Lula, do luto à luta
No adeus a Marisa, o ex-presidente busca inspiração na companheira
Ricardo Stuckert/Instituto Lula

O velório da ex-primeira-dama reuniu milhares no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.
Marisa Letícia
despediu-se de vermelho, com um broche do PT no peito. Foi Lula, o
companheiro de mais de quatro décadas, quem escolheu o vestido. O palco
do adeus foi o a sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São
Bernardo do Campo, onde o casal se conheceu em 1973. De luto, um
emocionado ex-presidente respondeu às manifestações de solidariedade com beijos e abraços. Cerca de 20 mil pessoas estiveram ali no sábado 4.
Antes de seguir para o Cemitério Jardim
da Colina, Lula fez um discurso em homenagem à mulher, a loura de olhos
claros a quem chamava de “galega”. Com certa tristeza, contou que a vida
política não lhe permitiu ser um pai presente, mas Marisa “segurava a
barra” da família. “Às vezes eu me culpo, às vezes acho que é assim
mesmo. Ela praticamente criou os filhos sozinha”, disse.
No período em que viveu no Palácio da
Alvorada (2003-2010), a então primeira-dama teve uma atuação política
discreta. Dentro de casa, porém, sua opinião tinha mais valor que a de
qualquer conselheiro do Planalto. “A gente sentava, jantava, conversava,
discutia. Ela tinha muito mais importância que os ministros. E sempre
me dizia: não esqueça nunca de onde você veio e para onde você vai
voltar”, contou o ex-presidente.
Lula tornou-se diretor do sindicato em 1969. Dos 48 anos de intensa vida pública,
43 foram vividos ao lado de Marisa. E foi à política que o petista
recorreu quando quis expressar suas ideias sobre o matrimônio. “Nós
tivemos uma vida extraordinária, uma vida de muita compreensão. Eu tenho
em mente que o casamento é o maior exercício de democracia que o ser
humano pode fazer. É no casamento que você aprende a ceder.”
O ex-presidente
disse ter orgulho da “menina que parecia frágil, mas que falava grosso e
colocava medo”. Riu quando lembrou a gargalhada de Marisa ao comentar,
sentada à mesa no Alvorada, como “os companheiros que trabalham na
cozinha” deviam achar muito estranho uma primeira-dama querer pé de
frango para o jantar. Fez mea-culpa por não ter assistido ao
parto dos filhos e demonstrou gratidão ao recordar a época em que Marisa
se prontificou a vender camisetas e bandeiras do recém-criado PT, hoje o
“partido que a direita quer destruir”.
- Lula despede-se daquela que o acompanhou por mais de 40 anos (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)
E foi assim que, nos momentos finais de seu discurso, Lula
se pôs a falar das investigações contra ele e a mulher, ré em duas
ações penais da Operação Lava Jato. “Marisa morreu triste
por conta da canalhice, da imbecilidade e da maldade que fizeram com
ela”, disse o petista. “Que os facínoras que levantaram leviandades
contra a Marisa tenham, um dia, a humildade de pedir desculpas a ela.”
Em sua última homenagem à mulher, o líder
popular mais influente do Brasil falou também de política. E não foi o
único. Dom Angélico Sândalo Bernardino conduziu a cerimônia e fez um
alerta contra as reformas conduzidas pelo governo de Michel Temer.
“Precisamos estar atentos. Estamos em um sindicato memorável por suas lutas. Que a reforma trabalhista não seja contra os trabalhadores. Que a reforma da Previdência não seja contra os pobres e os assalariados”, disse o bispo emérito de Blumenau (SC).
Muitos que ali estavam
veem em Lula a principal opção para 2018. No dia 30 de janeiro, na
primeira aparição pública após a internação de Marisa, o ex-presidente,
em um desabafo, sinalizou que não pretende descansar tão cedo. “A
pressão e a tensão fazem as pessoas chegarem ao ponto que a Marisa
chegou. Mas isso não vai me deixar chorando pelos cantos. Vai ficar
apenas batendo na minha cabeça, como mais uma razão para que a luta
continue”, disse na ocasião.
Cinco dias depois, em meio à multidão que homenageava a ex-primeira-dama no salão do sindicato, o presidente nacional do PT, Rui Falcão,
pediu a palavra para desejar força a Lula e lembrá-lo da promessa. “Ele
vai nos liderar nas lutas que vem travando por um Brasil mais justo. Eu
sei que todo o povo brasileiro, não só os militantes do PT, querem que
você continue a sua luta.”
Em meio a tantos retrocessos, lideranças do campo progressista parecem voltar a se organizar. À reportagem de CartaCapital, a deputada federal Luiza Erundina
(PSOL-SP) disse que Marisa Letícia é uma referência para a luta das
mulheres. Sua morte, diz, pode unir a esquerda em torno de um projeto
comum.
Uma das fundadoras do PT, Erundina deixou
o partido em 1997 e recentemente foi alvo de críticas da militância
petista por ter lançado candidatura própria à Prefeitura São Paulo, quando o então prefeito Fernando Haddad
(PT) tentava se reeleger. “Independentemente das diferenças que
eventualmente possam nos separar, há algo muito mais forte que nos une,
que é o amor pela construção de uma nação mais justa, mais fraterna e
mais democrática, combatendo o ódio, a discriminação e o preconceito”,
disse a deputada.
- Erundina: 'O que nos une é o amor pela construção de uma nação justa' (Foto: Nelson Antoine/AFP)
Para o deputado federal Vicentinho
(PT-SP), é hora de transformar a dor em força. “A Marisa nos
representou em 1980, quando organizou as mulheres para serem solidárias à
nossa greve”, disse o petista, recordando a marcha em defesa dos
sindicalistas presos no Departamento de Ordem Política e Social (Dops),
órgão do aparato repressivo da ditadura. “E a Marisa nos representa
agora, ao juntar aqui tanta gente, a nossa militância. Reencontrei
companheiros das greves de 79, de 80. Companheiros que estavam nos seus
cantos e agora se reanimam para a luta.”
A dor da perda preocupa, no entanto,
aqueles que estão próximos a Lula. “É preciso desejar muita força ao
Lula, porque o ataque continua e, em meio a isso, ele tem uma perda tão
dolorosa como essa”, disse Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
“Essa morte deixa também um simbolismo. A situação de dona Marisa
em seus momentos finais gerou reações desumanas. Médicos desejando a
morte ou divulgando exames, gente fazendo os comentários mais atrozes
nas redes sociais. Isso deve nos levar a uma reflexão: para onde vai
isso tudo?”, questionou Boulos.
Reportagem publicada pelo jornal O Globo
em 2 de fevereiro revelou que, horas após Marisa dar entrada no
Hospital Sírio-Libanês, em 24 de janeiro, a médica reumatologista
Gabriela Munhoz compartilhou com terceiros informações sigilosas a
respeito do diagnóstico da ex-primeira-dama, internada por conta de um
Acidente Vascular Cerebral (AVC).
As informações foram
enviadas por mensagens de celular a um grupo de antigos colegas de
faculdade. A troca de mensagens entre os médicos, reproduzida pelo
jornal, é assustadora. Ao saber que Marisa passaria por um procedimento,
o neurocirurgião Richam Faissal Ellakkis disse aos amigos que faria
diferente. “Esses fdp vão embolizar ainda por cima. Tem que romper no
procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, escreveu.
Ellakkis prestava serviços no hospital da Unimed São Roque
e foi demitido, assim como Gabriela Munhoz, que não integra mais o
quadro de funcionários do Sírio-Libanês. O Conselho Regional de Medicina
do Estado de São Paulo (Cremesp) abriu sindicância para apurar se houve
violação ao Código de Ética. O vazamento à imprensa de uma tomografia
feita por Marisa no hospital Assunção, em São Bernardo do Campo, também é
investigado.
- 'A situação de Marisa gerou reações desumanas', lamenta Boulos (Foto: Paulo Lopes/Futura Press)
O discurso de ódio,
muitas vezes restrito às mensagens privadas e às redes sociais,
ultrapassou a barreira virtual e se materializou na voz de mulheres que,
no dia seguinte ao AVC de Marisa, se dispuseram a ir até a porta do
hospital. Nos cartazes que exibiam, a imagem de um Lula presidiário e
críticas à internação no Sírio-Libanês: “Vá para o SUS”, dizia um; “Cadê
os médicos cubanos?”, questionava outro.
A falta de humanidade atingia o seu ápice. A fim de evitar novas demonstrações de ódio, a militância do PT mobilizou-se e ocupou a entrada do hospital no dia 2 de fevereiro. Na manhã daquela quinta-feira, a equipe médica havia constatado a morte cerebral
da paciente e a família autorizou o início dos procedimentos de doação
de órgãos. O grupo, formado por cerca de 20 pessoas, fez orações e
colocou flores em frente ao hospital.
A confirmação da morte de Marisa levou quase dois dias,
encerrada somente às 18h57 do dia 3 de fevereiro. No Sírio-Libanês, o
ex-presidente recebeu condolências de amigos e autoridades e a visita de Fernando Henrique Cardoso.
Em meio ao triunfo da intolerância, uma foto em que os
adversários aparecem abraçados inundou as redes sociais, um alento em
tempos de ódio e pouco diálogo. Com a visita, FHC retribuía o gesto de
2008 do então presidente Lula, que prestou condolências ao tucano pela
morte da ex-primeira-dama Ruth Cardoso.
Naquele mesmo dia, à noite, o petista
também recebeu a visita de Michel Temer. A comitiva, que trazia
ministros e figurões do PMDB, foi recebida no Sírio-Libanês pela
militância petista aos gritos de “golpistas” e “assassinos”. Lula
aceitou o gesto.
A postura do ex-presidente nem sempre é
exemplo para seus perseguidores. Na quarta-feira 8, o juiz federal
Sergio Moro negou pedido da defesa de Lula para adiar em 15 dias as
audiências relativas ao processo do triplex no Guarujá. As
audiências foram mantidas e serão realizadas nas próximas duas semanas.
Segundo Moro, apesar do “trágico e lamentável” acontecimento, falta
“amparo legal” para a suspensão do processo.
A dor extrema do luto não tem impedido o ex-presidente de
prestar belas homenagens à mulher, como fez ao lado de seu caixão. Na
coroa de flores que encomendou, uma última declaração à “Galega”: “Agora
o céu ganha a estrela que iluminou minha vida”.
Dirigindo-se à multidão que
acompanhava o velório, o petista voltou a emitir sinais de que a luta
continua. “Vou agradecer à Marisa até o dia em que eu não puder mais,
até o dia em que eu morrer. Eu espero me encontrar com ela com este
mesmo vestido que eu escolhi, para mostrar que a gente não tem medo de
vestir vermelho.”
*Colaborou Ingrid Matuoka
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