terça-feira, 30 de julho de 2024

 

A inteligência artificial tem sede - e está de olho no Brasil  


A história se repete. Assim como no caso da famigerada lei das Fake News (PL 2630), a proposta de regulamentação da Inteligência Artificial (PL 2338) foi adiada já três vezes já na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial do Senado, criada pelo presidente Rodrigo Pacheco apenas para esse fim. As coincidências não acabam aí. Também teve assédio online contra quem se colocou a favor da regulamentação, bolsonaristas disseram que a proposta seria algum tipo de censura, e a falta de votação beneficia as mesmas empresas, sim, as Big Tech.   

Agora, no caso da lei de regulamentação de IA, quem melou a votação que estava agendada para acontecer em 9 de julho foi a Confederação Nacional da Indústria. A CNI resolveu boicotar o projeto de lei alegando que, se fosse adiante, o Brasil iria perder a competitividade e investimentos na área de IA e corria até “risco de sofrer um isolamento e atraso tecnológico”. A CNI, ecoando as Big techs, afirmou ainda que não houve discussão ampla sobre o tema. 

Pra quem estava atuando diretamente na negociação, a cartada da CNI foi um choque – afinal, as Big Techs e a própria CNI foram ouvidas ao longo de dois anos, houve 14 audiências públicas, um seminário internacional, mais de cem manifestações de especialistas e dezenas de emendas parlamentares de última hora. 

Mas o que estava por trás do posicionamento foi o fato que, segundo apuração da jornalista Patrícia Campos Mello, as Big Techs teriam ameaçado não trazerem seus Data Centers para o Brasil caso a lei fosse aprovada como estava.    

De fato, quem leu o documento da CNI encontrou uma perspectiva aterradora – que beira um escândalo. Segundo ele, o Brasil tem dois grandes diferenciais competitivos para desenvolvimento e uso da IA:  “O tamanho e a heterogeneidade da população, que pode alimentar com informações as bases de dados que treinam as aplicações de IA generativa”, e “a matriz energética limpa para atender a demanda dos datacenters”, por oferecer “energia limpa, segura, barata e abundante”. 

Acontece que, desde o lançamento do Chat GPT, começou uma verdadeira corrida-do-ouro para a construção de Data Centers e de acesso aos recursos naturais que são necessários para eles funcionarem: energia barata – e de preferência renovável – e água. Muita água. 

Isso porque a IA processa muito mais dados para cada resposta que envia do que, por exemplo, o algoritmo de busca do Google. Para se ter ideia, entre 2021 e 2022, quando a Microsoft abraçou a Open AI e outras ferramentas de IA, seu consumo de água aumentou em 34%. A sede por água é acompanhada pela demanda por energia – tanto que Sam Altman, CEO da Open AI, alertou para uma “crise econômica catastrófica” e anunciou um plano de investimento massivo em energia nuclear.  

A corrida por novos Data Centers tem movimentado até o mercado imobiliário norte-americano. Vale ler este elogioso artigo do site americano Market Watch, por exemplo, descrevendo que as áreas mais “hot” do mercado imobiliário para comércio “não estão em Manhattan ou Miami. Em vez de hotéis elegantes ou torres de escritórios reluzentes, os novos queridinhos do setor são centros de dados, que consomem muita energia, frequentemente localizados em lugares como o norte da Virgínia; Columbus, Ohio; e Salt Lake City”. Especialistas consultados pelo site afirmam que há mais investimentos indo para Data Centers do que qualquer outro tipo de construções, como hotéis ou hospitais. 

Com a necessidade de energia barata e muita água, é claro que os olhos se voltam para a América Latina, e em especial para o Brasil, que possui 12% da água doce do mundo e uma matriz energética considerada limpa. Abundam pela internet relatórios de mercado demonstrando como a América Latina é o local ideal para a construção dessas infraestruturas. 

Chile, México e Brasil são pontos principais centros “devido às suas localizações estratégicas, infraestrutura robusta e políticas governamentais favoráveis”, como aponta este relatório da consultoria Helmi, que prevê que os investimentos devem quase dobrar antes do fim da década.

Nada disso ocorre sem um enorme impacto social e ambiental. No Uruguai, o Google planejava construir um Data Center em um terreno de 29 hectares em Montevidéu, mas protestos eclodiram na capital quando houve uma seca que durou meses. O projeto teve que ser reformulado pela empresa, incluindo refrigeração por ar e não por água, para ser aprovado. No Chile, um projeto de um novo Data Center em Cerrillos, área central do país, foi suspenso pela Justiça depois de protestos dos moradores locais. O projeto previa o uso de 169 litros de água por segundo. 

Aos poucos, outras comunidades começam a questionar este uso dos recursos naturais para servir às sedentas máquinas de IA – que, claro, atendem muito mais a consumidores do norte global que às populações locais. 

No estado mexicano de Querétaro, já há 10 Data Centers em funcionamento, e planos para outros 18, segundo Ana Valdivia, especialista em IA do Instuto para Internet da Universidade de Oxford disse ao site Mongabay. Um dos principais investidores é a Microsoft, que promete “acelerar a transformação digital do México” ao oferecer “para todas as organizações em todo o mundo, fornecendo acesso local a serviços em nuvem escaláveis, altamente disponíveis e resilientes”.

Com a emergência climática, o estado mexicano está sob risco de seca – e boa parte da sua população já tem que caminhar horas para encontrar água. Segundo Ana Valdivia, “os centros de dados estão extraindo água potável para seus negócios econômicos” enquanto os moradores “têm que caminhar quase um dia para regar seus feijões”.

(Aliás, quem nunca viu um Data Center, é algo pavoroso, digno e de filme de ficção científica: são fileiras e fileiras de hardware cercados de sistemas de esfriamento, com pouquíssimo trabalho humano envolvido, funcionando a toda. Uma infinidade de máquinas, sozinhas, consumindo energia e água enquanto processam todas as perguntas da humanidade.

Voltemos ao documento da CNI, uma peça que poderia figurar num museu do entreguismo nacional. Uma da maiores discordâncias das Big Tech e do CNI à lei proposta pelo Senado é o fato de que a lei prevê pagamento para uso de conteúdo que tem copyright para treinamento de IA. A ideia é não permitir que ferramentas como Chat GPT usem e abusem do fruto do nosso trabalho, para depois lucrarem com ele. 

Daí aquele item sobre sermos uma nação grande e diversa que pode alimentar as maquininhas de IA preditiva. Apesar da LGPD apontar no sentido oposto, parece que os donos da indústria estão contentes em vender os nossos dados bem baratinho – ou melhor, de graça. 

Essa é apenas uma das preocupações que fizeram a lei adotar uma filosofia “principiológica” em vez de prescritiva: como não se sabe o que ainda se vai inventar no campo da inteligência artificial, estabelecem-se princípios ao desenvolver tais ferramentas. E, a isso, a CNI responde no seu pronunciamento, sem nem corar: “O modelo regulatório sui-generis voltado para direitos do cidadão leva à insegurança jurídica”. 

Nada de novo sob o sol, por mais que se escondam sob os novos termos de ESG, economia “descarbonizada” e , agora, “powershoring” – termo que significa que empresas estão terceirizando suas plantas e Data Centers para países onde a energia é “limpa”, bem localizada, mas, principalmente, barata.   

Afinal, se nossa natureza, nossos recursos, nosso trabalho, nossos corpos, valem muito menos do que dos trabalhadores do norte, assim também será com nossos dados. 

É a boa e velha Macondo de sempre, já diria o escritor Gabriel García Márquez. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

quinta-feira, 18 de julho de 2024

 

Racismo do Judiciário: da abordagem nas ruas ao processo penal

A frase do governador Cláudio Castro para tentar justificar a abordagem truculenta de PMs a três adolescentes negros - filhos de diplomatas estrangeiros - revela o manual não escrito da polícia do Rio: “É muito complicado para o policial saber se é filho de um diplomata, de um rico”, disse em reação ao ofício do Itamaraty, pedindo ao governo do estado a investigação do caso, ocorrido em Ipanema na semana passada. 

“Como vai apontar armas para a cabeça de meninos de 13 anos?”, perguntou, incrédula, Julie-Pascale Moudouté, embaixatriz do Gabão e mãe de um dos garotos agredidos. 

 Ela ainda não sabia que, no Brasil, a cor da pele de vítimas de qualquer idade desperta a abordagem brutal da polícia, só agora investigada por racismo por atingir os meninos negros “errados”, como sinalizou o governador. 
E isso não se restringe ao Rio; não vamos esquecer que o coronel da Rota que é candidato a vice-prefeito na chapa de Ricardo Nunes em São Paulo, já disse frase semelhante: “Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade”, declarou o coronel Mello Araújo ao Uol. 

Os dois garotos brancos que acompanhavam os filhos dos embaixadores no Rio não sofreram o mesmo grau de violência. A mãe de um deles acusa os PMs de racismo. “As imagens, os testemunhos e o relato das crianças são claros! Não há dúvida! A abordagem foi racial e criminosa! Há anos frequentamos o Rio e nunca presenciei nada parecido no quadradinho de Ipanema com meus filhos”, escreveu Raiana Rondhon em um post nas redes sociais.

Bem longe de Ipanema, Rafaela Matos, mulher negra e periférica, sabe o que significam, na prática, as palavras do governador, pronunciadas no mesmo dia em que foram absolvidos sumariamente os policiais civis que em 2020 dispararam mais de 60 tiros contra a casa onde seu filho, João Pedro, de 14 anos, foi morto no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.

Rafaela agora sabe mais: não apenas a abordagem da polícia, mas também “o processo penal é racista no Brasil”, como diz o defensor público Pedro Cariello que atua como assistente da acusação, representando a família de João Pedro. 

Há quatro anos, Rafaela e o marido, Neilton, lutam por Justiça pelo assassinato do filho em um processo opaco desde o início: o corpo do garoto ficou desaparecido durante 17 horas, sem qualquer comunicação à família, até aparecer já no Instituto Médico Legal (IML). Testemunhas ouvidas no inquérito policial dizem que não houve perseguição policial ou troca de tiros com “traficantes”, como alegam os policiais. Por fim, uma perícia do Ministério Público constatou que a cena foi alterada depois do crime, com armas “plantadas” para forjar a presença dos “traficantes”, além de a reconstituição não coincidir com a dinâmica dos fatos relatada pelos policiais.

Mas a juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine não deixou que o caso sequer chegasse ao Tribunal do Júri, que é o órgão competente para julgar os crimes contra a vida. Optou por ignorar as provas produzidas pelo Ministério Público e absolver sumariamente os réus acolhendo a absurda tese da defesa: os policiais mataram uma criança inocente dentro de casa em legítima defesa. 

“Essa absolvição sumária é um fato raríssimo e, neste caso, um equívoco e vou explicar porquê. Há pelo menos duas vertentes na prova e se há pelo menos dois caminhos que podem ser seguidos, a juíza não pode abdicar, dizer que essa prova não vale, e compreender uma outra, e ela decidir. Pela soberania do júri, se tem uma versão acusatória com uma prova, se há uma versão defensiva com outra prova, quem vai decidir isso é o júri, senão ela subtrai a competência do júri”, explica Cariello. 

“Ela acredita que há uma legítima defesa em policiais reagindo e atingindo uma criança dentro de casa!”, indigna-se o defensor. “Mesmo que houvesse a presença dos alegados traficantes, a criança não está nesse quadro. A juíza faz uma opção política e ideológica e exclui a prova do Ministério Público, lícita e legítima, enquanto o destinatário final da prova é o júri”, afirma. “Se houvesse uma única versão, apoiada por testemunhas e provas, aí sim ela poderia absolver sumariamente os réus”. 

A Defensoria Pública e o Ministério Público do Rio de Janeiro vão recorrer ao Tribunal de Justiça para tentar reverter a surpreendente sentença da juíza que, com mais de 300 páginas, destinou apenas duas à alegada legítima defesa, como informou o defensor. “Esperamos o reconhecimento desse equívoco por parte do Tribunal local”, diz Cariello.
 Vamos esperar também que a injustiça cometida contra os meninos negros estrangeiros, com mais recursos que Rafaela e Neilton, finalmente nos faça encarar de frente o racismo cometido da base ao topo do Judiciário brasileiro e normalizado entre nós.
Um levantamento do Fogo Cruzado revelou que, em sete anos, 601 crianças e adolescentes foram baleados no Rio, 286 deles durante ações policiais. Por isso Rafaela escreveu, em um post no Instagram, no dia da absolvição dos policiais que lhe arrancaram João Pedro: “Não sou diplomata, sou mãe de um menino que morava na favela e teve os direitos violados”. Mais um.


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública

marina@apublica.org 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

 

Déjà vu  


Já vimos esse filme, e o final não foi bom. Um candidato a presidente que se autointitula contra o sistema, desafiando não só as normas da política como do bom senso – e também as leis –, avança diante de outro candidato titubeante. No meio da corrida, uma tragédia: um “lobo solitário” atenta contra sua vida, ele persevera. Vira herói. Vira mito. Vira invencível.  
   
No sábado, nós, brasileiros, experimentamos um angustiante sentimento de déjà vu diante do atentado à vida de Donald Trump. Se a muvuca acalorada e o empurra-empurra de Juiz de Fora foram substituídos pela dignidade viçosa dos Men In Black que cercaram Trump ferido, enquadrando a épica imagem do punho cerrado diante da bandeira americana em Butler, na Pensilvânia, isso só demonstra que por lá a coisa tem que ser mais hollywoodiana mesmo. 

Em jornalismo, erra muito quem diz saber o rumo que as coisas vão tomar. Mas o chocante atentado contra Donald Trump deve ser determinante em uma disputa que antes seguia indeterminada. Vendo-o aqui da perspectiva brasileira, parece um grande exercício de otimismo forçado achar que Trump não vai levar essa eleição.

Claro, é verdade que já não estamos em 2018, e que os Estados Unidos de agora não são o Brasil daquela época. Nem Trump é um virtual desconhecido, com um estilo novo e disruptor diante do grande público. Mas é exatamente este o problema. Desde o começo da pré-campanha, e ainda mais depois do desastroso debate em que Joe Biden demonstrou sua fragilidade, Trump tem sido mais virulento do que jamais fora. Hoje, o candidato Trump é a imagem de Bolsonaro na Paulista, naquele fatídico domingo pré-eleição de 2018, quando, já certo da vitória prenunciada pelas pesquisas, afirmou que os “vermelhos” teriam duas opções: o exílio ou a prisão.  

Vamos aos fatos. Na semana passada, antes ainda do atentado, Trump usou sua rede social Truth Social para prometer que vai perseguir todo mundo que, nas suas palavras, participarem das “fraudes eleitorais” – chamados de “election fraudsters”. Postou: “Eles não têm vergonha! Tudo o que posso dizer é que, se eu for eleito presidente, perseguiremos os fraudadores eleitorais de maneira nunca antes vista, e eles serão enviados para a prisão por longos períodos de tempo”. Encerrou a postagem com uma ameaça direta a Mark Zuckerberg, do Facebook: “Nós sabemos quem você é. Não faça isso, ZUCKERBUCKS, tenha cuidado!”

Pouco depois, ele retuitou uma postagem afirmando que a ex-governadora de Wyoming, Liz Cheney – uma das poucas republicanas a abertamente denunciar o seu golpismo –  é “culpada de traição à pátria” e deveria ser julgada por um “tribunal militar” transmitido pela tevê. E pediu para seus seguidores republicarem o conteúdo. O fato de Liz ser filha de Dick Cheney,  um dos mais influentes republicanos de todos os tempos, ex-vice-presidente sob George W. Bush, só mostra como Trump 2.4 está ainda menos interessado em fazer qualquer concessão – nem mesmo aos caciques do seu partido. 

Trump volta à Casa Branca tomado por sede de vingança e sem as amarras de quem pode querer um segundo mandato. Suas palavras já ampliaram ainda mais o fosso moral que separa a política da trapaça, da perseguição – e da violência, como vimos.  Seus seguidores e apoiadores estão na mesma frequência. 

Com financiamento de US$ 100 mil da Heritage Foundation, organização que financia a extrema direita nos EUA, a ONG American Accountability Foundation tem feito muito publicamente um “pente fino”  nos principais funcionários públicos do governo federal americano em cargos não-comissionados que podem resistir às políticas de Trump num eventual segundo mandato. Levantam suas afiliações, posts em redes sociais e decisões enquanto servidores públicos para criarem uma lista que vai ser publicada com o claro objetivo de promover um grande expurgo quando Trump chegar à Casa Branca. Os principais alvos são servidores graduados do Departamento de Estado, Homeland Security e outras agências que lidam com imigração. 

Segundo a Heritage Foundation, a doação foi feita para produzir “relatórios aprofundados e esforços educacionais para alertar o Congresso, uma administração conservadora e o povo americano sobre a presença de atores mal-intencionados anti-americanos infiltrados no Estado administrativo e garantir que ações apropriadas sejam tomadas.”

O atentado contra Donald Trump, claro, também acirrou os ânimos da direita mundial, fortalecendo uma coalizão que tem se mostrado mais unida a cada dia, como demonstra o recente CPAC, congresso conservador promovido por Eduardo Bolsonaro no Balneário Camboriú (SC) na semana passada, e o lançamento da iniciativa de unir partidos de extrema direita, que revelamos aqui na Agência Pública

As principais lideranças desta nova coalizão foram unânimes em colocar a culpa pelo atentado na “esquerda”. 

O presidente argentino Javier Milei, que esteve no CPAC, escreveu que “o desespero da esquerda internacional não é surpreendente, pois hoje vê a sua ideologia nociva expirar e está disposta a desestabilizar as democracias e a promover a violência para chegar ao poder”. 

O líder do partido espanhol VOX postou a foto em que Trump aparece de punho cerrado, diante da bandeira americana, agradecendo a Deus por ele ter sobrevivido. “É preciso deter a esquerda globalista que está semeando o ódio, a ruína e a guerra.”, escreveu no Twitter (me recuso a escrever “X”).

Por aqui, Flávio Bolsonaro e Michelle foram os porta-vozes do clã, relembrando, claro, a facada a Bolsonaro. “A esquerda é assim no mundo inteiro! Sempre tentando resolver as coisas na bala ou na faca! Covardes”, escreveu Flávio. “Infelizmente esse é o modo operacional dos nossos adversários”, postou Michelle. 

Nosso querido Ricardo Kotscho tem razão ao afirmar que a Pensilvânia não é Juiz de Fora e nem existirá um repeteco idêntico ao que vimos com horror em 2018. Mas há que se reconhecer que tampouco Joe Biden tem a garra que Fernando Haddad demonstrou naquela eleição, fazendo uma campanha decente, apesar de ter sido escolhido na última hora para substituir o candidato que, àquela altura, estava na prisão. 

A menos que o decadente presidente americano decida tomar uma atitude drástica, desista de aferrar à nomeação e abrace com entusiasmo sua substituta, desculpem-me, mas a eleição foi sim decidida no último sábado. E Trump saiu vencedor. 

 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

terça-feira, 9 de julho de 2024

 

O agro quer fazer um ‘rebranding’

 

Quem passa frequentemente pelo entorno do estádio do Palmeiras, na zona oeste de São Paulo, já se acostumou com os avisos de interdição de trânsito na avenida Palestra Itália, antiga Turiaçu, em dias de jogos ou de grandes shows. Já tocaram ali de Paul McCartney a Titãs; de Taylor Swift a bandas de K-pop. Os sertanejos todos também estão sempre por lá e foi um show de um deles que eu imaginei que iria acontecer no estádio na semana passada quando vi o aviso de um tal de Gaffff (assim, cheio de Fs mesmo). Não captei de imediato o que significava a sigla, mas vi que tinha agro e tinha festival.

Na verdade era um negócio muito maior, o Global Agribusiness Festival, com a proposta nada modesta de ser “o maior festival de cultura agro do mundo”. Sim, tinha shows de sertanejos, mas também, como apresentado no prospecto: food (comida), fun (diversão), fair (feira de negócios) e forum (fórum de discussões). Daí os 4 Fs, em inglês, afinal, o evento era “global”. Afff.

Apesar de ter nascido no berço dessa cultura agro, em Barretos, e de saber cantar de cor e salteado não apenas “Evidências”, fujo da Festa do Peão, e sertanejos não passam pela minha playlist. Mas fiquei interessada na parte “forum” do evento – e a promessa de acessar “conteúdos que transformam o agro e o planeta”.

A descrição das palestras, restritas a convidados, era tentadora: “Além de reforçar a importância do agro no cenário econômico brasileiro e internacional, nossos painéis irão debater os rumos do setor e seus principais desafios, principalmente em relação às mudanças climáticas, preservação de recursos naturais e soluções sustentáveis para uma população em crescimento”.

O leitor mais desconfiado sentiu um cheirinho de greenwashing? Eu também. Mas, vamos lá. Não é todo dia que a gente vê o agro se dispondo a colocar mudanças climáticas e preservação de recursos naturais como prioridade no debate. Veja que tem um “principalmente” ali no resuminho. Achei que merecia uma colher de chá.

De 19 painéis, quatro traziam a palavra “sustentabilidade” no título e só dois falavam explicitamente em “mudanças climáticas”. Fui conferir um deles, sobre “como mitigar e evitar os riscos dos eventos extremos”. É de imaginar que essa deve ser a preocupação número 1 do setor, que vem sofrendo sucessivas perdas por causa de secas e chuvas muito intensas. Só no Rio Grande do Sul estima-se que os temporais entre o fim de abril e o começo de maio tenham levado a um prejuízo de R$ 3 bilhões à agricultura gaúcha.

Logo na abertura da mesa, porém, ficou claro que, apesar de claramente se identificar como vítima do aquecimento global, o setor não quer discutir as contribuições que ele tem ao problema. Luiz Roberto Barcelos, presidente da Agrícola Formosa, do Ceará, que moderava a discussão, foi rápido em explicar: “A mudança ocorre, mas não vamos discutir o motivo, não vamos entrar em polêmica. Se é o homem do campo ou o homem da indústria que polui, não vamos debater”.

Na sequência, Caio Souza, head de Agronegócios da Climatempo, entrou no jogo: “Precisamos olhar o problema, não precisamos buscar o ator principal da mudança climática. A mudança climática é o ator principal. Somos coadjuvantes e precisamos criar oportunidades.”

Tudo bem, eu entendo que existe uma estratégia aí de não apontar dedos para não afugentar ninguém, superar resistências e, principalmente, o negacionismo. Para lidar com o problema, todo mundo precisa estar junto, então bora trabalhar, deixa essa história de responsabilidades para lá.

Mas… quando estamos tratando das mudanças climáticas, se, por um lado, sim, é preciso falar em adaptação, em criar formas de se proteger e, obviamente, de sobreviver ao novo cenário que já está posto; por outro, não tem como não considerar o que está causando o problema para começo de conversa – que é o fato de a humanidade estar emitindo loucamente gases de efeito estufa, que se acumulam na atmosfera como não ocorria há mais de 3 milhões de anos

Adaptar-se ao aquecimento global é tão fundamental quanto mitigá-lo: fazer todos os esforços possíveis para diminuir a quantidade de gases que aquecem o planeta.
 
Se em todo mundo a maior parte desses gases é proveniente da queima de combustíveis fósseis, no Brasil as fontes principais são o desmatamento e a agropecuária (por causa, principalmente, da digestão do rebanho – o proverbial arroto do boi). Considerando que a maior parte das áreas desmatadas no Brasil acaba sendo convertida, posteriormente, em pastagem e agricultura, pesquisadores do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) calculam que o setor, indiretamente, é quem mais colabora com as emissões brasileiras. 

Sinto muito, pessoal. Não discutir isso é não lidar com o elefante na sala. 

 
Desenvolver técnicas para proteger as safras e os rebanhos, mas não trabalhar para zerar o desmatamento entre produtores que ainda o praticam só vai aumentar os riscos para o setor. Nunca é demais repetir: menos floresta = mais calor e menos chuva.
 
Também é preciso trabalhar para que todo o crédito agrícola no Brasil seja vinculado a boas práticas que reduzam as emissões. Coisa que especialistas pedem todo ano, mas ainda não virou realidade no Plano Safra.

Infelizmente, não parece que o evento estava muito interessado em identificar os próprios problemas. O sentimento foi reforçado em outro painel que assisti: “O rebranding no agronegócio: Transformando a Percepção sobre o Setor”.

Rebranding é um conceito que vem da publicidade e que visa fazer um reposicionamento de marca, de imagem. A ideia é “fazer com que as pessoas mudem a percepção de alguma coisa”, como explicou o publicitário Marcelo Rizerio, da agência Euphoria, que se apresentou no painel. Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal, que moderou a mesa, disse que o agro precisa mostrar que é super tecnológico e também “como é difícil manter comida na mesa dos brasileiros”.

Eduardo Monteiro, diretor comercial e de marketing do Canal Rural, disse que histórias estão sendo contadas sem que o setor assuma o protagonismo delas. “Estão chegando na sociedade sem que a gente conte as nossas histórias”. Ainda defendeu: “Senão, um fica apontando o dedo para um, para outro. [Mas] o agro tem de ser o agro da paz. A discussão é saudável, mas o conflito, o confronto levam à rejeição”.

Fiquei esperando a hora que alguém ia explicar qual história está chegando na sociedade, qual é a imagem que eles querem mudar. Mas assim como na mesa da mudança climática, ninguém quer tratar de problema. Um único slide trazia muito rapidamente palavras como desmatamento e agrotóxicos. 

O agro quer mudar, mas não quer assumir o que está fazendo de problemático, seja da portaria para dentro, ou para fora.

Achei simbólica uma frase que Rafael Furlanetti, sócio-diretor institucional da XP, que promoveu o evento, disse repetidas vezes em sua apresentação: “Quando você fala uma coisa diversas vezes para uma pessoa e ela não entende, o problema não é a pessoa, o problema é você, que não explicou direito”.

Agora pensa comigo. Esse é o mesmo agro que conta com uma propaganda na maior rede de televisão vendendo à exaustão que é isso, é aquilo, é pop, é tudo e tal. Se esse setor diz que sente a necessidade de fazer um rebranding, fico pensando se o problema é que ele realmente não está explicando direito ou se os fatos, na realidade, é que não são tão brilhantes assim.

 

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental
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quinta-feira, 4 de julho de 2024

 

Perda de água, seca recorde, desmatamento: a receita do fogo no Pantanal

 

A ideia tradicional de ter fogueira das festas juninas ganhou uma conotação bizarra neste fim de junho quando viralizou nas redes sociais um vídeo das comemorações de São João na cidade de Corumbá (MS). Visto do alto, no primeiro plano aparece a população curtindo a festa em frente a um palco. Ao fundo, do outro lado do rio Paraguai, uma faixa vermelha tingia todo o horizonte: é o Pantanal ardendo em chamas.

O drama pantaneiro vem sendo alertado pela mídia há algumas semanas: este é o junho com mais queimadas desde o início das medições pelo Programa Queimadas, do Inpe, em 1998. Até esta quarta-feira, 26, foram registrados 2.527 focos – número que supera em quase 6 vezes a quantidade de focos do mesmo mês em 2005, até então o junho com mais fogo do registro histórico, com 435 focos. 

A quantidade de incêndios deste último mês já empata com todo o primeiro semestre de 2020 – com 2.534 focos –, até então o ano com recorde de fogo no Pantanal. 

As queimadas de quatro anos atrás, o caro leitor deve se lembrar, e eu até comentei sobre isso aqui neste espaço há duas semanas, foram marcadas pelas tristes histórias de onças resgatadas com as patas queimadas e pelas imagens de animais carbonizados. Também foram marcadas por uma intensa cobrança pelo desmonte da política ambiental promovido pelo governo Bolsonaro – em curso desde o início do mandato. 

Como era de se esperar, agora são os bolsonaristas que estão se valendo dos recordes para cobrar a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e o próprio presidente Lula. Já perguntaram por onde andam Emmanuel Macron e Greta Thunberg – o presidente da França e a jovem ambientalista sueca foram alguns dos críticos mais vocais de Bolsonaro desde 2019, quando o desmatamento e as queimadas na Amazônia começaram a disparar. 

E ficam dizendo que eram injustas as cobranças de 2020 porque, “olha só, agora tá tudo muito pior”. Tem até site jornalístico escrevendo que “Marina culpou o governo Bolsonaro por incêndios no Pantanal [em 2020] e agora fala em mudanças climáticas, seca e ação humana”. Ah, me desculpem os colegas, mas um pouco mais de seriedade, por favor, né?

 

Sim, os números são claros. Há um novo e dramático recorde no Pantanal, com previsões de que a situação ainda pode piorar mais neste ano. Mas os dados só contam uma parte da história e, sozinhos, não dão a exata dimensão do problema, nem do desafio para combatê-lo. Além de não serem suficientes para comparar nada com nada. 

No início desta semana, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo (vamos-passar-a-boiada) Salles resolveu bancar o sabichão. Ao compartilhar nas redes sociais a notícia de que o Mato Grosso do Sul decretou emergência por causa dos incêndios, escreveu: “O assunto é bastante sério. Não comporta bravatas como as acusações cretinas que fizeram contra nós no Ministério durante os anos Bolsonaro”. Na sequência, listou o que ele acha que precisa ser feito.

“As queimadas atuais estão muito maiores dos que as de 2020, porém as causas são as mesmas: 1) ausência, por puro dogmatismo, de manejo prévio e adequado através da queima preventiva do excesso de matéria orgânica seca; 2) relutância, também dogmática e irracional, contra o uso dos produtos retardantes de fogo nas aeronaves de combate a incêndio e, 3) falta de chuvas. Tudo igual, porém muito maior”, disse.

Vou me ater aos itens 1 e 3, porque o 2, apontam os especialistas, é uma grande barbaridade que só traria ainda mais problemas. De todo modo, me pergunto: se ele pensava assim, por que não agiu quando era ministro? Mas vamos lá. 

Sobre a falta de chuva. O Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que monitora via satélite incêndios no Brasil, divulgou uma nota técnica nesta segunda-feira, 24, sobre o que está acontecendo no Pantanal em que é categórico. Infelizmente, não tem nada de “tudo igual” no que está ocorrendo agora.

“Desde o final de 2023 e início de 2024, a região apresenta o maior índice de raridade de seca (com base na umidade do solo) já registrado desde 1951, ultrapassando o ano de 2020, que até o momento era considerado o primeiro do ranking de secas”, escrevem os pesquisadores. “O período 2023/2024 não encontra paralelo em nenhum outro período do registro histórico, sendo sem precedentes em termos de intensidade e duração da seca.”

Trata-se de um problema que não vem de hoje e tem como origem um combinado de fatores que estão “literalmente secando o Pantanal”, como explicou o engenheiro florestal e ambientalista Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, à jornalista Miriam Leitão, do jornal O Globo.

“A corrente de água que vem da Amazônia, os chamados rios voadores, está diminuindo por causa do desmatamento na região. Outro problema é que no planalto, no entorno do Pantanal, muitas áreas estão sendo convertidas em pastagem ou em campos de soja. E isso aumentou muito o assoreamento da Bacia do Paraguai, porque está vindo muito sedimento. Tanto que o Pantanal está ficando mais raso. E tem um terceiro problema que é a destruição do pasto natural para ser substituído pelo pasto plantado”, disse Azevedo.

O fogo neste ano começou muito antes do que o normal. Junho não costuma ter muitos focos. Varia de algumas dezenas e a algumas centenas, mas, em média, de 1998 até o ano passado, o mês teve 103 focos. Para o ano, a média de área queimada no bioma é de 8%, de acordo com dados do Lasa/UFRJ. Em 2020, foram cerca de 30%, por volta 3,6 milhões de hectares. Naquele ano, os focos começaram a chamar atenção a partir de julho, atingindo o pico de 8.106 focos em setembro.

De acordo com o laboratório, em 2024 já foram queimados 684 mil hectares, contra 260 mil ha no primeiro semestre de 2020. Estimativas a partir de modelo matemático que levam em conta as condições climáticas em curso e o que se conhece sobre clima e fogo na região apontam que há 80% de probabilidade de chegar, no mínimo, a 3 milhões de hectares neste ano, me explicou Renata Libonati, que coordena os trabalhos do Lasa.

Em relação ao item 1 citado por Salles, ele até tem razão, mas, de novo, tampouco fez isso. A ministra Marina Silva tem defendido fortemente, desde o ano passado, a aprovação de uma lei que estabelece a chamada Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (MIF), que tem, justamente como premissa essa ideia de usar fogo para poder combater o fogo

O MIF é uma abordagem ampla construída a partir da interação entre o conhecimento científico e os saberes ancestrais de uso do fogo de populações indígenas e tradicionais. Ele engloba, entre outros pontos, ações de prevenção e combate aos incêndios florestais de modo articulado entre governo federal, estados e municípios – coordenação fundamental e necessária quando se considera as características do Pantanal. Maior parte do bioma é tomado por propriedades privadas, onde Ibama e ICMBio não atuam, por exemplo. 

A matéria é considerada prioritária para o ministério, chegou a ser aprovada na Câmara, mas parou no Senado por lobby dos Bombeiros, como mostramos em reportagem no ano passado. No início desta semana, Marina frisou: “Gostaríamos muito de que fosse aprovado nesse momento em caráter emergencial, para não precisar voltar mais à Câmara dos Deputados. Com certeza ajudaria muito se tivéssemos isso aprovado no início do ano passado.”

 
Marina não nega o problema, como Salles e Bolsonaro muitas vezes fizeram. Está tentando articular um plano de ação que em nenhum momento ocorreu na gestão passada. Tampouco lança mão de soluções fantasiosas, como o famigerado “boi bombeiro”, defendido pela ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina e por Salles. 
A ideia deles, que vinha do “guru ambiental” do bolsonarismo, Evaristo de Miranda, era de que o boi come capim na estação úmida, então restaria menos matéria orgânica para secar no período seco, diminuindo o combustível para o fogo. Desse modo, bastaria colocar mais boi no Pantanal. Por esse raciocínio, seria de se supor que houve uma diminuição do rebanho ou algo assim para explicar o fogo até então sem precedentes de 2020. 

Mas como revelou o Fakebook.eco, plataforma de combate à desinformação sobre meio ambiente, desde 2003 o rebanho oscilou entre 8,5 milhões e 9,5 milhões de cabeças, enquanto os focos de queimadas triplicaram entre 2014 e 2017.

Não é passar pano para o governo atual, mas entender que ficar nessa polarização, apontando dedo de modo infantil não vai salvar o Pantanal – nem nenhum outro bioma dos incêndios que estão por vir. Há estimativas de que a seca na Amazônia neste ano também será perigosa. É preciso, neste momento, que ninguém acenda o fósforo em nenhum canto do Pantanal. É preciso imediatamente evitar qualquer ponto de ignição. E precisam os parlamentares aprovarem logo o projeto de lei. Porque nada indica que as condições climáticas vão melhorar.


 

Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental