segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Uruguai: A esquerda volta de cara nova

Quem é o novo presidente, discípulo de Mujica. Como a renovação de quadros e o convite ao diálogo nacional foram chaves. O grande desafio do novo governo: aumento da violência, num dos “países mais seguros da América do Sul”

Foto: Gastón Britos / FocoUy
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Por Silvio Falcón, no La Marea | Tradução: Rôney Rodrigues

A Frente Ampla é, há vinte anos, a principal força política no Uruguai. Ao contrário do que se poderia entender numa perspectiva europeia, este é um fenômeno sem precedentes na política latino-americana, em tempos de polarização e num contexto de ascensão de populismos. O sistema partidário deste pequeno país só mudou para garantir um lugar privilegiado a esta coligação de partidos de esquerda, que consolidou a sua presença institucional através das duas presidências de Tabaré Vázquez e do mandato de Jose Mujica. Os adversários da Frente Ampla têm sido os blancos e colorados: o Partido Nacional e o Partido Colorado, que durante o último mandato liderou a chamada coligação multicolor que levou Lacalle Pou à presidência.

Em 2019, o candidato da Frente Ampla, Daniel Martínez, venceu no primeiro turno (40,49% dos votos), mas foi derrotado pelo atual presidente por uma margem muito estreita (50,79% contra 49,21%). Essa experiência serviu à Frente Ampla para renovar a sua cara e aproveitar a força do seu poder territorial para construir a candidatura presidencial deste ano.

Nas eleições internas da Frente Ampla, uma espécie de primárias abertas a todos os cidadãos, os dois pré-candidatos que aspiravam a liderar a candidatura de esquerda vieram de cargos relevantes na estrutura departamental do país: a prefeita de Montevidéu, Carolina Cosse, e o prefeito de Canelones, Yamandú Orsi. Este último contou com o apoio do Movimento de Participação Popular (MPP), força política dos antigos guerrilheiros tupamaros liderada pelo casal Mujica-Topolanski. A clara vitória de Orsi (59,1%) contra Cosse (37,6%) permitiu-lhe afirmar-se como candidato da Frente e, ao mesmo tempo, como sucessor de Mujica. A candidatura resultante aproveitou todo o capital político de formação, já que Orsi incorporou Cosse como candidato à vice-presidência, formando um poderoso contingente eleitoral com várias matizes.

Desde o retorno da democracia em 1985, a política uruguaia tem sido marcada por homens de uma geração similar – nascidos entre as décadas de 1930 e 1940 – como os ex-presidentes Sanguinetti, Batlle, Luis Alberto Lacalle ou os próprios Tabaré e Mujica. Nas fileiras da Frente Ampla, uma terceira figura completa este mapa geracional: o ex-ministro da Economia e ex-vice-presidente Danilo Astori. Estes antigos líderes morreram ou retiraram-se da linha de frente política devido à idades avançadas. O último a fazê-lo foi o incombustível ex-tupamaro Mujica, com um discurso contundente sobre as mudanças na política: “Os melhores líderes são aqueles que saem de um grupo que os supera com vantagem”. O legado de Mujica hoje leva o nome do novo presidente do Uruguai, Yamandú Orsi.

A direita uruguaia, porém, soube interpretar esta mudança geracional antes da esquerda, lançando Luis Lacalle Pou em 2019, e usando uma campanha presidencial que usou o poder da comunicação política. Qualquer uruguaio que votou em 2019 se lembra do jingle eleitoral dos blancos, que promovia mudanças positivas; uma modernização que contrastava com as antigas lideranças. “É agora”, dizia a comunicação da campanha. E então ele se fez presidente.

A impossibilidade de reeleição imediata no sistema presidencial uruguaio obrigou o partido de centro-direita que estava no poder a mudar de candidato. Álvaro Delgado, ex-secretário da Presidência do governo Lacalle Pou, foi o escolhido pelos blancos. No primeiro turno, Delgado (26,82%) ficou longe dos resultados obtidos por Orsi (43,92%), mas chegou ao segundo turno com a possibilidade de reeditar uma coligação de direita com o Partido Colorado (16,07%), os ultradireitistas de Cabildo Abierto (2,48%) e do Partido Independente (1,70%). A única saída para a direita se manter no poder exigia reavivar a coligação multicolor, mas nesta disputa eleitoral surgiu uma nova força populista (Identidade Soberana, 2,8% dos votos) que solicitou o voto nulo no segundo turno. Uma decisão que, face aos resultados, foi decisiva na eleição de Orsi.

Vitória eleitoral e perspectivas futuras

A vitória de Orsi baseou-se em grande parte nos departamentos mais populosos do Uruguai: Montevidéu e Canelones. A sua candidatura obteve 49,11% dos votos emitidos a nível nacional (incluindo votos brancos e nulos), contra 45,19% de Álvaro Delgado. A realização de um debate eleitoral no domingo antes da eleição, dia 17 de novembro, foi uma grande novidade na campanha, pois os candidatos foram obrigados a participar devido a uma lei aprovada em 2019. O debate, transmitido ao vivo, em horário nobre, na cadeia nacional de rádio e televisão do país, teve duração de quase duas horas e foi organizado pela Justiça Eleitoral. Segundo as pesquisas, o candidato vencedor do debate foi, por estreita margem, Yamandú Orsi, embora o formato televisivo oferecesse pouco espaço para a troca de ideias. Consistiu basicamente numa leitura do programa eleitoral de cada candidato, ambos com muito a perder num formato ao qual o eleitorado uruguaio não está habituado.

Orsi liderará um país com uma preocupação crescente com a segurança nas ruas, uma questão nova num dos países mais seguros da América Latina. Sua taxa de homicídios em 2023 era de 11,2 por 100 mil habitantes, um aumento significativo se considerarmos que em 2005 esse número era quase a metade (5,7 por 100 mil habitantes). Um dos slogans da campanha de Orsi foi precisamente “Saberemos cumprir”, uma mensagem clara contra a administração em fim de mandato, que criticou pela gestão da grave crise hídrica, pelos supostos casos de corrupção e pelas medidas de segurança ineficazes.

Espera-se que o novo presidente Orsi tenha um relacionamento político de primeira ordem com o grande parceiro regional do Uruguai: o Brasil, liderado por Lula. Por outro lado, será interessante observar a relação do argentino Javier Milei com o político de esquerda, dada a tradicional discrição da política uruguaia em relação aos assuntos argentinos. Nem a esquerda nem a direita no Uruguai desejam um nível de polarização semelhante ao que domina a política argentina.

Yamandú Orsi imprimirá um novo estilo na política uruguaia, a partir do artifício nacionalista que promove, mas com uma abordagem claramente de esquerda. Em seu primeiro discurso, agradeceu o esforço da militância e do país como um todo, “mesmo que abracem outras ideias”. O presidente eleito destacou que o Uruguai é um país “de acumulação positiva”, onde não há espaço “para lamúrias ou desqualificação”. Orsi deixou claro que será um presidente que apelará sempre ao “diálogo nacional”, ouvindo “o que os outros dizem”, com o objetivo de construir um “país mais integrado”, onde, para além das diferenças, “ninguém fique para trás”. A multidão que celebrava a vitória aumentou o volume quando o presidente eleito quis reconhecer publicamente os antigos líderes da Frente Ampla, desde Seregni, Tabaré Vázquez e Danilo Astori até aos seus professores do MPP, Pepe Mujica e Lucía Topolanski. Com eles, disse Orsi, ele aprendeu muito e também se comprometeu a “continuar aprendendo” e “trabalhar duro para um Uruguai melhor”.

No âmbito parlamentar, a Frente Ampla terá de fazer pactos para executar pontos fundamentais do seu programa, já que na Câmara dos Deputados obteve 48 deputados contra 49 da chamada coligação multicolor e 2 da Identidade Soberana. Será um bom momento para avaliar a saúde desta aliança – agora opositora – e a capacidade de negociação da Frente Ampla.

Yamandú, portanto, é a melhor homenagem a Pepe, um político que transcendeu as fronteiras do “paisinho” para projetar seu ensinamento e exemplo a todos os esquerdistas do mundo. Como diz Mujica, é preciso sempre trabalhar pela esperança.

 

COP29: O jogo só acaba quando termina

BAKU – Um dos símbolos arquitetônicos de Baku, capital do Azerbaijão, onde é realizada a 29ª Conferência do Clima da ONU (COP29), são as Flame Towers. Três arranha-céus em formato de chamas, que se destacam na paisagem e podem ser observados de vários pontos da cidade. São uma referência ao título que o país orgulhosamente carrega de “terra do fogo”.

Flame Towers. Foto: Giovana Girardi/Arquivo pessoal
O Azerbaijão foi estabelecido sobre uma área absurdamente fértil em petróleo e gás natural. Em algumas regiões do país, o gás aflora ao nível da superfície, o que faz com que qualquer ignição possibilite que ele comece a queimar. A impressão que dá é que a própria terra está queimando – algo que pode continuar por anos a fio. Anos! 

Imagine comigo o que isso pode ter significado para as populações que há séculos viviam nessa região. Imagine o que isso representa para o imaginário coletivo do Azerbaijão. Um fogo que brota e não apaga nunca mais.

Fiz esse exercício de imaginação no último domingo (17), quando tivemos uma breve folga durante as negociações da conferência do clima – que, em seu âmago, visa estabelecer, veja bem, justamente um caminho para o fim dos combustíveis fósseis. 

Com colegas brasileiros, visitei o Ateshgah, o templo do fogo, cerca de 20 km do centro de Baku. É justamente um desses locais onde o gás aflorava, gerando um cenário que ficou conhecido como “Chamas Eternas”. No entorno daquele ponto, que séculos atrás só podia ser interpretado como algo sagrado, foi estabelecido um templo do zoroastrismo. Trata-se de uma das mais antigas religiões monoteístas, que surgiu nesta região do planeta mais de 3 mil anos atrás e tinha como característica a adoração ao fogo.

Entre idas e vindas, o templo continuou sendo visitado pelos religiosos até meados do século 20, quando a exploração de petróleo no entorno se tornou tão intensa que o nível do combustível diminuiu. Foi perto de Baku, em 1846, que o primeiro poço de petróleo do mundo foi perfurado comercialmente. Quase um século depois, já não tinha gás na superfície para alimentar as chamas. Sem fogo, os religiosos foram embora do templo. 

Alguns anos depois, sob controle da então União Soviética, o país reativou a chama eterna de modo artificial, canalizando gás metano para o local. O templo deixou de ter fins religiosos e se tornou um museu histórico e arquitetônico sobre a relação da população com o fogo sagrado. Há até um feriado nacional que relembra os rituais tradicionais. Em outras regiões do país, se mantém a ocorrência da terra queimando por causa do gás que escapa.

Foi impossível não pensar, depois desse tour, no significado histórico do petróleo e do gás no país. Como está arraigado na identidade desse povo. E até passou a fazer algum sentido a frase dita pelo presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, na primeira semana da COP. Ao dar início ao segmento de alto nível, em que se pronunciam os chefes de Estado e de governo, Aliyev chamou os combustíveis fósseis de “presente de Deus”. Frase, aliás, que lhe rendeu muitas críticas.

Questionada sobre isso na semana passada, a ministra Marina Silva respondeu de modo bem-humorado: “Eu diria que Deus nos dá presentes, mas ele sempre pede que sejamos bastante comedidos em relação aos presentes que ele nos dá. Por exemplo, se comermos açúcar demais, com certeza ficaremos diabéticos”.

A ciência é muito clara sobre o quanto hoje está nos fazendo muito mal a queima dos combustíveis fósseis. Mas fiquei imaginando o que passou na cabeça dos gentis e sorridentes azeris quando eles começaram a ouvir que a exploração do produto que lhes trouxe riqueza é algo com o qual não poderão contar num futuro próximo. Que é o que causa as mudanças climáticas com as quais eles mesmos já vêm sofrendo. 
É importante ter em mente que a transição energética não é uma questão apenas da grande indústria de combustível fóssil – que não quer abrir mão dos seus lucros e historicamente promoveu desinformação para atrasar a ação climática. Ou mesmo dos empregos, da economia. Sim, é essa pressão que realmente pesa no âmbito das negociações. Mas não percamos de vista que, para alguns lugares, estamos falando também sobre identidade nacional.
Claramente não vai ser suave abandonar os fósseis.

De volta à COP, escrevo este texto em momento de absoluto compasso de espera. Pelo calendário, a conferência dura até esta sexta-feira (22). A expectativa, porém, é que vá bem além. Num “bolão” feito com os participantes pelo pessoal do site Carbon Brief, a maioria está apostando em um fim somente na madrugada de domingo. 

A COP29 tem como principal objetivo desatar um dos nós mais difíceis das conferências do clima. Ela precisa estabelecer o chamado novo objetivo coletivo quantificado (NCQG, na sigla em inglês), que vai definir não só quem vai pagar para ajudar os países pobres a adotar medidas de redução de emissões e de adaptação às mudanças climáticas como também quanto recurso vai ser colocado na mesa e como ele vai ser distribuído. 

O que está em jogo é: os países, todos eles, precisam agir de modo mais rápido e efetivo para conseguir limitar o aquecimento do planeta a 1,5 °C – que, considerado o limite mais seguro, já está quase sendo alcançado. Para isso, é necessária uma redução coletiva de emissões da ordem de 60% até 2035 (na comparação com os níveis de 2019), de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

Mas os países só vão dizer como vão contribuir com isso, ou seja, qual vai ser a nova meta climática de cada um, quando se souber quanto dinheiro vai ser posto na mesa para ajudar nesse processo. Por isso o resultado desta COP é tão crucial.

Só que, depois de dez dias de negociações, um acordo ainda parece distante. Um documento foi apresentado nesta quinta-feira, com duas propostas ainda bastante vagas, que nem sequer trazem um valor. 

Fala-se em x trilhões de dólares, como já apontado no início da semana pelo G20. Mas não exatamente quanto, nem quando, muito menos como. É importante saber a qualidade desse recurso. Quanto será de dinheiro público, por exemplo, na forma de doação ou concessional (com juros baixos). 

Uma consulta feita pela presidência da COP revelou que todo mundo está bastante insatisfeito. As negociações continuam. Tudo parece bem ruim, mas não será em nada inesperado se, em algum momento, nas próximas horas (ou dias), uma solução seja encontrada. 

Há diversos exemplos na história das COPs em que um mínimo denominador comum é aceito a partir de uma mudança de linguagem, uma expressão meio mágica que acomoda os diversos interesses. Como diriam no futebol, o jogo realmente só termina quando acaba. Aguardemos.

*A jornalista viajou para Baku a convite do Instituto Arapyaú e do ClimaInfo.

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental

domingo, 24 de novembro de 2024

ESCRAVIDÃO NO BRASIL: QUEM SÃO OS ANTEPASSADOS DE POLITICOS ?

 

Em maio deste ano, fiz uma viagem de férias com a minha mãe, dona Cida. Fomos para Santa Rosa do Piauí, cidade vizinha de onde ela nasceu e viveu a infância e adolescência antes de se mudar para São Paulo. 

Mas, você deve estar pensando, o que essa viagem tem a ver com meu trabalho na Pública

Bom, na mesma época, eu estava imersa nas pesquisas do Projeto Escravizadores, iniciativa da Agência Pública que identificou vínculos de 33 políticos com antepassados escravocratas. Depois de quase um ano pesquisando a genealogia de autoridades brasileiras, algo me incomodava: a “facilidade” de encontrar registros sobre famílias poderosas contrastava com a dificuldade de acessar informações sobre meus próprios antepassados.

Foi aí que, nas minhas férias, continuei trabalhando, mas dessa vez na minha própria genealogia.
Para a metodologia do Projeto Escravizadores, criei planilhas e pastas para cada autoridade que pesquisamos, com o objetivo de organizar a papelada. Na Pública a gente costuma investigar pessoas a partir de redes sociais, entrevistas, documentos públicos, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, e claro, gastando a sola do sapato em apurações em campo. Mas, investigando parentescos, descobri um novo mundo de fontes. Por exemplo, nos registros paroquiais e civis, como certidão de nascimento, consigo ver dados sobre o recém-nascido e mais duas gerações acima, seus pais e avós, além de informações sobre datas e locais. Com um único documento, conseguia identificar três gerações de familiares.

Acessei alguns registros pela plataforma FamilySearch, mas tive dificuldade em encontrar informações da minha própria família, ainda mais da minha mãe, uma mulher negra como eu. 

Isto foi algo que também reparamos no levantamento do projeto, tivemos dificuldade em mapear a genealogia de pessoas negras e indígenas, por falta de dados sobre pessoas escravizadas ou antepassados libertos. A memória documental dessas pessoas geralmente é mencionada só pelo primeiro nome, por um apelido, e normalmente associado ao escravizador. É o caso, por exemplo, do assento de batismo de uma escrava dos possíveis tataravós do governador Tarcísio de Freitas. O registro menciona “Martha, filha de Delfina, escrava de Ana Rosalina Pacheco de Freitas”.

Essa busca pelas minhas origens me fez refletir: “E se, ao desenterrar histórias, eu descobrir antepassados escravizadores? O que faço com essa informação agora?”. 

Muitos investigados desconhecem seus vínculos com a escravidão, mas é aí que entra o papel da justiça reparatória. Não podemos mudar a história nem somos responsáveis pelos crimes de nossos antepassados, mas o que fazemos com essa informação é, sim, nossa responsabilidade.

Por isso, te peço para somar nesse projeto. Queremos seguir pesquisando essas conexões. Nosso objetivo é investigar ainda o Judiciário e outras autoridades do Executivo e Legislativo, como os deputados. Mas precisamos de você para isso.

Cada contribuição fortalece nosso jornalismo independente e nos dá mais liberdade para investigar as conexões do Brasil com seu passado escravocrata – um trabalho que exige tempo, dedicação e muitos recursos.


Achou essas revelações importantes e quer ajudar a manter viva a memória desse passado? Junte-se a nós! Com a partir de 20 reais você já ajuda a financiar investigações que fazem a diferença.
✊Quero fazer parte desse projeto!
Um abraço,

Bianca Muniz
Analista de dados da Agência Pública

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

 

Kids pretos tentaram proteger Bolsonaro, Braga Netto e a elite do Exército 

Em tantas perguntas sobre planejamento do crime contra a democracia que envolvia matar os eleitos para comandar o país em 2022 – o presidente Lula e seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes, então presidente do TSE –, a mais difícil de responder até agora é por que, afinal, malogrou o minucioso e documentado plano, acessado e tornado público pelas investigações da Polícia Federal (PF), que finalmente resultaram no indiciamento de Jair Bolsonaro, do general Braga Netto e de outras estrelas golpistas. 

Talvez o ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, Mauro Cid, ameaçado de rescisão da delação premiada, tenha dado mais detalhes em seu depoimento no STF. No momento em que escrevo esta newsletter, na quinta-feira à tarde, ainda não se sabe tudo o que ele falou para manter os benefícios da delação, como a proteção a seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, que também integrou as forças especiais. 

O certo é que Mauro Cid, que teve sua nomeação para o Comando de Operações Especiais de Goiânia, que reúne quatro batalhões de kids pretos (agentes das forças especiais do Exército), suspensa no governo Lula, poupou enquanto pôde Bolsonaro e Braga Netto, apenas confirmando por fim que o general liderou, no dia 12 de novembro, uma reunião em seu apartamento na qual o “planejamento operacional para a atuação dos ‘kids pretos’ foi apresentado e aprovado”, de acordo com a investigação prévia da PF. 

As intenções golpistas de Braga Netto já estavam documentadas em mensagem por ele enviada em meados de dezembro (e acessada depois da apreensão de seu celular na mesma operação de fevereiro deste ano), chamando de “cagão” o então comandante do Exército, o general Gomes Freire, por pular fora do golpe.

Gomes Freire, que chegou a participar de duas reuniões em que minutas do golpe foram apresentadas aos comandantes das Forças Armadas, também era kid preto, como revelou postagem no WhatsApp do general Mário Fernandes, já preso e, ao que tudo indica, o chefe direto dos demais kids pretos envolvidos na operação. 

Em resposta à imprensa sobre os kids pretos, o Exército confirmou que há 2,5 mil militares nas forças especiais e que elas existem desde 1957, data do primeiro Curso para Operações Especiais na Vila Militar, no Rio de Janeiro. E nada mais explicou.

Garimpando informações nos sites do Exército, vemos que na ditadura, meses antes do AI-5, foi criado o Destacamento de Forças Especiais, subordinado ao Centro de Instrução Pára-quedista General Penha Brasil (CI Pqdt GPB). Essa foi a origem do 1o Batalhão de Forças Especiais, criado em 1983 e desde 2002 subordinado ao Comando de Operações Especiais (COpEsp), com batalhões em Goiânia (os que seriam comandados por Mauro Cid) e na 3a Companhia de Forças Especiais em Manaus. 

Entre as façanhas desse destacamento de forças especiais estaria a tentativa de recrutamento de paraquedistas do esquadrão Para-Sar, em 1968, para realizar operações terroristas que seriam atribuídas à esquerda, incluindo a explosão do Gasômetro, no Rio de Janeiro, com potencial para causar milhares de mortes, frustradas por insubordinação do capitão Sérgio Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco, às ordens de seu superior, o brigadeiro João Paulo Burnier, de triste memória. 

Os paraquedistas das forças especiais atuaram também nos anos 1970 no combate à Guerrilha do Araguaia, que terminou com a execução de 41 militantes, como confirmou, em tumultuado depoimento à Comissão Nacional da Verdade, o general Álvaro de Souza Pinheiro, que participou da operação. Curiosamente, o Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOpEsp), responsável pela formação dos militares das forças especiais, era comandado, até 2022, por seu filho, o coronel Álvaro de Souza Pinheiro Filho. 

Conheci o general Pinheiro antes de ele surtar à beira da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, em abril de 2020, ao resistir armado a policiais militares que impediam a circulação no local durante a quarentena da covid. Tentei ouvi-lo em uma entrevista, em 2016, interrompida por ele aos berros, quando perguntei sobre a relação entre sua atuação nas forças especiais da ditadura com a consultoria que dizia prestar naquele momento à segurança da Olimpíada, como “especialista em guerra irregular”, como se apresentava. Treinado pelos “boinas verdes” dos Estados Unidos, frisava o general. 

 Ao que tudo indica, essas forças treinadas para operações de sabotagem em “contexto político sensível” e outras técnicas de “guerra irregular” permaneceram ativas, mas quase invisíveis até serem detectadas na organização das ações terroristas de 8 de janeiro e agora, no envolvimento direto com planos de assassinato para derrubar a democracia.
Antes disso, em 2021, o Intercept já havia publicado uma reportagem revelando um exercício em que os candidatos às forças especiais participavam de uma operação de combate simulada contra um exército marxista fictício “nascido de uma dissidência do Partido dos Operários e que recruta e treina militantes do MLT”, referências óbvias ao PT e ao MST. De uma turma de quase 40 alunos, 17 foram aprovados para trabalhar no Comando de Forças Especiais, sediado em Goiânia.

O apelido “kid preto” ainda não aparecia nessa reportagem (a primeira que vi utilizar o termo foi a de Allan Abreu na revista piauí, em 2023), mas não é difícil traçar uma linha direta entre as forças especiais na ditadura e os kids pretos da tentativa golpista. Ao que tudo indica, com o conhecimento de altas patentes das Forças Armadas, que jamais atuaram para condenar os crimes de 1964 e varrer o golpismo de seus quadros. 

Chega de operações secretas e forças especiais voltadas para o combate de “inimigos internos”. Sem o controle e a transparência do Exército, não há democracia. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

 

 
 

Iniciativa ligada a Sam Altman escaneia íris nos shoppings de São Paulo


Cheguei atrasada à casa elegante no bairro de Vila Nova Conceição, em São Paulo; o evento já ia começar. Um punhado de jornalistas já estava rodeando uma mesa com café, chás, bolachas e quitutes no fundo da casa. Na sala principal, um enorme telão e cadeiras confortáveis para todos. 

Mas, diferentemente de outras conferências de imprensa em que estive, o nervosismo era palpável; os profissionais encarregados de “vender” o produto para a imprensa sabiam que o desafio era grande. Quando choveram perguntas – e vieram poucas respostas –, ficou ainda mais claro que o lançamento da World no Brasil atrai mais questionamentos que aplausos. 

Desde quarta-feira passada, 13 de novembro, a World, uma iniciativa criada por Sam Altman, CEO da OpenAI, está escaneando os olhos de brasileiros para agregar a uma base de dados que, segundo a empresa, já tem os dados biométricos de mais de 7 milhões de seres humanos. Começaram com dez pontos na cidade de São Paulo – nos shoppings Tatuapé, Vila Olímpia, Center Lapa e com estandes na rua nos bairros de Ipiranga, Bela Vista, Jardim Brasília, Bom Retiro, Pinheiros e Penha. 

Nesta newsletter, vou economizar nos adjetivos, porque a história fala por si só. O leitor fique à vontade para encaixar nela alguns dos conceitos que costumo usar por aqui (tecno-oligarquia, neocolonialismo, tecnofeudalismo etc.). 

Vejamos. O propósito hoje propalado pela World é criar uma identidade mundial que garanta que a pessoa que a utiliza é um ser humano. A ideia, chocada pelos fundadores Sam Altman, Alex Blania e Max Novendstern, e financiada desde a primeira hora pelo investidor Andreessen Horowitz, responde à crescente dificuldade dos computadores em conseguir verificar se um usuário é uma pessoa ou um robô. Basicamente, com a evolução da IA, aqueles testes de “captcha” estão ficando cada vez mais obsoletos. A World criou uma máquina – que chamou de “oculus”, uma bola preta que foi desenhada para parecer algo vindo de um filme de ficção científica – para escanear íris de cada pessoa para dar a elas uma identidade única. 

Segundo uma extensa reportagem do site BuzzFeed, o “oculus” usa um scanner térmico para verificar a temperatura corporal das pessoas, uma câmera 3D para mapear os rostos e câmeras de alta resolução para capturar vídeos e imagens do corpo, rosto e da íris – tudo isso para provar que se trata de uma pessoa real e não de uma foto, por exemplo. Os dados biométricos, segundo a assessoria de imprensa, não são guardados pela organização, apenas os valores codificados, chamados de hashes, compartimentados por diversos servidores em universidades, de maneira que “não se pode reconstituir a íris”.

Temos que acreditar que isso é verdade porque, como no caso das demais empresas de tecnologia, não há nenhum fiscal que possa verificar se a promessa de fato se cumpre. 

Mas o problema não está só na falta de transparência sobre como os dados são armazenados, como são destruídos, com quem a empresa os compartilha – segundo a mesma reportagem do BuzzFeed, o contrato de cessão de dados permitia à World “can share user data with third parties who can use the data as they see fit”. O problema começa com a narrativa que a organização quer vender. Pra começar, a “nova” narrativa esconde o motivo para a criação da empresa – formar uma criptomoeda de grande valor que fosse distribuída amplamente por toda a humanidade, talvez até criando uma “renda básica universal” através dessa criptomoeda. Foi para descobrir como proteger a criptomoeda Worldcoin de fraudes que os engenheiros de Sam Altman desenvolveram o “oculus”.  

Dois anos depois, a aplicação dessa tecnologia é óbvia. Um serviço que pode garantir, por exemplo, que uma pessoa possa ser verificada em sua humanidade antes de entrar numa chamada de Zoom. Perguntei aos expositores se existe a possibilidade de venda desse serviço mais adiante para empresas de tecnologia. 

“Não descartamos isso mais adiante”, foi a resposta. 

Mas aí voltamos à narrativa que tem sido vendida. Em vez de assumir que tem um bom produto – o serviço de captcha – e querer lucrar muito com ele, a World pretende “resolver um enorme problema” para a humanidade. 

De volta àquela sala em um dia quente em São Paulo, depois de gastarem seu latim tentando nos convencer disso, passaram um vídeo que celebrava as maravilhas do ser humano, com direito a imagens de criancinhas correndo e mulheres felizes sorrindo. 

Não precisava de nada disso.   

Como sabe o leitor que me acompanha, agora com a vitória de Trump chegamos ao paraíso das criptomoedas, e a Worldcoin pretende ser mais uma delas. No momento, ela funciona apenas por acumulação: quem deixa a empresa escanear sua íris ganha mais de R$ 300 reais em “tokens” (25 tokens) agregados à sua conta criada para o uso da identidade, registrado em uma espécie de carteira virtual que você tem que baixar ao criar seu World ID. 

Teoricamente, para sacar o dinheiro basta fazer um Pix, dando um email e CPF. Em outros países, o dinheiro tardou meses ou nunca chegou.

Tanto eu quanto outros colegas da imprensa perguntamos duas ou três vezes qual é o plano para transformar essa moeda em uma moeda com valor, e não tivemos resposta. Um dos expositores explicou que é possível que alguns serviços sejam disponibilizados através do App para serem pagos com a Worldcoin. 

A ideia, até onde eu consigo entender, é que, quando milhões de pessoas tiverem os tais tokens, será fácil criar usos reais para esse dinheiro. É nisso que os “venture capitalists” que financiaram a empreitada estão apostando: segundo a assessoria de imprensa da World, eles detém 25% do total de moedas, como retorno ao investimento. 

Para Sam Altman e Alex Blania, o lucro é duplo: além de estarem criando o maior banco de dados biométricos do mundo, o que por si só tem um valor indiscutível, eles criaram a empresa Tools for Humanity, que “presta serviços” para a World, como desenvolver o aplicativo, o site, ferramentas que são usadas pela organização sem fins de lucro que administra a base de dados (World Foundation). Altman preside a empresa, que tem como investidores uma gama de empresas de criptomoedas, segundo o Valor Econômico: a16z crypto, Bain Capital Crypto, Blockchain Capital e Distributed Global. Ainda segundo o jornal, desde sua criação, recebeu US$ 194 milhões em investimentos.  

Antes de chegar ao Brasil, a World já criou enorme polêmica ao pagar para escanear íris em países pobres, como Indonésia, Zimbábue, Quênia – onde uma CPI foi instalada e o governo teve que ordenar diversas vezes o fim das atividades até ser atendido. A World, por sua vez, já esteve no alvo de órgãos reguladores de países como França, Alemanha, Argentina e Hong Kong. Este ano, teve suas atividades suspensas na Espanha e em Portugal. 

Aqui no Brasil, o início da operação já chamou atenção da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Segundo a Bloomberg Línea, a autarquia instaurou na segunda-feira (11) um processo de fiscalização “com o objetivo de obter mais informações da empresa World sobre o relançamento do projeto que visa escanear a íris humana para verificação de identidade a fim de avaliar a sua conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD”. Uma semana antes, o vice-presidente de Proteção de Dados da Tools for Humanity, Damien Kieran, fez um tour por Brasília, onde se reuniu com reguladores do Ministério da Ciência e Tecnologia e representantes da ANPD.

“As preocupações são menos sobre privacidade do ponto de vista de anonimato e mais do ponto de vista de potenciais usos secundários de identificadores únicos gerados de forma computacional”, diz Rafael Zanatta, diretor da ONG Data Privacy. 

Para ele, a solução é muito engenhosa, “talvez seja a solução mais engenhosa do mundo para identidades digitais”. Mas o primeiro problema é o da soberania digital: “Avançamos em uma privatização de funções estruturais para transações, que é a atribuição e verificação de que uma pessoa é uma pessoa, pois temos poucos instrumentos de fiscalização em escala global”. Para ele, para ser considerada de fato transparente, a “empresa deveria ter um conselho permanente de representantes da população capazes de avaliar as soluções de engenharia do ponto de vista ético”. 

Há outro problema, mais amplo, que Zanatta não comenta, talvez por gentileza. Toda a narrativa da World se baseia no velho bom-mocismo do Vale do Silício, uma argumentação que faria sentido há 20 anos, mas hoje não cola mais. No fundo, o que a World quer fazer é exatamente o que fez o Google quando enviou seus carros com câmeras nas ruas do mundo todo, conseguindo, de maneira inédita, registrar a grande parte das ruas do planeta sem pedir autorização a ninguém. Criou uma base de dados inigualável e agora pode jogar em cima disso. Com sua narrativa de “ajudar a humanidade”, a World leva essa lógica para o corpo humano, trazendo o limite do mundo digital – controlável, privatizável e comercializável – para nossos corpos, para nossos olhos. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

POR QUE INVESTIGAR PODEROSOS?

 

Quando recebi aquele envelope, não imaginava que anos depois ainda estaria falando sobre o conteúdo dele. O ano de 2020 estava chegando ao fim, quando o diretor da Agência Pública, Thiago Domenici, me chamou, junto com uma equipe de repórteres e editores, para uma reunião de emergência na redação de São Paulo. 

Ele nos entregou um envelope com várias páginas de processos criminais. Nossa missão era ler todo aquele material no fim do ano - um presente de Natal indigesto, mas necessário. As páginas continham denúncias de abusos sexuais de dezenas de meninas e mulheres de diferentes lugares do Brasil, só que o agressor era um só: Samuel Klein, o fundador da gigante do varejo brasileiro Casas Bahia

O que aqueles documentos revelavam era escandaloso. Enquanto construía seu império empresarial, o pai do crediário no Brasil também montou um grande esquema para explorar sexualmente crianças e adolescentes. Klein aproveitava a vulnerabilidade social das meninas para atraí-las, oferecendo dinheiro e presentes. Ele também usava a sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, para praticar e ocultar os crimes, num sistema que pode ser comparado a uma espécie de “Crediário da exploração”, como detalhamos no segundo episódio do podcast Caso K. 

Klein já tinha morrido quando recebemos essas denúncias. Ele morreu impune, como um homem poderoso. Sua biografia registrava apenas a trajetória heróica do migrante pobre que construiu um mega império empresarial. Na época em que lançamos as primeiras reportagens sobre o caso de Samuel Klein, não havia qualquer associação pública da figura dele a de um predador sexual. Mas as reportagens que passamos a publicar desde de abril de 2021 conseguiram mudar a história que se conta sobre Klein. Porém, o poder dos Klein continua conseguindo calar muita gente, inclusive boa parte da mídia, que silenciou diante das nossas revelações. 

podcast Caso K é resultado dessa nossa obstinação em investigar histórias que foram ocultadas. Já são mais de quatro anos investigando as acusações de crimes sexuais contra Samuel Klein e seus herdeiros. É o tipo de história que quanto mais você cava, mais coisas encontra. Nossas descobertas foram publicadas várias reportagens ao longo desse período. 

Agora, com ajuda dos nossos Aliados, lançamos o podcast que traz novas revelações e denúncias contra o fundador da Casas Bahia. O podcast chegou ao Top 3 dos mais ouvidos do Spotify, e ocupa o primeiro lugar entre os podcasts de Sociedade e Cultura. Uma produção independente, financiada pelos leitores e que denuncia um dos maiores escândalos empresariais silenciados por décadas, superou no ranking podcasts famosos há anos e apoiados por grandes produtoras. Isso é gigante, mas não podemos parar por aqui. 


Precisamos da sua ajuda para continuar investigando essa e outras histórias envolvendo poderosos, porque nosso dever é revelar aquilo que eles querem esconder. Faça parte disso e nos ajude a produzir uma segunda temporada!
Quero apoiar a Pública!
Um abraço,

Mariama Correia
Editora e repórter da Agência Pública

 

Explosão de ódio na Praça dos Três Poderes

Conversei com alguns bolsonaristas depois do atentado à bomba na Praça dos Três Poderes e, além do desconforto evidente diante do episódio investigado pela Polícia Federal em conexão a outros atos extremistas, como os de 8 de janeiro, a explicação foi a mesma: “o cara era um louco, um suicida, não tem nada de política nisso”.

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi pelo mesmo caminho em seu post na rede de Elon Musk, qualificando o ato de “fato isolado e ao que tudo indica causado por perturbações na saúde mental”. Mas, sintomaticamente, acrescentou em seguida: “é um acontecimento que nos deve levar à reflexão”. 

Bolsonaro, porém, não estava convidando as pessoas a refletir sobre o extremismo por ele cultivado desde a criação do gabinete de ódio em seu governo – como lembrou o ministro Alexandre de Moraes –, insuflando os golpistas para quem agora busca a anistia (mirando a sua própria) pelos atentados cometidos com o objetivo de mantê-lo no poder depois de uma derrota eleitoral. 

As frases seguintes do post de Bolsonaro acabam por enfraquecer a tese do louco suicida e soam quase como ameaça ao se referir ao episódio em que um ex-candidato a vereador pelo seu atual partido, o PL, o chaveiro catarinense Francisco Wanderley Luiz detona bombas após tentar entrar com explosivos caseiros (mas letais) dentro da Suprema Corte.

Disse o ex-presidente no X: “A defesa da democracia e da liberdade não será consequente enquanto não se restaurar no nosso país a possibilidade de diálogo entre todas as forças da nação. E nisso as instituições têm papel fundamental [grifo meu]. Por isso, apelo a todas as correntes políticas e aos líderes das instituições nacionais para que, neste momento de tragédia, deem os passos necessários para avançar na pacificação nacional”.

Quais seriam os “passos necessários” para essa “pacificação”, na visão de Jair Bolsonaro, aquele que se recusou a passar a faixa para o presidente eleito e fomentou suspeitas sobre a lisura do processo eleitoral? Afinal, o Brasil vive hoje a paz da normalidade democrática que não existia em seu mandato. Se alguém fomentou intenções terroristas e alimentou o ódio contra o Supremo, em particular contra o ministro Alexandre de Moraes, alvo principal do terrorista, foi o próprio ex-presidente. 

 O que leio nas entrelinhas do post de Jair Bolsonaro é: se as instituições não anistiarem os presos de 8 de janeiro e ele mesmo continuar inelegível, não haverá a “pacificação”. Ou seja, atentados como esse podem se repetir. 
Essa, claro, é apenas a minha opinião, a que tenho direito neste espaço pessoal e intransferível. Mas vamos, então, à resposta do diretor-geral da Polícia Federal (PF), Andrei Rodrigues, ao ser indagado na coletiva de ontem se o homem que construiu e detonou os explosivos seria um “lobo solitário”.

“Eu particularmente tenho algumas ressalvas a essa expressão, lobo solitário, porque ainda que a ação visível seja individual, por trás da ação nunca há só uma pessoa, há sempre um grupo, ou ideias de um grupo, extremismos e radicalismos que levam a cometimento desses delitos”, afirmou Rodrigues, depois de uma fala inicial em que já havia conectado esse crime a outros anteriormente cometidos pela extrema direita após a vitória eleitoral de Lula. 

Ecoando Alexandre de Moraes, que argumentou que uma eventual “impunidade vai gerar mais agressividade” ao defender a condenação dos golpistas, o diretor-geral da PF também se posicionou contra a anistia. “Estamos falando de ações violentas contra o estado democrático de direito. Estamos falando em tentativa de homicídio e armadilhas a policiais que estavam fazendo uma investigação. Não é aceitável que se proponha anistia”, disse Rodrigues aos jornalistas. 

“Os grupos de extremistas mostram com essa ação que estão bem vivos”, prosseguiu, relatando em seguida que havia tomado conhecimento ontem de “novos emails com mensagens de ameaças à Suprema Corte”. E alertou: “Eles estão aí, eles estão aí e precisam de fato ser combatidos, e isso não é esforço só das forças policiais, mas de toda a sociedade”. 

Sobre a possibilidade de evitar o crime premeditado, anunciado previamente na internet, Rodrigues defendeu a regulamentação das redes sociais, ainda poluídas de discursos golpistas e de ódio, uma medida que não consegue avançar no Congresso por ser repudiada pela direita, que, aliás, grassa na rede de Elon Musk. 
 Como jornalista, acrescento: além de deter os adeptos de redes sociais sem freios, espero que o som das bombas detonadas às sete e meia da noite de uma quinta-feira em local onde se reúnem as maiores autoridades da República tenha chacoalhado também os diretores de jornais, alertando que não é hora de brincar com a palavra democracia.
Não faz sentido atribuir a violência política, comandada por um único lado, a uma suposta polarização, como fazem rotineiramente os veículos comerciais, nem normalizar um ex-presidente golpista a ponto de chamá-lo para manifestar suas ideias, sem contestação, como fez a Folha de S.Paulo, ao publicar artigo sarcasticamente intitulado “Em nome da democracia”, assinado por Jair Bolsonaro. 

Um atentado à credibilidade do jornal centenário e, “no mínimo, um golpe no estômago”, como definiu o colega e conselheiro da Pública Ricardo Kotscho, que trabalhava no jornal quando este era porta-voz do movimento Diretas-Já.

Completo: um sinal da decadência da imprensa grande e da falta de compromisso com o interesse público, quando cabe a toda sociedade, sobretudo ao jornalismo, combater os que disseminam o veneno do ódio autoritário que matou o patético homem-bomba logo depois de ter lançado um artefato contra a estátua da Justiça. 

A democracia não está dada, e é dever da imprensa defendê-la todos os dias, sobretudo quando o golpismo fervilha e ameaça a todos nós.


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org