Na última semana assistimos a um grande show de horror no Brasil. Uma
questão na prova do Enem que trazia uma frase da filósofa francesa
Simone de Beauvoir e
o tema da redação que versava sobre a persistência da violência contra a
mulher, causou falsa indignação e respostas tenebrosas por parte de
alguns membros da
intelligentsia (muita ironia, por favor) brasileira.
Marco Feliciano, em sua página de Facebook, desaprovou a questão. Disse se tratar de tentativa de doutrinamento e completou:
“A primeira pergunta apresentado na prova do Enen
(sic) deste
sábado versa sobre um assunto em que em todas as esferas legislativas
de nosso país foi vencida e jogada no lixo, a teoria de gênero, algo que
sutilmente tentaram nos incutir de forma sorrateira e rechaçada pelos
parlamentares eleitos democraticamente pela maioria da população e que
todas as pesquisas apontam como maioria de fé Cristã e conservadora”,
opinou.
“Essa frase da Filósofa Simone de Beauvoir é apenas opinião pessoal
da autora, e me parece que a inserção desse texto, uma escolha adrede,
ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve
ensinar aos nossos jovens.”
O promotor de Justiça de Sorocaba, Jorge Alberto de Oliveira Marun, também sobre Beauvoir escreveu em sua página de Facebook:
“Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam
jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma
banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo
capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se
depila”, escreveu.
A declaração fazia referência à célebre frase de Simone de Beauvoir,
”Não se nasce mulher, torna-se mulher”. O comentário ofensivo e
desprovido de reflexão crítica rendeu uma nota de repúdio da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB).
Para quem estuda a obra de Simone de Beauvoir como eu, foi uma
alegria ver uma questão sobre sua obra numa prova de alcance nacional.
Beauvoir foi uma intelectual importante que, ao lançar
O Segundo Sexo
em 1949, colocou a mulher no centro do debate e rompeu com uma tradição
filosófica que a mantinha invisível ou vista a partir do olhar do
outro.
Quando lançou a obra, Beauvoir não se entendia como feminista ainda,
nesse estudo em específico pensa a categoria de gênero por uma
perspectiva existencialista e, como afirma Margaret Simons, uma das
maiores especialistas em Beauvoir, posteriormente a obra adquire um
caráter fundamentalmente político.
Estudar Simone de Beauvoir é de suma importância por conta de suas
grandes contribuições filosóficas. Feliciano colocar a famosa frase de
Beauvoir como “opinião dela” mostra seu total desconhecimento de como
funciona um sistema filosófico. Maldita
doxa, diriam os gregos.
Fora isso, houve uma tentativa de querer destruí-la como ser humano
em vez de questionar cientifica e politicamente sua obra dentro das
condições históricas a qual estava submetida.
Tanto Feliciano como Marum podem discordar do pensamento dela, mas
que tenham competência crítico-argumentativa para fazê-lo em vez de
destilarem machismo e burrice. Beauvoir realizou um estudo sério. Se for
pra criticar, ao menos façam críticas sérias e embasadas. Não se pode
impedir e nem rebaixar a reflexão crítica, por favor.
O que Beauvoir quis dizer com a frase “Não se nasce mulher, torna-se”
não é de difícil entendimento. Explico: ao dizer que “não se nasce
mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre a construção do
“gênero” e o “sexo dado” e mostra que não seria possível atribuir às
mulheres certos valores e comportamentos sociais como biologicamente
determinados. Simples, não é? E faz todo sentido, o ser mulher se impõe;
há uma imposição social de como as mulheres devem se comportar.
Diante das várias imbecilidades proferidas,
Danilo Gentili, o imbecil mor ficou com inveja e não quis ficar de fora. Em seu programa
The Noite, um de seus convidados fez piadas violentas escancarando o que há de pior no humor brasileiro.
Já escrevi sobre como
o humor não está descolado dos valores da cultura,
e o convidado descerebrado de Imbecili, Leo Lins, só comprovou isso ao
dizer coisas do tipo: “Eu já li que a cada 12 segundos uma mulher sofre
violência no Brasil, mas estou escrevendo a redação há 30 e não vi
nenhuma apanhando”.
“Também é preciso ver quem fez a pesquisa... como saber se o sangue é
de violência ou ciclo menstrual? Afinal, o sangue que sai de um corpo é
o mesmo, não importa o buraco.”
Após esse show de desrespeito absurdo, uma fã de Imbecili criticou o
fato de os “humoristas” debocharem de um tema tão sério e disse que não
seria mais fã de Gentili. Ao que ele respondeu: “Mas vc jura por tudo
que deixou mesmo de ser minha fã? Eu posso até depositar uma grana pra
vc me enviar um contrato que nao é mais minha fa. É importante pra mim
saber que nao tenho fã arrombada".
O cúmulo da falta de respeito e de civilidade.

Gentili é o que há de pior na televisão brasileira. Debater temas
como violência contra a mulher é importante para a sociedade, há
inúmeras pesquisas sérias que comprovam o alto índice de mortes de
mulheres por seus companheiros.
Logo debochar disso, além de mostrar que essas pessoas têm problema
de caráter e revelar o que há de mais sujo e baixo, é uma forma de
concordar com essa violência, de manter as coisas como estão. Gentili
poderia fazer um favor à humanidade e permanecer calado até aprender a
ser gente.
Apesar de toda a manifestação horrenda de Feliciano, Marun e Gentili,
vejo algo positivo nisso tudo. É urgente que temas como esses sejam
debatidos e ensinados, se estão incomodando é porque talvez estejamos no
caminho da mudança.
Como disse Érico Veríssimo: “Quando os ventos de mudança sopram, umas
pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento”.
As três figuras aqui citadas querem permanecer erguendo as barreiras
da ignorância, do desrespeito e machismo. Façamos moinhos de vento.