O jornalista Elio Gaspari ensina, no seu livro A ditadura envergonhada, como, apesar de haver enormes esforços na elite brasileira por parte do governo dos Estados Unidos, com financiamento da CIA ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) para combater o governo João Goulart, o golpe de 64, quando aconteceu, era tão incerto que o próprio general Olympio Mourão Filho duvidou dele. Às duas da madrugada, três horas antes de sair com suas tropas de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, escreveu em seu diário: “Dentro de poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido, porque sai pela madrugada e terá de parar no caminho”. Completou: “Morro pobre, mas até a última hora posso andar de cabeça erguida. Viva o Brasil!”. Duas horas depois, quando soube da marcha de Mourão, o comandante do II Exército, Amaury Kruel, disse ao telefone: “Isso não passa de uma quartelada do Sr. Mourão, não entrarei nela”.
Só as 22h, ele entrou. Deu-se o golpe.
Para que haja um golpe de Estado, primeiro, é preciso que haja uma pulsão golpista na sociedade, resultado de uma narrativa sólida que justifique isso. Em 1954, era o mar de lama, em 1964 era o comunismo, agora em 2022 era a fraude nas eleições – que se ligava à percepção de que Lula, corretamente condenado por corrupção, se beneficiou de um corrupto STF justamente para permanecer no poder. Resultado de um erro crasso, histórico do STF, de não impor freios e contrapesos à Lava Jato lá atrás.
Mas eu divago. Volto ao meu argumento. O bolsonarismo tinha o primeiro ponto. Esse era o foco do que a PF chama de “núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral”.
O segundo ponto é o apoio de um grupo social coeso que acredita que é justificável interromper a democracia, e que aceite ir às ruas em nome dessa causa. Não importa tanto o tamanho desse grupo; no jogo de espelhos das redes sociais, o que importa é criar a impressão de se tratar de uma massa, convencendo um número significativo de tomadores de decisão a aderir. Isso, também o bolsonarismo tinha, ou chegou bem perto de ter. Era o foco do que a PF chama de “núcleo operacional de apoio às ações golpistas”.
Chegamos ao terceiro ponto, por aqui o mais fundamental: no Brasil, para dar golpe é preciso das Forças Armadas. Nesse quesito, os conspiradores adotaram diversos estratagemas para que, na hora H, os poucos resistentes aderissem à empreitada. Era esse o “núcleo responsável por incitar militares a aderirem ao golpe de Estado”.
Apesar de não terem convencido os parcos famosos “5 generais”, conseguiram uma vitória impressionante: conspiraram abertamente, diante não só do Alto Comando das Forças Armadas, mas do ministro da Defesa, da cúpula do PL e de diversos grupos militares dos mais diferentes níveis sem terem sido presos, acusados de traição, sedição ou coisa que o valha. Assim, todos prevaricaram. Todos esperaram pra ver o que ia acontecer na hora H.
Mais sutilmente, a conspiração foi apresentada até à general Laura Jane Richardson, comandante do Comando Sul, e Lloyd Austin, secretário de Defesa norte-americano, além do ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon.
Como tem demonstrado a investigação da PF, havia centenas de golpistas articulados, prontos para causar o caos necessário para que as Forças Armadas impusessem a ordem. Mas havia também uma quantidade incontável de outros que queriam pagar pra ver – e poderia se decidir por um lado e por outro.
No golpe de 64, o maior “indeciso” era Amaury Kruel, que acordou legalista e foi dormir golpista em 31 de março. Se não o tivesse feito, nossa história seria outra.
Hoje esses, os silenciosos, os que esperavam pra ver, continuam por todo lado, quietos, fingindo que não é com eles. Mas podem, ainda, pender para que lado for o vento.
É por isso que será um erro crasso se nós, da imprensa, não conseguirmos comunicar que tivemos de fato, desta vez, uma tentativa real de golpe de Estado. Será um erro crasso se Bolsonaro não for punido, se deixarmos o ciclo da notícia nos levar para outros temas, até que novamente se arme um conluio pela anistia. Mais que erro, será fatal. |
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