A
tradicional indústria da seca permite que o sertanejo morra de sede com água no
joelho. Entrevista especial com João Abner Guimarães
“Qual a explicação para no
Nordeste semiárido se disponibilizar água para irrigação durante um evento com
criticidade secular? Ou se tem muita água – ao contrário do que se propaga, ou
não se tem gestão, ou as duas coisas”, afirma o engenheiro hidráulico.
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Foto: Fernando
Frazão/Agência Brasil
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A atual seca no Nordeste - NE Setentrional brasileiro “tem
posto em xeque o sistema de gestão dos recursos hídricos”, e na parte interiorana
do Rio
Grande do Norte “se
repete o quadro de colapso generalizado do abastecimento de água retratado nosemiárido brasileiro,
apesar de atualmente constatarem-se reservas substanciais de água para atender
plenamente o abastecimento de água de toda população do Estado”, diz João
Abner Guimarães à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail,Guimarães informa que a “abordagem
governamental” diante da seca tem sido “a tradicional”, ou seja, “os governos
municipais e estaduais, após decreto de emergência, se livram das suas
responsabilidades, levando a uma dependência quase que total das políticas governamentais aplicadas na região semiárida pelo
governo federal, que se desenvolvem com dois tipos de abordagem: as ações
emergenciais precárias de abrangências locais e as macropolíticas que pouco
enxergam as diversidades regionais”. Segundo ele, entre as políticas desenvolvidas,
“contraditoriamente, assegura-se 100% de garantia” de abastecimento “para os
maiores projetos de irrigação, enquanto faltam meios (sistemas adutores de
grande porte) para assegurar essa mesma garantia ao consumo humano das pequenas
e médias cidades que são abastecidas pelos reservatórios menores”.
Para João
Abner Guimarães, a atual gestão dos recursos hídricos na região está relacionada à história
da indústria
das secas, que tem “promovido o desenvolvimento insustentável
na região”. Além da prioridade da irrigação em larga escala, o pesquisador
afirma que “desde o Império a política hidráulica do governo federal permanece a mesma noNE como uma reserva de mercado do parque
da indústria da construção civil pesada do Brasil, que tem como principal
interesse o desenvolvimento de projetos de obras hídricas tradicionais, tais
como a construção de grandes açudes e canais, seguindo um plano interminável de
obras em que, com a limitação de locais para a construção de novos açudes, as
transposições dão continuidade”.
João Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia Hidráulica e
Saneamento, professor nos cursos de Engenharia Sanitária e Engenharia Civil da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Sobre a transposição do Rio
São Francisco, publicou diversos artigos, tais como A
transposição do Rio São Francisco e o Rio Grande do Norte, O
lobby da transposição e O
mito da transposição.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Qual é a situação da seca no Rio
Grande do Norte neste momento?
João Abner Guimarães - O Rio Grande do Norte apresenta-se em melhor situação
comparativamente aos outros estados do NE Setentrional – compreendidos entre os riosSão Francisco e Parnaíba -, tendo em vista que a maior parte
(60%) da sua população urbana situada no litoral leste, onde se encontra a
região metropolitana de Natal, e a
região intermediária agreste é abastecida por sistemas hídricos do litoral
pouco afetado pela seca. O mesmo acontece com a metade da população restante
que é atendida por sistemas adutores de grande porte, que captam água dos
maiores e mais seguros reservatórios do interior do Estado.
Por outro lado, apenas na parte
interiorana do Estado, que não é atendida por sistemas adutores de maior porte,
é que se repete o quadro de colapso generalizado doabastecimento
de água retratado
no semiárido brasileiro, apesar de atualmente
constatarem-se reservas substanciais de água para atender plenamente o
abastecimento de água de toda população do Estado.
IHU On-Line - O que tem mudado
na região por conta dessa seca?
João Abner Guimarães - Infelizmente, a abordagem governamental é a
tradicional, os governos municipais e estaduais, após decreto de emergência, se
livram das suas responsabilidades, levando a uma dependência quase que total
das políticas governamentais aplicadas na região semiárida pelo governo federal, que se
desenvolvem com dois tipos de abordagem: as ações emergenciais precárias de
abrangência locais e as macropolíticas que pouco enxergam as diversidades
regionais.
IHU On-Line - Pode nos dar um
panorama de como a seca castiga os diferentes estados do Nordeste?
João Abner Guimarães - Vou me restringir aos estados do NE Setentrional,
já citado, onde a seca atinge fortemente e generalizadamente
as atividades agropecuárias de sequeiro, dependentes das chuvas e o
abastecimento humano rural difuso e das pequenas e médias cidades, demonstrando
a falência do modelo atual de abastecimento de águaindividualizado sustentado em
reservas locais. Fato esse comprovado pelo emprego generalizado de
carros-pipas, em número recorde, atualmente na Região.
Então, a solução passa pela
implantação de sistemas adutores de grande porte que captem água das reservas
permanentes e mais seguras disponíveis. Para isso, os estados apresentam-se com
potenciais distintos:Pernambuco tem o rio
São Francisco correndo ao longo do seu território; Ceará detém 50% do potencial de
armazenamento de água e os maiores reservatórios da região; no coração da seca
do Rio
Grande do Norte, no sertão central, é onde se concentram as
maiores reservas de água e a maior disponibilidade per capita do Estado.
Portanto, pode-se afirmar que esses três estados têm comprovada
autossuficiência global de água para distribuição em condições sustentáveis.
Entretanto, o quadro da Paraíba reconhecidamente é o mais crítico da
Região, apresentando-se com o menor potencial hídrico efetivo da Região, o que,
em tese, justificaria a importação de água de outros estados notadamente para
atender as demandas concentradas na bacia do rio Paraíba decorrentes do
abastecimento de água de Campina Grande, a segunda maior cidade do Estado.
"A
questão central da gestão de recursos hídricos é como assegurar o uso
prioritário do consumo humano frente aos usos hidroagrícolas sustentados
pelos maiores reservatórios"
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IHU On-Line - Como é feita a
gestão dos recursos hídricos nos diferentes estados do Nordeste?
João Abner Guimarães - A seca atual tem
posto em xeque o sistema de gestão dos recursos
hídricos da RegiãoNE. As
instituições diretamente responsáveis, os órgãos gestores executivos, tanto em
nível federal como estadual, têm assumido uma postura secundária na condução e
coordenação das ações emergenciais da seca conduzidas pela defesa civil e pouco
se vê o envolvimento dos comitês de bacia no exercício do papel moderador dos
conflitos em épocas extremamente críticas como a atual. Uma outra contradição é
a ausência de debates e mobilizações populares para analisar e apontar solução
para os graves problemas da seca atual.
IHU On-Line - Como se dá a
gestão dos recursos hídricos em períodos de seca como o que se vive hoje na
região? O modo como é feito o abastecimento de água é sustentável?
João Abner Guimarães - A questão central da gestão
de recursos hídricos é
como assegurar o uso prioritário doconsumo
humano frente aos
usos hidroagrícolas sustentados pelos maiores reservatórios, tais como o Castanhão(CE)
e Armando
Ribeiro (RN).
Hoje, a quase totalidade dos municípios abastecidos por carro-pipa se encontram
desconectados desses maiores reservatórios.
Contraditoriamente, assegura-se
100% de garantia para os maiores projetos de irrigação, enquanto faltam meios
(sistemas adutores de grande porte) para assegurar essa mesma garantia ao consumo
humano das
pequenas e médias cidades que são abastecidas pelos reservatórios menores.
Uma das principais lições dessa
seca secular é a constatação da plena capacidade de atendimento dos usos
prioritários humanos no Ceará e no Rio Grande do Norte;
para isso não falta água, claro, desde que se restrinjam os usos menos
prioritários estabelecidos na Lei 9.433. Fato
esse que não acontece nesses estados com relação aos grandes irrigantes, ao
contrário dos pequenos, que estão sendo perseguidos.
Esse quadro, por si só, aponta
falência do sistema de gestão dos recursos hídricos do NE e como exemplo emblemático a
experiência do Ceará se
sobressai. Mesmo ameaçado pela falta d'água para o consumo humano deFortaleza, o
governo do Ceará vinha oferecendo água em larga escala para a irrigação, apesar
da seca secular, contrariando a sua própria política de recursos hídricos
baseada no parâmetro Q90+, regulado
por níveis de alerta nos açudes para assegurar água para irrigação até que o
evento com criticidade de 20 anos de período de retorno seja atingido, no caso
atual já muito superado.
Então, qual a explicação para no NE semiárido se disponibilizar água para irrigação
durante um evento com criticidade secular? Ou se tem muita água – ao contrário
do que se propaga, ou não se tem gestão, ou as duas coisas.
IHU On-Line - O senhor tem defendido em alguns debates a implementação da Lei das Águas no Nordeste. Em que consiste sua proposta e de que modo isso ajudaria a resolver o problema de gestão hídrica na região?
IHU On-Line - O senhor tem defendido em alguns debates a implementação da Lei das Águas no Nordeste. Em que consiste sua proposta e de que modo isso ajudaria a resolver o problema de gestão hídrica na região?
João Abner Guimarães - Em 100 anos de história, a indústria
das secas tem
promovido o desenvolvimento insustentável na Região, priorizando a irrigação em
larga escala numa região semiárida bastante populosa, como é o caso atual no CE e RN. Dessa
forma, o problema não é legal, mais sim institucional. Está em xeque o sistema
gestor da Região, no caso, a Agência
Nacional de Águas – ANA, responsável pela operação dos grandes
açudes federais e os comitês de bacia.
IHU On-Line - Que relações o senhor estabelece entre a indústria da construção civil e a manutenção da seca em regiões do Nordeste?
IHU On-Line - Que relações o senhor estabelece entre a indústria da construção civil e a manutenção da seca em regiões do Nordeste?
João Abner Guimarães - O tempo passa e desde o Império a política hidráulica do governo federal permanece a mesma
no NE como uma reserva de mercado do parque
da indústria da construção civil pesada do Brasil, que tem como principal
interesse o desenvolvimento de projetos de obras hídricas
tradicionais, tais como a construção de grandes açudes e canais,
seguindo um plano interminável de obras em que, com a limitação de locais para
a construção de novos açudes, as transposições dão continuidade. Essa é a
verdadeira indústria das secas no Brasil.
"Uma
das saídas para o enfrentamento da problemática das secas no NE passa pela
melhoria dos sistemas de abastecimento de água da região, investindo-se no
setor de produção, que inclui captação, tratamento e adução até as cidades"
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IHU On-Line - O senhor é um
defensor de novos sistemas de adutores. Quanto e como deveria se investir nesse
sistema para garantir o abastecimento de água em períodos de seca como esse?
João Abner Guimarães - No meu estado (RN)
o sertanejo morre de sede com água no joelho. A Região Central, que possui a
maior disponibilidade per capita de água, superficial e subterrânea, cerca de o
dobro da do estado, sofre um quadro generalizado de colapso dos sistemas de
abastecimento das cidades sustentados em reservatórios de porte médio locais.
Paradoxalmente, a Companhia de Água do Estado - CAERN encontra-se paralisada aguardando o socorro do governo federal, apesar de a experiência mostrar que soluções relativamente simples e baratas de sistemas adutores de porte médio seriam perfeitamente viabilizadas pelo autofinanciamento do consumidor local.
Paradoxalmente, a Companhia de Água do Estado - CAERN encontra-se paralisada aguardando o socorro do governo federal, apesar de a experiência mostrar que soluções relativamente simples e baratas de sistemas adutores de porte médio seriam perfeitamente viabilizadas pelo autofinanciamento do consumidor local.
Creio que uma das saídas para o
enfrentamento da problemática das secas no NE passa pela melhoria dossistemas de abastecimento de
água da região,
investindo-se no setor de produção, que inclui captação, tratamento e adução
até as cidades. A experiência atual mostra que a fragilidade do sistema se
encontra nesse setor, apesar de, em regra, não faltar água para o abastecimento
humano.
Portanto, atualmente, o grande
desafio é a captação dos recursos
financeiros necessários
para os investimentos urgentes na implantação dos novos sistemas produtores
e/ou adutores num ambiente de escassez de recursos governamentais cada vez
maior.
Por outro lado, o elevado custo
da água suplementar
arcado pela população demonstra grande rentabilidade e capacidade de
autofinanciamento do setor, justificando a busca de parcerias público-privadas
para melhorar os serviços públicos de abastecimento de água, fugindo-se, dessa
forma, da disputa na vala comum dos parcos recursos emergenciais
disponibilizados pelo governo federal no momento atual, sem passar
necessariamente pela privatização do setor. Sendo essa, talvez, a principal
lição que poderíamos tirar dessa terrível seca que, antes de tudo, revelou a
fragilidade do setor estatal de abastecimento de água da região.
Por
Patricia Fachin
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