(Crítica, lembremos, não é a mesma coisa que ataque ou assédio).
Nem mesmo um mecanismo de autorregulação, totalmente separado de qualquer influência do Estado, é pauta por aqui. A mensagem que fica é que a imprensa não deve satisfações a ninguém.
Assim, muitas conversas difíceis sobre o fazer jornalístico simplesmente não acontecem. E eu digo “difíceis” com a maior deferência e admiração pelo trabalho de meus pares.
Citarei mais uma vez Renato Janine Ribeiro para dizer que jornalismo não é um trabalho fácil. Lidamos com a vida de pessoas, com a responsabilização de homens poderosos e de empresas, com assédio e com vinganças pessoais; temos que tomar decisões éticas a todo momento. E o público percebe isso. As críticas se avolumam e os extremistas e populistas de turno apenas se apoderam dessas críticas para atacar a imprensa como mais um poder corrupto, como se fosse seu próprio espelho.
Na falta de um mecanismo consistente de crítica de mídia, algumas conversas difíceis têm sido palco de reportagens e projetos aqui na Pública. Por exemplo, depois de muito ponderarmos sobre o conteúdo levantado, decidimos publicar a extensa reportagem sobre o apoio da Folha à ditadura militar. O relato é robusto, traz novidades, e poderia resultar em uma conversa mais ampla sobre o papel da imprensa que apoio à ditadura – e não só a Folha – em um momento em que o fantasma das conversas difíceis não tidas sobre aquele período é um dos maiores esteios do bolsonarismo militarista e autoritário, que manipula as fantasias ditatoriais do brasileiro médio.
Na última sexta-feira, lançamos uma campanha de financiamento coletivo para fazermos um podcast a respeito das acusações de crimes em série de Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia, acusado de violar meninas de até 9 anos usando a sede da empresa, seus carros, seus helicópteros, compensando-as mesquinhamente com eletrodomésticos como liquidificadores e torradeiras. Nossa frustração após dois anos em que o que se ouviu foi um retumbante silêncio da imprensa, de organizações que defendem os direitos de crianças, e dos políticos, nos levou a decidir fazer, sozinhas, um podcast pra que essa história chegue a mais ouvidos.
Passamos dois anos esperando que o assunto se tornasse uma conversa mais ampla, com seguimento pelos jornais e pela tevê. Exceto a Folha, que fez duas reportagens após ser questionada pela excelente Ombudsman Flávia Lima, e o Uol, que levantou toda a história do seu filho Saul, e que recentemente publicou uma assustadora reportagem demonstrando que uma das menores que acusaram Samuel chegou a ser presa com sua advogada como retaliação. Fora isso, nada. O que pode ser considerado um dos maiores escândalos empresariais da nossa história sequer chegou à TV aberta, cujos canais aliás sempre foram fartamente financiados pelos anúncios das Casas Bahia.
E esses são apenas dois exemplos, que uso aqui porque foram abordadas nas nossas páginas. Outros, como o caso Escola Base, a cobertura da Lava-Jato, as reportagens que consistentemente transformam civis inocentes em suspeitos de tráfico apenas por serem pretos e viverem em favelas – nada disso é discutido de maneira consistente.
Por outro lado, em vez de termos um fórum em que esses temas são debatidos pelo campo, fortalecendo o que nos une, como jornalistas, ampliando uma articulação mais que necessária neste momento de crise, os meios permanecem encastelados cada um no seu quadrado. É uma estratégia antiquada, cheira a naftalina, como se não estivéssemos no mesmo barco, e esse barco não estivesse afundando.
Só receberemos o bote salva-vidas se convencermos o público do valor social do jornalismo de interesse público.
Como conseguiremos vencer um argumento falso, como aquele que inseriu os direitos dos artistas para também receberem compensação das plataformas, no PL das Fake News, como se o papel do jornalismo e dos produtores de cultura não fosse absolutamente diferentes?
Nada disso aconteceu em outros países onde avançou a lei – e onde existem mecanismos de “pesos e contrapesos” também para a imprensa.
Se nós, jornalistas, não conseguimos aceitar a responsabilidade de prestar contas à sociedade sobre as consequências de nossa cobertura, como podemos convencer essa mesma sociedade que merecemos um tratamento diferenciado de plataformas como Google e Facebook?
Há alguns meses, a consultoria da FehrAdvice, especializada em economia comportamental, fez um estudo demonstrando que usuários preferem ver conteúdos jornalísticos na busca do Google – e que sem eles, os usuários tendem a deixar a plataforma. Segundo o estudo, feito com usuários da Suíça, o site de buscas deveria pagar o equivalente a 15% das suas receitas com propaganda no país como compensação aos jornais e sites.
Embora o termo “interesse público” não seja o foco do estudo, por trás dessa descoberta está o que torna o jornalismo diferente de todos os outros setores: sem ele, a sociedade não funciona. E a democracia, certamente, não se segura.
Talvez, antes de partirmos para mais uma disputa que será vista como apenas financeira, seja hora de reconquistar a fé do público no nosso jornalismo. Mas, para isso, teremos que aprender a ter muitas conversas difíceis sobre nosso papel, nossos erros e nossas responsabilidades para com a sociedade. |
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