De volta àquela sala em um dia quente em São Paulo, depois de gastarem seu latim tentando nos convencer disso, passaram um vídeo que celebrava as maravilhas do ser humano, com direito a imagens de criancinhas correndo e mulheres felizes sorrindo.
Não precisava de nada disso.
Como sabe o leitor que me acompanha, agora com a vitória de Trump chegamos ao paraíso das criptomoedas, e a Worldcoin pretende ser mais uma delas. No momento, ela funciona apenas por acumulação: quem deixa a empresa escanear sua íris ganha mais de R$ 300 reais em “tokens” (25 tokens) agregados à sua conta criada para o uso da identidade, registrado em uma espécie de carteira virtual que você tem que baixar ao criar seu World ID.
Teoricamente, para sacar o dinheiro basta fazer um Pix, dando um email e CPF. Em outros países, o dinheiro tardou meses ou nunca chegou.
Tanto eu quanto outros colegas da imprensa perguntamos duas ou três vezes qual é o plano para transformar essa moeda em uma moeda com valor, e não tivemos resposta. Um dos expositores explicou que é possível que alguns serviços sejam disponibilizados através do App para serem pagos com a Worldcoin.
A ideia, até onde eu consigo entender, é que, quando milhões de pessoas tiverem os tais tokens, será fácil criar usos reais para esse dinheiro. É nisso que os “venture capitalists” que financiaram a empreitada estão apostando: segundo a assessoria de imprensa da World, eles detém 25% do total de moedas, como retorno ao investimento.
Para Sam Altman e Alex Blania, o lucro é duplo: além de estarem criando o maior banco de dados biométricos do mundo, o que por si só tem um valor indiscutível, eles criaram a empresa Tools for Humanity, que “presta serviços” para a World, como desenvolver o aplicativo, o site, ferramentas que são usadas pela organização sem fins de lucro que administra a base de dados (World Foundation). Altman preside a empresa, que tem como investidores uma gama de empresas de criptomoedas, segundo o Valor Econômico: a16z crypto, Bain Capital Crypto, Blockchain Capital e Distributed Global. Ainda segundo o jornal, desde sua criação, recebeu US$ 194 milhões em investimentos.
Antes de chegar ao Brasil, a World já criou enorme polêmica ao pagar para escanear íris em países pobres, como Indonésia, Zimbábue, Quênia – onde uma CPI foi instalada e o governo teve que ordenar diversas vezes o fim das atividades até ser atendido. A World, por sua vez, já esteve no alvo de órgãos reguladores de países como França, Alemanha, Argentina e Hong Kong. Este ano, teve suas atividades suspensas na Espanha e em Portugal.
Aqui no Brasil, o início da operação já chamou atenção da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Segundo a Bloomberg Línea, a autarquia instaurou na segunda-feira (11) um processo de fiscalização “com o objetivo de obter mais informações da empresa World sobre o relançamento do projeto que visa escanear a íris humana para verificação de identidade a fim de avaliar a sua conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD”. Uma semana antes, o vice-presidente de Proteção de Dados da Tools for Humanity, Damien Kieran, fez um tour por Brasília, onde se reuniu com reguladores do Ministério da Ciência e Tecnologia e representantes da ANPD.
“As preocupações são menos sobre privacidade do ponto de vista de anonimato e mais do ponto de vista de potenciais usos secundários de identificadores únicos gerados de forma computacional”, diz Rafael Zanatta, diretor da ONG Data Privacy.
Para ele, a solução é muito engenhosa, “talvez seja a solução mais engenhosa do mundo para identidades digitais”. Mas o primeiro problema é o da soberania digital: “Avançamos em uma privatização de funções estruturais para transações, que é a atribuição e verificação de que uma pessoa é uma pessoa, pois temos poucos instrumentos de fiscalização em escala global”. Para ele, para ser considerada de fato transparente, a “empresa deveria ter um conselho permanente de representantes da população capazes de avaliar as soluções de engenharia do ponto de vista ético”.
Há outro problema, mais amplo, que Zanatta não comenta, talvez por gentileza. Toda a narrativa da World se baseia no velho bom-mocismo do Vale do Silício, uma argumentação que faria sentido há 20 anos, mas hoje não cola mais. No fundo, o que a World quer fazer é exatamente o que fez o Google quando enviou seus carros com câmeras nas ruas do mundo todo, conseguindo, de maneira inédita, registrar a grande parte das ruas do planeta sem pedir autorização a ninguém. Criou uma base de dados inigualável e agora pode jogar em cima disso. Com sua narrativa de “ajudar a humanidade”, a World leva essa lógica para o corpo humano, trazendo o limite do mundo digital – controlável, privatizável e comercializável – para nossos corpos, para nossos olhos. |
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