Xadrez do início de uma nova campanha histórica, por Luis Nassif
sex, 14/07/2017 - 06:43
Atualizado em 14/07/2017 - 13:42
Peça 1 – o julgamento de Lula
O ponto central da acusação de Sérgio Moro contra Lula é
relativamente simples (mencionei acusação de Sérgio Moro devido ao fato
de ele ter se comportado como acusador, não como juiz)
Tese 1 - Lula ganhou um apartamento (ou a reforma dele) da OAS.
Tese 2 – Houve uma contrapartida em vantagens para a OAS.
Tese 3 – Como o apartamento não está em nome de Lula, mas da OAS, então se tem um caso de lavagem de apartamento ops, de dinheiro.
Tese 1 - Sobre o presente da OAS a Lula
O mínimo a ser apresentado por Sérgio Moro deveria ser a prova
cabal de que o apartamento é, de fato, de Lula. Moro apresentou uma
montanha de documentos mostrando aparente interesse do casal Lula pelo
apartamento. E ficou nisso.
Há uma versão de Lula, consistente, e que teria que ser derrubada para a condenação.
1. Dona
Marisa adquiriu uma cota do edifício, através da Bancoop, a
cooperativa dos bancários, muito antes da OAS assumir o empreendimento.
2. A Bancoop entrou em crise e o empreendimento foi transferido para a OAS. Dona Marisa manteve as cotas.
3. A OAS fez reformas no apartamento e ofereceu a dona Marisa.
4. Lula viu o apartamento, não gostou e desistiu. Dona Marisa entrou com pedido de devolução do seu dinheiro.
Há várias hipóteses verossímeis para o item 3
Hipótese 1 – interessava à OAS ter um ex-presidente como condômino, porque imediatamente valorizaria as demais unidades à venda.
Hipótese 2 – quis fazer um agrado a Lula, até então o político mais popular do planeta.
Em relação ao item 4, podem-se aventar várias hipóteses:
Hipótese 2 – Estava tudo acertado, mas o vazamento do caso para a mídia fez Lula recuar.
É possível que seja verdade? É. É possível que seja falso? Também
é. É por isso que o direito civilizado consagra a máxima: in dubio pro
reo. Ou seja, a dúvida opera em favor do réu. Se há várias versões, e a
acusação não consegue comprovar a sua versão, não há como condenar o
réu.
De qualquer modo, ao não se efetivar a venda (ou transferência) não houve crime. Não existe o crime de intenção.
É significativa a maneira, nessa quinta, como se pronunciaram os
juristas, mesmo caçados com lupa pela mídia. No máximo ousaram discutir
aspectos secundários, como a dosimetria da pena, ou as justificativas de
Moro para a não prisão de Lula..
Em relação ao mérito, o pouco que se viu precisou recorrer a malabarismos a altura de Houdini, o mágico:
Leia esse primor, publicado na Folha
Em geral, quem ocupa altos escalões da administração pública ou de empresas toma cuidados redobrados para não deixar digitais.
É muito difícil que um empresário
corrupto fale explicitamente ou troque mensagens sobre vantagens ilegais
com agentes públicos graduados.
Como disse um ex-dirigente de uma grande companhia pagadora de propinas, isso é considerado até "deselegante" por essas pessoas.
Para quê a OAS daria um apartamento para Lula? Evidentemente, para
ser usufruído. Se fosse apenas pelo valor, bastaria depositar o dinheiro
em uma offshore. O dinheiro transitaria por várias contas e Lula
poderia comprar o apartamento que quisesse, onde quisesse. Quando o
chefão saca do seu cartão de crédito, ninguém comete a “delegância” de
perguntar sobre a origem da grana.
Mas, segundo a acusação, a OAS pagou em espécie: o triplex. Para
usufruir do apartamento, Lula teria que ir até o apartamento, usar o
apartamento quando fosse à praia, se expor aos vizinhos e à imprensa.
A não ser que se imaginasse que o apartamento pudesse ser guardado
em um escaninho do escritório da Mossak Fonseca, que a Polícia Federal
invadiu atrás de provas contra Lula, encontrou contas da família Marinho
e amoitou porque porém, contudo, todavia, há limites para o exercício
da coragem.
Todas as provas documentais apresentadas por Moro comprovam que o
casal Lula, em algum momento, teve a posse de cotas do edifício, antes
da OAS entrar, acompanhou reformas que ocorreram, os executivos da OAS
preparavam o apartamento para o casal e... acabam por aí. Não há uma
mísera prova de que houve a transferência final do apartamento para
Lula.
Tese 2 – a prova do suborno
Sem conseguir provar a primeira tese, o indômito Moro parte para a
segunda: a contrapartida. Ou seja, apontar o contrato conquistado pela
OAS em troca do tal triplex.
Em uma das gestões da prefeitura de São Paulo, correu o boato de
que o prefeito teria sido alvo de uma proposta de suborno de R$ 15
milhões, devidamente recusada. Tudo para que não levasse adiante a
proposta de só autorizar a fiscalização de poluição para carros com mais
de três anos de vida.
Por aí se percebe a desproporção entre o “preço” da corrupção de um
prefeito (em cima de um contrato menor) e as possibilidades ao alcance
de um presidente corrupto. Só a proposta da JBS para o representante de
Michel Temer acenava com a possibilidade de R$ 500 mil semanais por 20
anos. 54 x 500.000 x 20 = 540.000.000
Mesmo que Lula fosse “baratinho”, ainda assim o juiz teria que
identificar qual contrato foi obtido pela OAS em troca do tal triplex.
Confira essa segunda pérola, no artigo do especialista à Folha,
para demonstrar como Moro é um sujeito ladino, que apanhou Lula em uma
pergunta-armadilha:
Moro perguntou se a palavra final
sobre a indicação de diretores da Petrobras para aprovação pelo conselho
da estatal era da Presidência da República.
Lula respondeu bem ao seu estilo: "Era, porque senão não precisava ter presidente".
Lembra uma cena de um velho programa de humor da finada TV Tupi,
com Walter D’Ávila fazendo o seu Explicadinho, que só fazia perguntas
óbvias porque queria entender “nos mínimos detalhes”.
Para superar a falta de provas, Moro desenvolve, então, a teoria do
fato à pururuca – que reza que, em qualquer hipótese, um chefe de
partido contrário ao juiz sempre será responsável por todos os atos
praticadas por seus subordinados.
Moro ressuscita um dos clássicos do direito brasileiro, que ele,
como assessor colocou na pena da Ministra Rosa Weber, na AP 470: quanto
mais alto na hierarquia do crime, mas difícil conseguir a prova dos
crimes da pessoa; logo, a ausência de provas sobre fulano é a
comprovação de que ele está no ponto mais alto da hierarquia do crime.
Tese 3 – o destino do dinheiro
Moro não conseguiu comprovar que o apartamento foi transferido para Lula.
Em países anglo-saxões, desses que cultivam essa coisa sem-graça,
limitativa da criatividade, chamada de lógica, se concluiria que se a
prova do crime era a transferência do bem para o réu e se o juiz não
conseguiu comprovar a transferência do bem para o réu, logo ele não
conseguiu comprovar a culpa do réu.
O realismo fantástico curitibano produziu um segundo clássico do
direito: se não consigo comprovar a propriedade do apartamento, então
houve lavagem de apartamento ops, de dinheiro.
É o primeiro caso de lavagem de apartamento da história.
Sabe-se da existência de dinheiro lavado, ou seja, colocado em nome
de um offshore para ocultar o verdadeiro proprietário. Mas lá no
paraíso fiscal, há um registro em cartório dizendo que a offshore é do
malandro. Depois, o malandro pode internalizar dinheiro em nome da
offshore e adquirir bens que, aqui, serão da offshore mas, lá, no final
da linha, serão do malandro que é dono da offshore. A família Serra é
especialista nisso.
O fantástico juiz Moro conseguiu criar a figura jurídica da lavagem
de apartamento sem transferência do bem e sem a existência de uma
offshore.
Peça 2 – o papel do TRF4
Há três possibilidades, no julgamento de Lula em segunda instância.
Possibilidade 1 – a confirmação da sentença
O eventual endosso do TRF4 a Moro seria, na prática, convalidar o
primeiro caso de condenação sem prova da história do Judiciário.
Significaria uma mancha indelével na biografia de cada desembargador.
Possibilidade 2 – redução da sentença mas inabilitação política de Lula
Reduz-se a sentença significativamente, mas mantém-se a condenação. Bastará para Lula não poder se candidatar mais.
Possibilidade 3 – revogação da sentença
Devolverá ao Judiciário o papel de guardião da legalidade. Mas tem mais em jogo, talvez a própria dignidade do Judiciário.
Ontem mesmo a Globo deu início ao seu jogo predileto: praticar uma
chantagem inicialmente discreta, expondo cada um dos magistrados que
analisarão os recursos da defesa de Moro
esperando, como efeito, as pressões de colegas e familiares sobre eles.
Os recalcitrantes, mais à frente, receberão tratamentos mais
drásticos, como as que expuseram o Ministro Ricardo Lewandowski a
escrachos em aeroportos.
Mas, hoje em dia, o clima é outro. Não será fácil para o grupo que
colocou Temer no poder deflagrar outra ofensiva de assassinatos de
reputação.
Peça 3 – o fim da Lava Jato
O julgamento de Lula em segunda instância ocorrerá em pleno período
eleitoral, insuflando os ânimos. Mas sem a Lava Jato, como foi
conhecida até agora. O fator Moro turbinado a Globo se encerra ai.
Do lado da nova Procuradora Geral, Raquel Dodge, o movimento lógico
será ampliar os quadros da operação. Significará conferir mais
profissionalismo às investigações e, ao mesmo tempo, diluir a influência
deletéria dos atuais titulares.
Do lado da Polícia Federal, já houve a dissolução do grupo de delegados, com os trabalhos sendo assumidos pela PF como um todo.
Desmontam-se, assim, as condições que permitiram a politização, o
protagonismo excessivo e a contaminação da imagem da PF e do MPF.
Peça 4 – o jogo político
Entra-se, a partir de agora, em um embate decisivo para o futuro da
democracia em nosso país. Ousaria dizer que há semelhanças emocionantes
com o início das diretas. Em ambos os casos, está em jogo o futuro da
democracia brasileira.
O primeiro round será o julgamento de Lula pelo TRF4. Nele, a Globo
jogará todas suas forças. Como consequência, se exporá mais ainda, como
a Força, um poder incompatível com um regime democrático.
Os desembargadores do TRF4 terão, pela frente, o maior desafio da
sua vida. Não se trata meramente de absolver ou condenar Lula, mas
demonstrar até que ponto pautam sua conduta pelos princípios jurídicos,
pelo primado da lei. Até que ponto colocarão o respeito à sua profissão
acima do temor natural que a Globo infunde.
Por outro lado, paradoxalmente, quanto maiores os abusos cometidos
nesse julgamento, maior já tem sido a reação. Em outros tempos, havia a
facilidade do discurso único escondendo argumentos contrários, impedindo
o contraponto. Hoje em dia, não. Há uma enorme polarização nas redes
sociais, mas também um período de ampla informação.
A Lava Jato caiu na sua própria armadilha.
Na fase inicial, decidiu escancarar cada passo, em um momento em
que tinha o controle absoluto sobre o processo, porque na fase de coleta
de provas. Cada passo do inquérito era reaplicado pelos jornais, como
se fosse a verdade definitiva.
À medida em que o tempo foi passando, os inquéritos se avolumando,
começaram a aparecer as contestações da defesa. E um público mais
antenado passou a recolher argumentos de lado a lado, comparando
argumentos, entendendo as peculiaridades do processo penal e,
finalmente, começando a fazer juízo de valor.
Nos últimos meses, a parcialidade da tropa de Moro foi esmiuçada,
diariamente exposta pelo trabalho pertinaz dos advogados de Lula. Eram
chuviscos diários de episódios regando os cérebros do público, até que
começasse a brotar, mesmo nos mais leigos, o discernimento sobre os
pontos centrais da denúncia, a serem analisados.
A opinião pública mais informada aprendeu a diferenciar a delação
pura e simples daquela acompanhada de provas; percebeu que, para gozar
do dinheiro roubado, bastava os delatores tratarem de implicar Lula;
deu-se conta de que nenhuma delação veio acompanhada de provas.
Com acesso à Lava Jato, jornalões traziam as matérias. E os portais
e blogs independentes faziam o filtro, colocando lentes de aumento nos
detalhes significativos, que a cobertura da velha mídia deixava escapar.
É impossível fazer jornalismo sem um mínimo de legitimidade. Será
impossível, até para a disciplinadíssima tropa de jornalistas do Globo,
que aderem instantaneamente, com a fé cega dos crentes, a qualquer
mudança de ventos do grupo, abraçar a causa.
O último ato de Moro é o primeiro de uma luta cívica que poderá ser
tão memorável quanto as diretas, ambas em defesa da democracia.
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