terça-feira, 21 de janeiro de 2025

TEM ESPAÇO NAS TRINCHEIRAS

 

O que faria você apoiar o jornalismo da Pública?

Graças ao apoio de pessoas como você, trouxemos à tona histórias que ninguém mais contou em 2024. Mas ainda não atingimos o valor necessário para colocar em prática todos os projetos que planejamos para este novo ano.
Apoie a Pública!
Como Analista de Audiências na Pública, minha maior preocupação é você. Sempre penso nas pessoas ao fazer o meu trabalho. Por que alguém leria esta newsletter? Como fazer essa reportagem chegar ao público? Por que falar sobre determinado assunto? E, acima de tudo, por que é importante apoiar o jornalismo independente?

Ao refletir sobre isso, poderia listar uma série de motivos para você se aliar ao nosso jornalismo, mas se tem uma coisa que eu aprendi nesses anos trabalhando aqui é que uma causa só faz sentido quando desperta alguma emoção nas pessoas.

Se você ainda está lendo este e-mail, significa que, de alguma forma, você entende o que estou dizendo. É gratificante receber mensagens de Aliados e leitores que relatam como nossas produções despertaram indignação, reflexão ou até ações concretas, reforçando a admiração pelo nosso jornalismo combativo.

E é por isso que deixo aqui meu pedido de ano novo: seria muito bom ter você nas trincheiras com a gente.

Nossos Aliados são mais do que um apoio financeiro para garantir nossa independência e liberdade editorial. São uma rede de pessoas engajadas, com quem podemos contar e compartilhar informações em primeira mão. São nosso termômetro para entender o que as pessoas esperam do nosso jornalismo.

Hoje é o último dia da nossa campanha para arrecadar R$ 50 mil e garantir que nenhum projeto fique para trás em 2025. Sabemos que as movimentações deste ano serão cruciais para as eleições presidenciais de 2026. Também sabemos que o avanço das big techs e as ações de poderosos como Zuckerberg, Musk e Trump impactam diretamente nosso futuro. Sem mencionar as ameaças aos direitos humanos, o lobby do clima e muitas outras estratégias que estamos investigando.

Mas precisamos de você para continuar esse trabalho.
Então, retomo a pergunta do início: o que faria você apoiar o jornalismo da Pública? E acrescento: por que não fazer isso agora?
Quero apoiar a Pública!
Feliz 2025!
Um abraço,

Letícia Gouveia
Analista de Audiências da Agência Pública

PARA IR ALÉM DO ÓBVIO

 

Olá,

Você já se deparou com um tema nas redes sociais ou nos noticiários e, mesmo trocando de site ou rolando a tela até o final, percebe que a abordagem é praticamente a mesma? A sensação de não ter lido nada novo ou, pior, de ficar com mais dúvidas do que quando começou a ler? Isso acontece comigo o tempo todo. E aqui, não vou culpar os colegas jornalistas, que enfrentam a pressão de produzir uma matéria que sintetize uma história complexa em poucos parágrafos e em tempo recorde. Já estive nesse lugar e sei o quão desafiador é.

Por sorte – e decisão – há anos conto histórias do jeito que gosto de ler e ouvir. E não é novidade para ninguém que o podcast é um dos meus formatos favoritos de fazer jornalismo.  

Desde os 17 anos, meu despertador passou a ser uma "rádio de notícias" – sim, às seis da manhã, já ligava no modo 220 volts. Não me julguem. Mas, apesar de estar ali, atenta, nem sempre saía satisfeita com o que ouvia. 

Afinal, o que fazer com toda essa informação? Quais são as implicações por trás de determinado fato? Quem está por trás disso? Como isso impacta o nosso dia a dia? 

Sair da superfície para entender melhor o que está acontecendo é o desafio que a equipe do Pauta Pública se propõe nesta quinta temporada que ganhou o nome de “Conversas para ir além”. Queremos trazer um olhar mais atento, uma análise um tanto mais certeira e, quem sabe, até uma luz no fim do túnel sobre os acontecimentos que afetam a todos nós.

Junto com minha colega de microfones Andrea Dip, vamos conversar sobre direitos humanos, política, crises sociais e os desafios do nosso cotidiano. Não temos respostas prontas, mas posso garantir: estamos atrás das respostas para ampliar nossa compreensão – a minha, a sua, a nossa – sobre o que está acontecendo no Brasil e no mundo.

democracia abriu o primeiro episódio deste ano, que estreou na última sexta (17). Conversamos com especialistas do LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo – para entender como a extrema direita utiliza a Constituição para pressionar a implementação de políticas restritivas e anti-direitos.

Vamos juntos nessa jornada? Te espero toda sexta-feira no seu tocador de áudio favorito. No Pauta Pública, a conversa vai além.
🎧 Ouça agora!
Lembrando que o nosso podcast semanal é mais um produto que só ganhou vida graças ao apoio indispensável dos nossos Aliados. É uma produção 100% financiada por quem acredita no jornalismo independente. Junte-se a nós e ajude a trazer mais conversas para ir além.
Um abraço,

Claudia Jardim
Coordenadora de Podcasts da Agência Pública

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

 

Crônica em torno do racismo na Saúde

Ou: de como minha fala sobre o tema, num seminário da Fiocruz em Recife, tornou-se pouco, diante de um episódio vivido às margens do evento. E o que Frantz Fanon tem a ver com as duas experiências

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Por Douglas Barros, para Outra Saúde

Na última semana, estive em Recife para oferecer, pela Fiocruz, o curso Racismo como determinação social da saúde. A relevância do tema aumenta por ser comum ignorar as próprias estatísticas da exclusão do acesso à saúde por parte dos racializados — mesmo diante de um sistema universal como é o SUS. Esse era um possível caminho a ser seguido: pensar a relação estatística e a diferença entre acesso da população branca e não branca. Entretanto, com esses dados em mãos, preferi não me atentar aos números, mas buscar suas causas. A sala estava repleta de pessoas da área da saúde que sabiam muito bem de seus dilemas e do racismo impregnado na prática cotidiana do acesso.

Nesse caso, eu poderia sair da posição de um mestre e passar à posição do ignorante. Então, propus uma torção: pensar o racismo como uma patologia social. Em seu livro, Silvio de Almeida afirma que o racismo não é uma patologia, mas a normalidade de uma sociedade legatária do colonialismo. Propus uma volta nesse parafuso: a normalidade de uma sociedade herdeira do colonialismo é em si uma patologia. O que isso significa? Que a normalidade, excludente pela ordem normativa, é doente e adoecedora.   

Para chegar nessa conclusão, no entanto, me baseio principalmente nas grandes contribuições do psiquiatra e filósofo antilhano Frantz Fanon para o campo da saúde. Quando lembramos que Fanon era um médico/psiquiatra – que fez sua residência com ninguém menos que Tosquelles – também lembramos que as questões levantadas por ele sempre se mediavam pelo fetichismo mistificador da noção racial principalmente no discurso médico. Fanon foi um homem que viu, nos hospitais que esteve, médicos medindo crânios de argelinos e negros para comprovar a suposta “inferioridade” destes. Não esquecer isso é fundamental para o entendimento de sua obra.

Com efeito, uma das grandes questões fanonianas, por exemplo, está na demonstração de como essa singularidade, esse indivíduo racializado e produto da superexploração, constrói sua subjetividade no interior da realidade demarcada por espaços e lugares cabíveis à experiência vivida e traduzida pela noção de raça. 

Assim, sendo a noção de raça uma operação de controle e produção de sociabilidade marcada pela exclusão do outro (o não branco), sua força estrutural iria moldar a forma de construção da subjetividade do indivíduo racializado. Isso organiza não só a maneira como o adoecimento é pensado, mas também como a tênue linha divisória entre o normal e o patológico não foge à essa determinação. E é aqui que reside a investigação de construção da subjetividade do negro realizada por Fanon. 

Tateando o labirinto da formação da subjetividade a partir da relação entre psiquiatria, psicanálise e filosofia, Fanon tem um grave problema em vista: o que significa a raça? Se o negro é um produto como torná-lo um sujeito? Para responder tais questões seria necessária uma sessão que possibilitasse ao indivíduo negro reconhecer-se no confinamento de seu próprio corpo como uma construção histórica demarcada por uma ultraexploração e por uma exclusão radical. 

E é por isso que um dos aspectos centrais sobre os quais o martinicano se debruça em Pele negra, máscaras brancas é justamente a linguagem. É nela — na construção de um registro simbólico que me permite identificar o que sou e o mundo à minha volta — que está o lugar em que é possível assumir minha identidade. Se a linguagem é devedora da relação sociocultural, logo o racismo, impregnado numa sociedade fundada na escravização, organiza a forma pela qual o indivíduo pensa a si mesmo e se reconhece. 

A identidade, apesar de sua relação com a fantasia de si – uma ilusão necessária, como afirmo sempre –, é aquilo que permite uma estruturação simbólica responsável pela capacidade de organização egóica do indivíduo. Ela é essa possibilidade de um conhecimento de si através da imersão num idioma que garante a entrada no mundo social. O problema observado por Fanon é que o modo próprio pelo qual a linguagem circula é imerso na vida social da qual ela faz parte.

Então, no interior de um mundo colonizado, para indivíduos que são marcados pelo processo de racialização, essa construção do próprio eu fica vedada: o processo de identificação de si por meio da linguagem está interrompido, porque a hegemonia da racialização configura uma estrutura simbólica (através da linguagem) que responde por um imaginário branco. 

Esse imaginário impede, portanto, o reconhecimento. Sendo assim, o mundo que não superou as estruturas formais e imaginárias do mundo colonial é um mundo no qual os processos de circulação da linguagem, entendida aqui em suas diversas dimensões, responderão por essa herança. 

não-outro do branco para ser, numa sociedade como essa, tem que negar-se. E aqui reside o processo de uma normalização da patologia colonial: a naturalização de um discurso, legitimado pela ciência, de uma desigualdade racial fetichista (envolta de várias mitificações sobre a diferença), que serve para a produção e reprodução da vida social e baliza de maneira sobredeterminada o discurso médico. 

Não é difícil rapidamente perceber que as formas culturais de construção do imaginário colonial são dominadas pela figura branca que responde pelos espaços de organização da vida social como um todo. O complexo de autoridade, pensado por Fanon, anima a relação do discurso médico ante à diferença que o não-branco lhe dá. E, portanto, não há espaço para a circulação das subjetividades que não se identifiquem com esse imaginário. Quando vemos as estatísticas do acesso à saúde, essas conclusões reverberam. 

Então, para além de subordinação material desse indivíduo, demarcado pela raça e pela epiderme, a colonização fornece ainda os mecanismos pelos quais as pessoas são capazes de se compreender a si e organizar sua subjetividade. Ou seja, o colonialismo é também uma ideologia que condiciona a realidade material marcando o processo de exclusão através de uma ordem simbólica que coloca os racializados como subalternos e cidadãos de segunda classe.

Isso implica ainda um sofrimento (o do não-branco) invisibilizado pela lógica do diagnóstico clínico e medido pelo universal: o branco. O racismo, como sofrimento subjetivo e organizador de traumas, é simplesmente ignorado, jogado para debaixo do tapete e afirmado na súmula médica como frescura. 

Assim, esquece-se do processo de despersonalização dos racializados e do sofrimento que ele organiza por meio do trauma de ser posto no lugar da exclusão. Enfim, tudo isso dá enorme pano para manga – coisa que não poderei estender por aqui. A linha do debate no curso da Fiocruz em Pernambuco seguiu durante mais de uma semana nessa toada, utilizando vários arsenais dispostos por Lélia Gonzalez, Neusa Santos, Isildinha Baptista, Achille Mbembe, Denise Ferreira, etc., etc.

De repente, quase finalizando a semana, um acontecimento muito interessante se deu. Eu passo a narrá-lo, tal como narrei no último encontro do curso.

Do debate à rua

Passei esses cinco dias repetindo a desgraça que é o racismo, suas armadilhas, suas limitações, suas fronteiras. Ontem, aconteceu algo fundamental. Depois de ouvir a apresentação dos trabalhos, todas pesquisas interessantes que retratam a impregnação do racismo na nossa experiência social, eram mais ou menos umas cinco e meia da tarde quando Diego e eu nos sentamos no bar, que eu vou chamar de bar da sopa. Um bar com paredes amarelas e espaço agradável pra tomar uma cervejinha.

De repente, chegou um senhor acompanhado por um rapaz. Notei que o rapaz, negro, tinha um caderninho onde fazia algumas anotações. O senhor ficou olhando para nossa cara, carregava uma correntinha no pescoço com um grande crucifixo, três anéis nos dedos, camisa regata, bermuda, chinelo e boné. Puxou conversa com a gente, primeiro através de um enigma: 

– Qual o céu que não tem estrelas? – perguntou, ao que, feliz por saber a resposta, imediatamente respondi: 

– O céu da boca. – Remoendo a resposta que dei, o velho então mandou outro: 

– O que tem em tudo? – perguntou em tom de enigma. Cocei a cabeça, essa eu não sabia. “O que tem em tudo?”, refleti. Até que de repente ele disse: 

– O nome!

Não me fiz de rogado, porém, e devolvi com outro enigma, pedante como só alguém formado em filosofia pode ser. Meu enigma era o da esfinge: 

– O que de manhã tem quatro patas, a tarde duas e a noite três?

O velho coçou a cabeça. Parou um instante, com reflexões profundas, mas foi interrompido pelo rapaz que o acompanhava e disse: 

– Você! Sim, de manhã é a criança, de tarde é o adulto e de noite é o velho com a bengala. Um velho como tu, visse!

Enquanto os enigmas iam e vinham, a cachaça descia e o velho ficava mais solto. Falou de seu filho; um campeão brasileiro de kickboxing. Fez Diego encontrá-lo no Instagram. Falou onde morava, e que detestava morar em apartamento. Dali a pouco perguntou se Diego e eu gostávamos de mulher. Ante a surpresa da pergunta, levamos um tempo para dizer que sim. Os olhos do velho brilharam e ele disse: 

– Então, vocês precisam ir no bar das calcinhas. Vamos lá? – Pergunta. Não entendemos de início, ao que ele insiste:  – O bar das calcinhas é igual aqui! A cerveja é o mesmo preço! Com o detalhe que se as moças gostarem de tu, tiram a calcinha, esfregam o dedo na xana e passam na tua cara! Querem ir lá? – pergunta novamente – Eu tenho até um apartamento, vocês podem dormir lá. Podem ficar de boa! 

Bem, naquele momento, comecei a ter a impressão que eu tinha acabado de entrar num filme de Kleber Mendonça. Senti que me deparava com um outro Recife, o da ficção, sabendo o quanto de real há na ficção, o quanto a ficção organiza a realidade. Saía de uma universidade e a poucos passos me deparava com um outro Recife. 

– Vocês precisam ir no bar das calcinhas! Tem todo tipo de mulher: mulheres muito gostosas de treze, quatorze, quinze anos! – encerrou tomando um gole de sua cachaça. Muito embora eu estivesse constrangido com a informação, o velho não notou, já que insistiu: – Querem ir lá? Tem um quarto pra vocês dormirem, fiquem tranquilos.

– Não! – insistimos mais enfaticamente.

Por não ser o peixe que ele arrastaria, o velho já bêbado mudou de assunto. Passou a falar que o dono do bar devia a ele três mil reais e que ele nem cobrava mais, porque tinha perdoado a dívida. De repente, tudo me fez algum sentido: o rapaz com o caderninho de anotações; o velho insistindo pra que bebêssemos ou comêssemos alguma coisa de graça; a quentinha que ele levou, e, por fim; os enigmas. O velho era um agiota e, ao mesmo tempo, um cafetão…

Tudo isso poderia ter parado aí. Essa seria só uma história do que eu tinha ido fazer em Recife: promover um debate sobre o racismo como determinação social de saúde. Mas algo aconteceu — uma mulher negra entrou no recinto. Vestia um short curto jeans, uma camisa preta, estava perfumada e bem maquiada. Assim que entrou, brincou com um cachorro à porta do estabelecimento. O incômodo do velho foi visível e constrangedor.

Primeiro, ele tentou constrangê-la dizendo que quando o cachorro estava morrendo ninguém se preocupou em ajudar. A mulher talvez nem tenha ouvido, e se ouviu fingiu que não. Quando ela retornou de dentro do bar, sentou-se numa cadeira e cruzou as pernas, o velho disse como querendo que ela ouvisse: 

– Tem uns tipos de mulher que é cilada! São vagabundas e a gente tem que ficar de olho! – falava alto se dirigindo à mulher negra: – Olha o tipo de roupa! Tá na cara que é pistoleira! – de repente, o homem que nos oferecia meninas impúberes, que sacaneava pessoas em aflição econômica, tinha se tornado o defensor da moral e dos bons costumes; o homem de bem da família brasileira. Um retrato do racismo de denegação apresentava-se ali. E falava alto para que ela escutasse, constrangia-a, esperando que nós concordássemos com ele.

Olhei para cara de Diego, visivelmente constrangido, simplesmente nem mexia mais a cabeça. Agora vou fazer o balanço com o hipotético-leitor desse texto: esse acontecimento se deu no quarto dia de debate sobre o racismo. A poucos passos dali, víamos o corpo da mulher negra sendo constrangido pelo olhar de um racista que lhe dirigia um misto de lascívia e ódio ao mesmo tempo.

Aliás, é esse misto de lascívia e ódio que sempre recai sobre esse corpo fenomenológico marcado por uma herança colonial. Era o quarto dia de debate e na nossa frente ocorriam muitas coisas bastante representativas do que horas e dias antes havíamos debatido. O ódio no olhar e a impotência do velho, ambos demonstravam o quão derrotada era aquela figura. O medo da mulher negra que cruza as pernas e da qual ele não é dono – como diz ser de meninas de treze, quatorze e quinze anos –, uma fobia diante da impotência e diante da completa ignorância que a mulher negra lhe dedicava.

Ela ficou impassível. Se ouviu os impropérios, fingiu de maneira muito convincente que não. Mas aquela cena marcaria minha noite. A quantos constrangimentos somos afinal submetidos? O quanto essa mulher teve que aguentar durante sua vida? Esse racismo, que organiza uma violência atmosférica, fere e marca, estabelece uma lição fundamental dada por Fanon: a saída não pode ser individual. Não dá para resolver esse problema no divã – ainda que ele não seja descartável. 

Por mais que alcancemos os algumas mudanças, muita coisa ainda resta a ser feita e só podemos nos contentar quando esses corpos puderem entrar como quiseren em qualquer lugar sem serem vilipendiados. Angela Davis insiste na ideia de que a liberdade é uma luta constante. Agora, veja: e quando bate o cansaço? E quando não se quer mais o combate? E quando a luta se torna insuportavelmente dolorosa? E quando somos, por defesa, obrigados a fingir que não ouvimos ou vemos essas palavras e esses olhares?

 Enfim, não se trata de um problema estrutural que possa ser remediado. É preciso acabar com o mundo onde isso se tornou algo normal.

Douglas Barros escreve mensalmente sobre psicanálise e política para Outras Palavras. Leia seus textos aqui.


 

Crise climática, saúde e o futuro das cidades

Populações urbanas são as que mais sofrerão com os impactos do clima. Não há mais espaço para negacionismo: há experiências que mostram caminhos para que haja menos devastação, sofrimento e mortes. Parar de privilegiar os carros é primeiro passo

Créditos: Tempo.com
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Por Sophia Samantaroy, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite

As cidades que não adotarem ações significativas voltadas a enfrentar as mudanças climáticas vão encarar um futuro de grave degradação, com o colapso da infraestrutura e a deterioração ambiental. Esse foi o alerta dado por especialistas em clima e saúde na palestra anual da Academy of Medical Sciences & The Lancet International Health Lecture, em Londres.

“Em 2050, o clima de Madri se assemelhará ao de Marrakech hoje. Não é uma boa perspectiva”, disse o Professor Mark Nieuwenhuijsen, o palestrante principal do evento. Para evitar esse cenário, as cidades devem se adaptar e manter a saúde como prioridade nos projetos. “Para nossas cidades, precisamos buscar soluções que reduzam as emissões de CO2 e também melhorem o ambiente, a igualdade e, claro, a qualidade de vida e a saúde.”

Até 2050, espera-se que dois terços da população mundial vivam em cidades. Nesse contexto, as mudanças climáticas ameaçam cada vez mais a saúde humana nas áreas urbanas. As centenas de milhares de quilômetros de asfalto e concreto exacerbam o aumento das temperaturas. As mudanças climáticas são responsáveis por 37% das mortes relacionadas às altas temperaturas, o que deixa as cidades especialmente vulneráveis às ondas de calor e ao calor extremo. Mark Nieuwenhuijsen argumenta que os planejadores urbanos devem passar a considerar a saúde ao projetar o futuro das cidades.

Prevenir mortes relacionadas ao clima nas cidades requer planejamento urbano com foco intencional na saúde, comentou o pesquisador. Ele argumenta que o planejamento urbano inteligente é capaz de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover a saúde, mas isso só será possível se conseguirmos romper com o “vício” nos combustíveis fósseis.

“Sabemos que combustíveis fósseis são responsáveis por mais de 5 milhões de mortes por ano devido à poluição do ar”, alerta ele. Apesar do crescente conhecimento sobre os males causados por eles à saúde, as cidades continuam a se expandir, “e a Europa lidera esse movimento”. O uso de combustíveis fósseis levou a um “planejamento urbano centrado no carro, dominado pelo asfalto e com expansão urbana extensa, o que tem efeitos prejudiciais à saúde”, disse Nieuwenhuijsen.

A expansão das áreas urbanas aumenta a dependência de carros. Mas já se sabe que os sistemas de transporte público e o transporte ativo – como caminhar e andar de bicicleta – têm um melhor custo-benefício. 

Cidades compactas vs cidades verdes – políticas que incluem o melhor de ambos os modelos (classificação das cidades europeias)

Quatro diferentes configurações de cidades europeias variam em seus efeitos na saúde e no meio ambiente. As cidades compactas são as que emitem menos, mas apresentam as taxas de mortalidade mais altas em comparação com cidades menos densas.

Na Europa, onde muitas cidades estão crescendo mais rápido que suas populações, a alta densidade populacional tem vantagens potenciais. Entre elas estão os tempos de deslocamento reduzidos, menor dependência de carros, maior eficiência energética e menor consumo de materiais de construção.

Quanto mais compacta a cidade, mais eficiente. No entanto, cidades compactas também têm desvantagens potenciais, como taxas de mortalidade mais altas, densidade de tráfego, poluição do ar e mais barulho – além do calor excessivo.

Nieuwenhuijsen apresentou as cidades europeias divididas em quatro grupos: as compactas de alta densidade, as abertas de baixa altura (ou seja, com edifícios mais baixos) e média densidade, as abertas de baixa altura e baixa densidade, e as verdes de baixa densidade. A análise das cidades nessas categorias mostra uma divisão: as cidades se enquadram, de um lado, em maior mortalidade e menores emissões de gases de efeito estufa; e de outro em menor mortalidade e maiores emissões.

Uma cidade como Barcelona – compacta e de alta densidade – pode esperar ter uma taxa de mortalidade 10-15% mais alta, qualidade do ar pior e efeito de ilhas de calor mais fortes – mas emite menos CO2, explicou Nieuwenhuijsen. No geral, os pesquisadores estimaram que o planejamento urbano deficiente resulta em 20% das mortes prematuras. “Barcelona é uma cidade maravilhosa, mas tem muita poluição do ar, muito barulho e poucos espaços verdes”, explicou.

“Em contraste, cidades mais verdes e menos densamente povoadas têm taxas de mortalidade mais baixas, menores níveis de poluição do ar e um efeito de ilha de calor urbano mais fraco – mas maiores pegadas de carbono por pessoa”, prosseguiu.

Essa dicotomia – altos emissores com melhor qualidade de saúde versus menores emissores com saúde pior – significa que as cidades devem implementar políticas para melhorar a qualidade de vida e reduzir as mortes, mas também para diminuir a poluição. Nieuwenhuijsen acredita que ambos são possíveis.

Políticas que reduzam os níveis de poluição do ar e a dependência de carros, e que aumentem os espaços verdes, ciclovias e a atividade física “reduziriam substancialmente a taxa de mortalidade”, ele argumentou.

Superblocos, espaços verdes e cidades de 15 minutos

Barcelona é uma das várias grandes cidades que implementam um planejamento urbano inovador para melhorar a saúde ambiental e humana

Várias cidades já começaram a implementar modelos urbanos inovadores que equilibram os objetivos de menores emissões e ambientes mais saudáveis – e as principais novidades estão na maneira como se utilizam os terrenos públicos.

“Muito do nosso espaço público nas cidades está, hoje, entregue aos carros. Ou seja, na Espanha, 69% do espaço público é utilizado por carros – as estradas também são espaços públicos. As vagas para estacionar nas ruas são espaço público. Quero dizer, esse é o tipo de área que poderíamos usar de uma maneira muito melhor,” comentou Nieuwenhuijsen.

Em Paris, um projeto chamado “cidade de 15 minutos” – onde todos os principais destinos podem ser alcançados dentro de 15 minutos da casa de cada cidadão – aumentou os investimentos em ciclovias e zonas livres de carros.

Os “superblocos” de Barcelona, os bairros de baixo tráfego de Londres e Vauban, o bairro sem carros em Friburgo, na Alemanha, são todas soluções promissoras para reduzir mortes prematuras e aumentar os espaços verdes.

Nieuwenhuijsen e outros especialistas reunidos no evento apontaram esses e outros exemplos como evidências de que mudanças no planejamento urbano são possíveis.

Várias cidades chinesas também adotaram a interseção entre planejamento urbano e novas tecnologias para prevenir inundações por meio de seus projetos de Cidades-Esponja, comentou Maria Neira, diretora de Saúde Pública, Meio Ambiente e Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial da Saúde.

“Cada vez mais, precisamos estar preparados para trabalhar com urbanistas e arquitetos que atuam no nível das cidades. E às vezes tenho a impressão de que eles estão mais preparados, mais avançados, mais engajados e mais apaixonados do que nossos agentes de saúde pública que atuam nas prefeituras”, disse Neira.

“Então precisamos criar soluções e argumentos muito fortes para nossos agentes de saúde pública também, para fazer uma pressão no nível das cidades, no nível urbano, para o engajamento com o planejamento urbano saudável”, concluiu a diretora.

 

Aborto: a manobra patife da ultradireita

Volta a tramitar dispositivo que proíbe qualquer tipo de aborto, favorece estupradores e dificulta reprodução assistida. Além de misógina, proposta é tentativa de reaglutinar bolsonarismo. Feministas preparam-se para ir às ruas

Créditos: Carlos Lula/Agência Brasil
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Em busca de reorganizar-se em torno de uma pauta que aglutine seus seguidores, a ultradireita conseguiu uma vitória perigosa. Na tarde de quarta, 27/11, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados uma reedição do PL do Estuprador: o projeto de emenda constitucional 164/2012, que busca proibir todo tipo de aborto no Brasil. Desta vez, a tentativa é feita por meio de um dispositivo insidioso: inclui-se no artigo 5º da Constituição a expressão “desde a concepção”, no trecho que trata dos direitos e garantias fundamentais e prevê a “inviolabilidade do direito à vida”.

A autoria da PEC é do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que teve o mandato cassado em 2016. A relatora da proposta na CCJ foi a deputada e vice-presidente do colegiado Chris Tonietto (PL-RJ), que deu parecer favorável. Foram 35 os votos que permitiram que a PEC avance na casa, ante 15 contrários. O próximo passo é formar uma comissão especial para avaliar a proposta. Em entrevista ao Congresso em Foco, o líder do governo na CCJ, Bacelar (PV-BA), afirmou que os partidos ligados à esquerda agora devem buscar balancear essa nova comissão com deputados contrários à proibição total do aborto.

“Esses projetos que têm aparecido, relacionados aos direitos das mulheres, são criminosos”, critica Ana Maria Costa, médica e diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), em entrevista ao Outra Saúde. “Porque acobertam crimes de estupro, que penalizam mulheres que são violentadas e engravidam. Submetem as mulheres a uma tortura psicológica. São projetos de vida destruídos. É isso que essa gente vem tentando reacender no Brasil e no mundo.”

Ana alerta que essa PEC é ainda mais perigosa que o projeto de lei 1904, que equiparava o aborto após a 22ª semana gestacional ao crime de homicídio – batizado pelo movimento feminista de “PL do Estuprador”. Após intensa mobilização da sociedade, o PL saiu da pauta do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Agora, a nova investida contra os direitos reprodutivos reacende o debate. 

O aborto só é permitido no Brasil em três casos: feto com anencefalia, situações de risco à gestante e gravidez após um estupro. Ainda assim, o serviço oferecido pelo SUS não alcança todas as mulheres que precisam dele, o que compromete a garantia do direito. Para a PEC que tramita agora vingar, precisa ser pautada por Lira e aprovada por pelo menos três quintos da casa; nesse caso, vai em seguida ao Senado. Mas, se passar, ela representará um imenso passo atrás. Mulheres serão obrigadas a carregar um bebê que não tem chance de vida ao nascer. Colocarão suas vidas em grande risco. Ou mesmo poderão gerar uma criança de um homem que as violentou – que muitas vezes são parte de sua própria família. Haverá mais mães menores de 14 anos.

Mas Ana alerta que os retrocessos vão muito além: “Chamo a atenção para o fato de que a aprovação de hoje compromete pesquisas e aplicações terapêuticas de células-tronco e acarreta mudanças drásticas para a reprodução assistida, fertilização in vitro. Com o novo texto, serão proibidas. O direito desde a concepção penaliza não só mulheres que  necessitam interromper gravidez e têm esse direito. Quem quer engravidar também será punida”.

No momento em que a PEC estava sendo pautada na CCJ, integrantes de movimentos feministas ocuparam a sala para manifestar-se contrárias. Gritavam “Estuprador não é pai, criança não é mãe”. A sessão foi suspensa por 50 minutos e transferida duas vezes de auditório, para barrar a participação das manifestantes. Sâmia Bonfim (PSOL-SP) foi uma das deputadas que defendeu o grupo que protestava contra a PEC: “Elas estão se manifestando. Vocês não se importam com deputados xingando as pessoas de assassinas, pedindo golpe de Estado… mas mulheres se manifestando não pode?”.

Mas Ana Costa alerta: o governo precisa fazer mais para garantir o direito das mulheres. “Nós temos estudado esse tema no Congresso Nacional e todas as vezes que há algum incômodo no cenário, algum tema que [a ultradireita] quer abafar, eles reacendem esses projetos. Querem constranger, chantagear o governo. E o que é ruim é que o governo tem topado essas chantagens e atuado de forma recuada. As mulheres brasileiras estão prontas para dar força ao governo, mas antes ele precisa assumir uma atitude mais ativa para defendê-las”, lamenta.

Para Ana, o mais necessário agora é fazer pressão para que o governo e as lideranças de esquerda façam uma ação política para que a comissão seja composta da maneira mais favorável possível, “com pessoas com a atitude democrática e com o compromisso com as mulheres, capazes de dar pareceres e de realizar estudos que mostrem a impropriedade legal, política e sanitária desses projetos”. E a posição perante a ultradireita deve ser a de escancarar o fato de que a PEC será boa para os estupradores – que obrigarão mulheres a gestarem seus filhos.

Ana acrescenta que, no ato programado para dia 10 de dezembro contra a anistia pelos crimes cometidos por Bolsonaro e seus asseclas, o movimento feminista estará presente e levará essa pauta, para fazer pressão. “Esse também é um golpe contra as mulheres”, finaliza.