A desnacionalização silenciosa da Indústria de Defesa Brasileira, por Luís Nassif
A soberania não se mede apenas por território ou força militar, mas pela capacidade de dominar, proteger e desenvolver tecnologia estratégica
Vamos aprofundar um tema relevante: o risco de desnacionalização da indústria de defesa.
No dia 23 de setembro escrevi o artigo “A desnacionalização silenciosa da tecnologia de defesa brasileira“, com a associação da SIATT com o grupo EDGE, principal setor da indústria de armas dos Emirados Árabes Unidos.
No dia 30, aceitei as explicações da SIATT: “Não houve desnacionalização do MAN-SUP“, de que o controle permaneceu em mãos da SIATT.
Em seguida, recebi informações adicionais, segundo as quais o grupo EDGE adquiriu apenas 49% da SIATT teria sido uma manobra para não perder as benesses fiscais de uma EEDE (Empresa Estratégica de Defesa).
De qualquer modo, a questão do domínio e/ou transferência de tecnologia merece uma discussão mais aprofundada.
Em tempos de reconfiguração geopolítica e avanço tecnológico acelerado, a soberania nacional não se mede apenas por território ou força militar — mas pela capacidade de dominar, proteger e desenvolver tecnologia estratégica. No Brasil, essa soberania está sob risco crescente.
Vamos entender melhor esse jogo.
O colapso da Mectron e o nascimento da SIATT
A Mectron foi, por décadas, um símbolo da engenharia nacional em defesa. Desenvolveu mísseis, radares e sistemas de guiagem com excelência. Mas a crise da Odebrecht e os efeitos da Lava Jato desmantelaram essa estrutura. O vácuo foi preenchido por interesses estrangeiros: primeiro israelenses, depois os Emirados. A SIATT surgiu como tentativa de resgate — e conseguiu recuperar parte dos ativos e talentos da Mectron. Mas o cenário mudou novamente.
EDGE: parceiro ou vetor de desnacionalização?
Em 2023, o grupo EDGE adquiriu 50% da SIATT. Oficialmente, a empresa continua sendo uma EEDE (Empresa Estratégica de Defesa), com controle nacional. Mas a realidade é mais complexa. O EDGE não é apenas um investidor: é o braço estatal dos Emirados para tecnologia militar, com forte apoio dos Estados Unidos. Já comprou a Condor, líder em tecnologias não letais, e agora mira o MANSUP — míssil antinavio desenvolvido para a Marinha do Brasil.
De qualquer modo, uma política nacional de defesa é tema por demais estratégico para ficar enclausurado. Seria bom para o país – e para ela própria – que a Marinha abrisse as discussões sobre a estratégica nacional de defesa e os projetos de joint-ventures.
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A estratégia dos Emirados e o papel dos EUA
Os Emirados não querem apenas comprar armas. Querem produzir, dominar e exportar. Com apoio americano, criaram uma base industrial robusta, absorvendo tecnologias via joint ventures e offsets. O EDGE é a ponta de lança dessa estratégia. Ao se associar à SIATT, ele não apenas acessa de imediato atecnologia brasileira — mas também abre caminho para que essa tecnologia circule em mercados alinhados aos interesses dos EUA, como Egito, Indonésia e Peru.
O que está em jogo
A SIATT domina sistemas críticos: guiagem, navegação, telemetria, propulsão. O EDGE traz expertise em radar ativo, integração multiplataforma e inteligência artificial. Juntos, desenvolvem o MANSUP-ER, com alcance de até 200 km. Mas quem controla o conhecimento? Quem decide o destino comercial? E quem garante que essa tecnologia não será usada fora dos interesses brasileiros?
Não se pode perder de vista que o MANSUP, até agora, é uma tecnologia inteiramente desenvolvida com recursos do Estado brasileiro, administrados pela Marinha.
Os investimentos da EDGE será aplicados em um projeto maior de expansão industrial, incluindo a construção de fábricas e a ampliação da linha de produtos de armas inteligentes e munições guiadas.
A Marinha e o controle estratégico
O acordo com a Marinha prevê compartilhamento de propriedade intelectual, produção nacional e royalties. Mas a comercialização internacional depende da SIATT e do EDGE. A Marinha mantém controle sobre o uso soberano — mas não sobre o destino global da tecnologia. Em tempos normais, cláusulas de confidencialidade, controle governamental e alinhamento com a Estratégia Nacional de Defesa seriam suficientes. Hoje, talvez não sejam.
Conclusão: soberania exige vigilância
A desnacionalização da indústria de defesa não acontece com fanfarra. Ela é silenciosa, gradual, técnica. A entrada de capital estrangeiro pode ser positiva — desde que acompanhada de salvaguardas reais. O Brasil precisa decidir se quer ser protagonista ou apenas fornecedor de talentos e tecnologia. O caso da SIATT é emblemático. E o tempo para agir é agora.