EUA e Cuba entram em novo capítulo de velha relação
Após dois séculos marcados por conflitos econômicos e ideológicos, governos sinalizam reaproximação
Por Sean Purdy
A necessidade de possuir Cuba é a mais antiga questão da política externa norte-americana – Noam Chomsky
Localizado somente a 145 quilômetros do estado da Flórida, Cuba sempre
teve uma relação próxima com os Estados Unidos, pontuada por conflitos
políticos travados ao longo dos séculos XIX e XX. A reaproximação
diplomática dos dois países, ocorrida nos últimos meses, é fruto de uma
longa história de conflito e codependência, envolvendo interesses
econômicos, geopolíticos e ideológicos.
No século XVIII, Cuba já era uma das mais lucrativas colônias
espanholas, com extensas plantações de açúcar trabalhadas por meio de
mão de obra escrava. Mais importante, porém, era sua posição estratégica
no Caribe. A ilha estava localizada na rota de navios para América do
Sul, cuja importância comercial e política cresceu subitamente no
período.
Atraído pelos benefícios comerciais e geopolíticos, o presidente
norte-americano Thomas Jefferson propôs a aquisição da ilha já em 1807.
John Quincy Adams, o poderoso secretário do Estado, escreveu em 1823 que
a anexação de Cuba era “indispensável para a continuação e integridade
da própria União”.
Enquanto a Espanha controlava a lucrativa ilha, porém, os Estados
Unidos não tinham poder suficiente neste período para adquirir Cuba. A
Doutrina Monroe, de 1823, estipulava que os Estados Unidos não mais
aceitariam intervenções europeias no hemisfério americano. Essa doutrina
servia como uma declaração de intenções futuras, mas, na época, o país
não tinha poder suficiente para comprar ou conquistar Cuba.
Destino Manifesto e a Expansão de Escravidão
Mas a cobiça por Cuba nunca foi esquecida. A enorme expansão
territorial dos Estados Unidos, concretizada por meio da conquista dos
povos indígenas e de uma grande parte do México, foi justificada
ideologicamente pelo chamado Destino Manifesto, no qual os EUA tinham a
missão providencial de espalhar sua “civilização” democrática.
Nesse clima, muitos políticos do Sul do país retomaram, na década de
1850, o sonho de adquirir Cuba, um país escravista cuja aquisição
aumentaria o poder dos interesses escravistas. No contexto de conflitos
entre escravistas associados com o Partido Democrata no Sul e os
Republicanos no Norte, sobre o futuro de escravidão nos Estados Unidos,
surgiram várias propostas de comprar a ilha.
Os argumentos usados em favor e contra a compra de Cuba demonstravam o
prevalente racismo contra latino-americanos e escravos negros na época.
Os sulistas queriam expandir o território escravista do país enquanto
políticos do norte, por sua vez, temiam a “mistura de raças”. A questão
de Cuba, portanto, inseria-se nos ferozes debates internos nos Estados
Unidos sobre o futuro de escravidão e, enquanto essa questão não foi
resolvida, a compra de Cuba foi impossibilitada.
A Guerra Hispano-Americana
Eventos na própria ilha no século XIX também moldaram as relações entre
os dois países. Surgiram vários movimentos por independência da
Espanha, brutalmente reprimidos pelas autoridades coloniais. Tentativas
de dar mais autonomia ao país sempre foram rejeitadas pela Espanha,
gerando uma guerra civil entre 1868 e 1878, que contribuiu pela abolição
de escravidão em 1886. Mas a intransigência de Espanha provocou a
retomada da luta dos cubanos pela independência em 1895.
Rebeldes cubanos já tinham cortejado o apoio de norte-americanos no seu
esforço de liberar Cuba de colonialismo. O intelectual nacionalista,
José Martí, morava nos EUA na década de 1880, construindo apoio ao
movimento. Ele temia que o poderoso vizinho anexasse Cuba antes de a
população cubana conseguir independência de Espanha.
Nessas décadas, os interesses econômicos americanos também aumentaram,
especialmente em agricultura e mineração. Economicamente, a ilha
tornou-se gradualmente dependente nos Estados Unidos, ainda que
politicamente permanecesse uma colônia de Espanha.
De 1895 a 1898, a guerra por independência criou bastante instabilidade
econômica e política em relação aos EUA. Com uma recessão, fortes
políticas expansionistas e o surgimento de uma poderosa imprensa popular
que clamava por intervenção, os norte-americanos invadiram Cuba em
1898. O pretexto foi a explosão (provavelmente acidental, mas atribuída
aos espanhóis) de um navio da Marinha americana que matou 268
marinheiros. Mas pressões econômicas e políticas para intervenção
imperialista já haviam consolidado a forte vontade de o governo
norte-americano intervir.
Depois de uma “esplêndida guerrinha”, nas palavras do secretário de
Estado, forças militares derrotaram os espanhóis em Cuba, bem como nas
outras colônias de Porto Rico, Guam e as Filipinas.
Como temia José Martí, os Estados Unidos ignoraram os desejos do
movimento para independência e estabeleceu Cuba como uma semicolônia.
Uma legislação norte-americana de 1901, a Emenda Platt, incluída na
Constituição cubana de 1903, estipulava que a ilha permitiria
intervenção dos EUA, caso necessário. Cuba também cedeu a Baía de
Guantánamo para a construção de uma base naval americana. Nominalmente
democrático, mas com bastante corrupção e repressão de liberdades
políticas, Cuba sofreria a dominância estadunidense pelas próximas seis
décadas.
Ditaduras e revolução
A Emenda Platt durou até 1934, mas o padrão de intervenção militar
norte-americana, a dominância da econômica cubana e apoio político para
oligarquias cubanas e brutais ditaduras militares continuariam até 1959.
A oposição ampla da população cubana à Emenda Platt e à dominância
norte-americana também persistiriam.
Já em 1906, um movimento de oposição foi esmagado por tropas americanas
que ocuparam a ilha por três anos. Em 1912, soldados dos EUA e cubanos
derrotaram protestos de afro-cubanos contra racismo, culminando na morte
de 6 mil rebeldes.
Nos anos 1930, tentativas de revogar a Emenda Platt e introduzir
reformas democráticas foram minadas por um apoio do governo americano
aos militares cubanos. O presidente Franklin D. Roosevelt (1933-1945)
enviou forças armadas para Cuba em 1933, a fim de garantir o poder dos
militares liderados por Fulgencio Batista. Em 1940, Batista ganhou as
eleições com uma plataforma populista, progressista e com apoio aos
esforços de guerra dos Estados Unidos.
Nesse período, dominação americana da economia cubana chegou ao seu
ápice: a maioria das indústrias de açúcar, tabaco, mineração e
utilidades públicas acabou sob o controle de empresas norte-americanas.
Com a proteção dos militares, a máfia norte-americana investiu
fortemente em cassinos, prostituição e drogas na ilha nos anos 1940 e
1950.
Em 1952, Batista organizou um golpe e construiu um estado fortemente
alinhado com os Estados Unidos. Crescentes movimentos populares foram
brutalmente reprimidos pela polícia secreta com milhares de execuções. O
governo dos Estados Unidos providenciou bastante suporte financeiro,
militar e logístico ao Batista até que o nível de instabilidade
econômica e política no fim da década de 1950 forçou seu aliado
abandonar sua ditadura.
Pós-Revolução
Uma pequena força guerrilheira liderada por Fidel Castro com bastante
apoio popular derrubou as forças de Batista e assumiu poder em 1959. É
importante ressaltar que o novo governo revolucionário não pretendia
construir comunismo em Cuba: foi uma revolução nacionalista com um
programa misto de reformas democráticas. O próprio Castro foi um
admirador de muitas tradições democráticas estadunidenses, querendo
plena soberania política e econômica. Mesmo assim, a revolução foi uma
inspiração grande na América Latina contra o imperialismo americano.
Dedicados à Guerra Fria contra a União Soviética, os Estados Unidos,
porém, não podiam aceitar uma potencial ameaça ideológica nas Américas,
logo mostrando intransigência econômica e política contra Cuba, como já
haviam feito e continuariam fazendo ao longo dos anos 1960-1980 contra
projetos reformistas nas Américas do Sul e Central.
Enquanto o governo cubano estatizou certas indústrias e fez reformas
agrárias e sociais, os Estados Unidos gradualmente apertaram as
restrições. É importante enfatizar que empresas americanas foram
expropriadas pelo regime cubano somente depois que estas recusaram
produzir pela economia cubana. Em reação, o presidente John F. Kennedy
estabeleceu um embargo econômico e político completo contra Cuba em 1962
que continuou até dezembro de 2014.
Castro seguiu o caminho lógico para qualquer líder no contexto da
Guerra Fria. Ameaçado por um superpoder, ele abraçou o outro – a União
Soviética. Somente em 1961, aliás, Castro declarou sua revolução
socialista. A União Soviética aceitou a aliança com Cuba, vendo a
possibilidade de uma base nas Américas. Mas seu compromisso com a ilha
dizia respeito apenas aos seus próprios interesses geopolíticos. Como
aconteceu na União Soviética, Cuba se tornou um estado não democrática e
controlado por uma burocracia comunista. Mesmo assim, conseguiu
construir um estado avançado de bem-estar, com um dos melhores sistemas
de saúde e educação pública do mundo.
Já nos anos 1960, os EUA começaram uma campanha de desestabilização
econômica, ideológica e política contra Cuba, envolvendo o embargo, a
invasão fracassada da Baía de Porcos em 1961, sabotagem de instalações
militares, tentativas de assassinar líderes cubanos e uma campanha de
demonização do regime cubano juntamente com a mídia norte-americana. As
tensões logo culminaram na Crise dos Mísseis, em 1962, quando Castro e
Kennedy levaram o mundo à beira de uma guerra nuclear, depois de os
Estados Unidos descobrirem mísseis russos na ilha.
Ao longo dos anos 1960-1990, as relações entre os dois países foram
caracterizadas por hostilidades militares e pela guerra ideológica. A
comunidade de exilados cubanos anticomunistas nos Estados Unidos se
tornou uma potente força eleitoral nesse país e ajudou manter uma forte
pressão contra o regime cubano.
Com o fim da Guerra Fria nos anos 1990, Cuba foi forçada a continuar
sem o apoio da União Soviética. Por sua parte, a truculência ideológica
contra Cuba nos Estados Unidos e entre norte-americanos de descendência
cubana começou a diminuir. O governo e o empresariado estadunidense
viram grandes oportunidades comerciais em Cuba, enquanto o regime cubano
preparou a reaproximação através de reformas econômicas e políticas nos
últimos anos.
Mas dá para perguntar se tanto sofrimento e conflito entre as duas
nações podiam ser evitado se os EUA tivessem aceitado o seguinte convite
para dialogo numa carta de Fidel Castro ao presidente Lyndon Johnson em
1964: “Eu seriamente espero que Cuba e os Estados Unidos possam
eventualmente respeitar e negociar nossas diferenças. Acredito que não
existem áreas de disputas entre nós que não podem ser discutidas e
resolvidas dentro de um clima de entendimento mútuo”.
Publicado na edição 94, de março de 2015
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