Tudo tem nota e está nos conformes da lei", explica ele, que
também é ativista pela
descriminalização da maconha no Brasil e já participou de debates no Senado defendendo este ponto de vista.
"De um lado temos pessoas com pouca argumentação que estão
cheias de certezas vazias, que são os proibicionistas. Do outro, pessoas
cheias de argumentação e que continuam se questionando, mas não se
manifestam", critica.
Confira a entrevista:
CartaCapital: Como surgiu a ideia de criar o Canabista? Quem é o público que assina os kits?
Jonas Rafael Rossatto: Eu trabalho com o universo
canábico há um bom tempo e, nesses últimos anos, apareceu muita gente
explorando o mercado. É o caso da "seda" (papel para enrolar). Muita
gente importa/produz na China e em outros países. No entanto, esses
produtos são mais nocivos à saúde por causa do tratamento com cloro.
Além do fato de o usuário não dar a devida atenção à qualidade do papel, o alto custo nos quiosques, postos de conveniência e
headshops
também gera um problema para bastante gente. Isso fez surgir no Brasil
uma gama de produtos falsificados. Foi então que surgiu o Canabista:
para dar uma opção fácil para quem quer qualidade e custo benefício.
A ideia inicial do Canabista era levar seda de qualidade, redinhas
para dar manutenção no bong/pipe e uma cartilha de redução de danos.
Afinal, queríamos que as pessoas entendessem as vantagens do produto que
estão recebendo. Logo depois de fazermos o piloto, descobrimos que
poderíamos incluir mais novidades sobre o mercado canábico, fazer uma
curadoria com influenciadores e muitas outras coisas, até jogos.
CC: Quem são esses influenciadores?
JRR: Nas edições passadas contamos com a
participação do "THC Procê" (Youtuber que fala sobre cultivo, com 54 mil
seguidores) e Paulo Dubmastor (do Cidade Verde Sounds, com mais de 1
milhão de seguidores). Na edição do mês de janeiro será a Camila
Fudissaku (designer, que colabora com revistas Trip, TPM, entre outras).
CC: Hoje você mora no Uruguai, que costuma ser considerado
um exemplo de modelo de legalização para muitos defensores do tema no
Brasil. Como é a vida de um empreendedor canábico onde a maconha é
legal? Que diferenças você vê entre a realidade lá e a brasileira?
JRR: As diferenças começam na rotina. Aqui no
Uruguai dá pra levar uma vida mais tranquila, não preciso me preocupar
se a concorrência ou os conservadores vão me denunciar por
plantar cannabis, já que eu posso ter registro como cultivador.
Sobre o mercado canábico daqui do Uruguai, estou no processo de
entendê-lo, fazendo levantamento dos dados científicos sobre como a
legalização e a lei estão sendo reguladas, sobre o consumo, registro e a
demanda para trazer o Canabista para cá. E também estou trabalhando em
outro empreendimento legal, destinado a turistas brasileiros.

- Kits distribuídos pelo Canabista: planos variam entre R$ 9,90 e R$98
Sobre diferença prática, eu diria que é a lei. Mudar de país implica
entender outras leis. É o caso das aplicações de leis tabagistas ou de
acessórios fumígenos por exemplo, que após a legalização passam a valer
para esse mercado. A principal diferença do Uruguai é a cultura, você
percebe que as pessoas
sempre foram razoáveis com diversos temas polêmicos ao longo da história.
Um bom exemplo de decisão excepcional foi quando a Phillip Morris
perdeu um processo por tentar derrubar a lei antitabaco, visto que o
Uruguai não permite propagandas de cigarros em lugar algum, nem mesmo de
"seda" para enrolar.
Já no Brasil, temos um governo que quer proibir a maconha e não tem
nem planos pra vetar comerciais de cerveja ou outras bebidas alcoólicas,
que são a causa de aproximadamente 80 mil mortes por ano na América,
segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização
Mundial da Saúde (OMS). Com o agravante de que o Brasil é o quinto país
com maior número de óbitos ligados ao consumo de bebidas.
CC: Estima-se que no Brasil o comércio formal da maconha movimentaria cerca de 5,7 bilhões de reais por
ano. No entanto, estamos vivendo um momento mais conservador nesta
questão, com ministros do STF que se declaram abertamente contra a
legalização e com o ministro do Desenvolvimento Social e Agrário
criticando os processos de legalização no Uruguai e no Colorado. Como
você vê o horizonte para um mercado legal de cannabis no Brasil?
JRR: Em 2012, os pesquisadores da Unifesp apontaram
que no Brasil há 1,5 milhões de pessoas que usam maconha diariamente. Em
uma pesquisa do portal canábico
SmokeBud com mais de 15 mil
usuários, descobrimos que em média as pessoas consomem 25 gramas
(aproximadamente 100 reais) a cada duas semanas.
Fazendo um cálculo básico, percebemos que circulam no mercado ilegal
mais de 3 bilhões de reais por mês: dinheiro que o Brasil não vê. Isso
sem levar em conta o fato de os dados serem um "falso-positivo". Ou
seja, tem muita gente que fuma, mas que diante da lei que criminaliza,
responde que não fuma. E sem contar que o comércio de produtos legais
relacionados a cannabis já gera muito dinheiro.
No entanto, para muitos isso [o comércio de produtos legais] é
apologia e não uma oportunidade para empregar brasileiros e gerar
impostos para saúde, educação e cidadania.
Falar da descriminalização, legalização e regulamentação ainda é
complicado no Brasil, principalmente porque muitos não acreditam no
próprio País e não aceitam mudanças.
Nosso governo vai de mal a pior, temos tantos ministros e deputados
cassados, a maioria que compõe o cenário político é investigada por
corrupção e não inspira confiança. E nesse cenário de incertezas o
conservadorismo prospera.
O povo ainda tem uma visão muito errada do que é ser conservador, e
muitas vezes confunde valores e tradições que vêm de casa, da família,
com tomar decisões que inibem liberdades individuais. O conservadorismo é
o principal inimigo do progresso.
Pouco a pouco, as pessoas vão percebendo que o estigma que a maconha
carrega é fruto de propaganda e não dos fatos, mas a falta de debate
sobre o tema faz com que as mudanças demorem muito mais.
Deveríamos pensar mais no bem estar social como um todo, e parar de
tentar controlar o que só diz respeito a pessoa, mas encontramos
resistência em todas as instâncias, inclusive de pessoas que, na teoria,
estão posicionadas para melhorar nosso convívio, mas acabam criando
ainda mais dificuldades.
É o caso do atual ministro do desenvolvimento agrário,
Osmar Terra (PMDB-RS),
que quando era deputado chegou a ir até o Uruguai e tentou frear a
legalização na sessão da Comissão de Saúde Pública do Senado
uruguaio. Esse mesmo senhor já apresentou um projeto de lei que endurece
a pena para traficantes, seguindo o círculo vicioso das medidas
paliativas, e propôs também a regulamentação das internações
voluntárias, involuntárias e compulsórias (junto com Ronaldo
Laranjeira).
CC: Você participou de uma audiência pública no Congresso
sobre os impactos da legalização. No início de sua fala, você aponta a
importância dos defensores da legalização participarem do debate
público. Qual é a importância de usuários e defensores da cannabis se
posicionarem pública e politicamente?
JRR: A importância é extrema, de um lado temos
pessoas com pouca argumentação que estão cheias de certezas vazias, que
são os proibicionistas. Do outro, temos pessoas cheias de argumentação e
que continuam se questionando e que não se manifestam.
Está na hora destas pessoas amparadas por argumentos serem mais
participativas nas nossas políticas sociais. Puxar a fila, participar da
mudança. A essência da democracia é acatar a decisão da maioria, então
tem que haver participação, por que não vai cair um anjo do céu e mudar
as coisas como um milagre. Quem faz a política é a parte da sociedade
que participa.
CC: Na sua opinião, os canabistas estão saindo mais do armário? Isto é, há mais pessoas dispostas a dizer que fumam?
JRR: Sim, com certeza os usuários estão dando mais as caras. Com esse
"green rush" [corrida
verde] vemos usuários encontrando mais argumentações relacionadas a
cannabis, de forma medicinal, social, sócio-econômica e até mesmo
religiosa. Temos usuários usando roupas, acessórios, e escutando músicas
sobre o tema.
As redes sociais foram um grande passo para mostrar que ninguém
estava sozinho. Também há o fato de que a violência contra os usuários
de maconha segue agravando-se. Muitas pessoas cansaram de ficar sem
saída, e essa repressão as levou a expor esse problema que deveria ser
questão de saúde pública, não criminal.
CC: Ao mesmo tempo, ainda há muita resistência a
respeito do tema: Dois em cada três brasileiros adultos (66%)
declararam que fumar maconha deveria continuar sendo proibido por lei
segundo o Datafolha. Apesar do número ser alto, é o menor da série
histórica. Na sua visão, quais são os entraves para um melhor debate
sobre a legalização no Brasil? Por que fumar maconha ainda é um tabu
para a maioria?
JRR: Acho que para compreender melhor esse problema
precisamos olhar para a herança do Brasil colônia, que se estendeu até
1800. Somos um país jovem, com uma democracia mais jovem ainda, é
natural que o progressismo encontre muitas barreiras, sobretudo pela
falta de debate.
A maior parte do Brasil ainda é muito mal informada, somando a isso a
falta de engajamento e a resistência contra mudanças, o panorama é de
um conservadorismo velado que não se altera com fatos. É uma tarefa
árdua mudar a cabeça da população, sobretudo de pessoas mais velhas.
Os problemas que enfrentamos com política hoje são reflexos da falta
de diálogo, de levar decisões públicas no "piloto automático" e votar em
candidatos mais pela pressão midiática do que pelas propostas.
Com a legalização é a mesma história, ninguém procura saber quais são
os benefícios e malefícios da maconha, seguem um modelo de pensamento
de décadas atrás, e muitos sequer fazem comparações imediatas, com o
álcool, por exemplo.
Se o álcool fosse alvo da mesma cruzada moralista que persegue a
maconha, o alcoolismo sofreria um duro golpe. Mas o brasileiro não
exercita o senso crítico, a maioria prefere informação mastigada e
opiniões prontas.
CC: Na sua opinião, ainda há preconceito contra
negócios como o Canabista? Que tipo de crítica você costuma receber?
Como responde a elas?
JRR: Há um enorme preconceito não só no Brasil, mas
no mundo todo. Já fomos expulsos de bancos americanos por não poder ter
absolutamente nada relacionado a cannabis, mesmo que acessórios não seja
ilegal. Também já conversei com muitos canabistas famosos, como
músicos, comediantes e atores, que não querem participar e nem mesmo dar
uma entrevista para não perder 50% da fatia do mercado.
O contratante não vai chamar pro comercial quem participa desse meio.
Você pode até cantar sobre, fazer piada sobre, mas falar de maconha é
falar do lado particular da celebridade, e há muita gente que não está
disposta a abrir esse diálogo.
Do outro lado existem grandes players tabagistas que atuam no mercado
canábico, mas não querem ser notados no segmento canábico - o que faz
com que o segmento seja fraco e quase não exista.
No Canabista tem muita gente que fica com receio de assinar achando
que um policial vai levar o kit em casa. Mas sempre explicamos que não
trabalhamos com aditivos, nem com produtos ilícitos. Tudo tem nota e
está nos conformes da lei.
Sempre haverão críticas, mas sempre tentamos resolver da melhor forma
e traduzir isso de forma a provar o potencial econômico para quem está
assinando, para quem está participando e para quem está aparecendo na
curadoria. Tentamos criar o cenário que se esse mercado empregar mais
gente, a proibição e a lei vão mudar.
CC: Quais são as consequências, na sua opinião, do modelo de “guerras às drogas” ainda vigente no Brasil?
JRR: Já fazem 47 anos desde que o presidente dos
Estados Unidos, Richard Nixon, declarou guerra às drogas e o mundo
seguiu o exemplo. De lá pra cá, muitos já apresentaram dados para mudar
essa política falha, mas continuamos adotando o mesmo modelo paliativo.
Isso faz com que seja desperdiçado dinheiro, tempo e treinamento para
prender pessoas que estão exercendo sua liberdade de escolha. Se usar
drogas faz mal, isso é uma questão de tratamento, não de encarceramento,
visto que não há dano nenhum a terceiros.
Isso também contribui para a superlotação das cadeiras. Deveríamos
colocar na cadeia quem realmente deveria estar lá, como corruptos,
bandidos e criminosos de alta-periculosidade. Sempre tivemos uma grande
lavagem de dinheiro para controlar a nossa administração pública, que só
enxuga o gelo.Devíamos olhar para países como os Estados Unidos, que
tem a maior população carcerária do planeta, e aprender com os erros
deles.
No fundo, toda a questão de segurança pública depende do mesmo
remédio: educação e distribuição de renda. O sistema penitenciário hoje
no Brasil só contribui para que o detento mergulhe ainda mais no crime. É
um sistema puramente punitivo, que ao invés de reabilitar, acaba com a
vida do cidadão.