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quinta-feira, 27 de junho de 2024
Perda de água, seca recorde, desmatamento: a receita do fogo no Pantanal
A ideia tradicional de ter fogueira das festas juninas ganhou uma conotação bizarra neste fim de junho quando viralizou nas redes sociais um vídeo das comemorações de São João na cidade de Corumbá (MS). Visto do alto, no primeiro plano aparece a população curtindo a festa em frente a um palco. Ao fundo, do outro lado do rio Paraguai, uma faixa vermelha tingia todo o horizonte:é o Pantanal ardendo em chamas.
O drama pantaneiro vem sendo alertado pela mídia há algumas semanas:este é o junho com mais queimadasdesde o início das medições pelo Programa Queimadas, do Inpe, em 1998. Até esta quarta-feira, 26, foram registrados 2.527 focos – número que supera em quase 6 vezes a quantidade de focos do mesmo mês em 2005, até então o junho com mais fogo do registro histórico, com 435 focos.
A quantidade de incêndios deste último mês já empata com todo o primeiro semestre de 2020 – com 2.534 focos –, até então o ano com recorde de fogo no Pantanal.
As queimadas de quatro anos atrás, o caro leitor deve se lembrar, e eu até comentei sobre isso aquineste espaço há duas semanas, foram marcadas pelas tristes histórias de onças resgatadas com as patas queimadas e pelas imagens de animais carbonizados. Também foram marcadas por uma intensa cobrança pelo desmonte da política ambiental promovido pelo governo Bolsonaro – em curso desde o início do mandato.
Como era de se esperar, agora são os bolsonaristas que estão se valendo dos recordes para cobrar a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e o próprio presidente Lula. Já perguntaram por onde andam Emmanuel Macron e Greta Thunberg – o presidente da França e a jovem ambientalista sueca foram alguns dos críticos mais vocais de Bolsonaro desde 2019, quando o desmatamento e as queimadas na Amazônia começaram a disparar.
E ficam dizendo que eram injustas as cobranças de 2020 porque, “olha só, agora tá tudo muito pior”. Tem até site jornalístico escrevendo que “Marina culpou o governo Bolsonaro por incêndios no Pantanal [em 2020] e agora fala em mudanças climáticas, seca e ação humana”. Ah, me desculpem os colegas, mas um pouco mais de seriedade, por favor, né?
“Sim, os números são claros. Há um novo e dramático recorde no Pantanal, com previsões de que a situação ainda pode piorar mais neste ano. Mas os dados só contam uma parte da história e, sozinhos, não dão a exata dimensão do problema, nem do desafio para combatê-lo. Além de não serem suficientes para comparar nada com nada.
No início desta semana, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo (vamos-passar-a-boiada) Salles resolveu bancar o sabichão. Ao compartilhar nas redes sociais a notícia de que o Mato Grosso do Sul decretou emergência por causa dos incêndios, escreveu: “O assunto é bastante sério. Não comporta bravatas como as acusações cretinas que fizeram contra nós no Ministério durante os anos Bolsonaro”. Na sequência, listou o que ele acha que precisa ser feito.
“As queimadas atuais estão muito maiores dos que as de 2020, porém as causas são as mesmas: 1) ausência, por puro dogmatismo, de manejo prévio e adequado através da queima preventiva do excesso de matéria orgânica seca; 2) relutância, também dogmática e irracional, contra o uso dos produtos retardantes de fogo nas aeronaves de combate a incêndio e, 3) falta de chuvas. Tudo igual, porém muito maior”, disse.
Vou me ater aos itens 1 e 3, porque o 2, apontam os especialistas, é uma grande barbaridade que só traria ainda mais problemas.De todo modo, me pergunto: se ele pensava assim, por que não agiu quando era ministro?Mas vamos lá.
Sobre a falta de chuva. O Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que monitora via satélite incêndios no Brasil, divulgou uma nota técnica nesta segunda-feira, 24, sobre o que está acontecendo no Pantanal em que é categórico. Infelizmente, não tem nada de “tudo igual” no que está ocorrendo agora.
“Desde o final de 2023 e início de 2024, a região apresenta o maior índice de raridade de seca (com base na umidade do solo) já registrado desde 1951, ultrapassando o ano de 2020, que até o momento era considerado o primeiro do ranking de secas”, escrevem os pesquisadores.“O período 2023/2024 não encontra paralelo em nenhum outro período do registro histórico, sendo sem precedentes em termos de intensidade e duração da seca.”
Trata-se de um problema que não vem de hoje e tem como origem um combinado de fatores que estão “literalmente secando o Pantanal”, como explicou o engenheiro florestal e ambientalista Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, à jornalistaMiriam Leitão, do jornal O Globo.
“A corrente de água que vem da Amazônia, os chamados rios voadores, está diminuindo por causa do desmatamento na região. Outro problema é que no planalto, no entorno do Pantanal, muitas áreas estão sendo convertidas em pastagem ou em campos de soja. E isso aumentou muito o assoreamento da Bacia do Paraguai, porque está vindo muito sedimento. Tanto que o Pantanal está ficando mais raso. E tem um terceiro problema que é a destruição do pasto natural para ser substituído pelo pasto plantado”, disse Azevedo.
O fogo neste ano começou muito antes do que o normal.Junho não costuma ter muitos focos. Varia de algumas dezenas e a algumas centenas, mas, em média, de 1998 até o ano passado, o mês teve 103 focos. Para o ano, a média de área queimada no bioma é de 8%, de acordo com dados do Lasa/UFRJ. Em 2020, foram cerca de 30%, por volta 3,6 milhões de hectares. Naquele ano, os focos começaram a chamar atenção a partir de julho, atingindo o pico de 8.106 focos em setembro.
De acordo com o laboratório, em 2024 já foram queimados 684 mil hectares, contra 260 mil ha no primeiro semestre de 2020.Estimativas a partir de modelo matemático que levam em conta as condições climáticas em curso e o que se conhece sobre clima e fogo na região apontam que há 80% de probabilidade de chegar, no mínimo, a 3 milhões de hectares neste ano, me explicou Renata Libonati, que coordena os trabalhos do Lasa.
Em relação ao item 1 citado por Salles, ele até tem razão, mas, de novo, tampouco fez isso. A ministra Marina Silva tem defendido fortemente, desde o ano passado, a aprovação de uma lei que estabelece a chamada Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (MIF), que tem, justamente como premissa essa ideia deusar fogo para poder combater o fogo.
O MIF é uma abordagem ampla construída a partir da interação entre o conhecimento científico e os saberes ancestrais de uso do fogo de populações indígenas e tradicionais.Ele engloba, entre outros pontos, ações de prevenção e combate aos incêndios florestais de modo articulado entre governo federal, estados e municípios – coordenação fundamental e necessária quando se considera as características do Pantanal.Maior parte do bioma é tomado por propriedades privadas, onde Ibama e ICMBio não atuam, por exemplo.
A matéria é considerada prioritária para o ministério, chegou a ser aprovada na Câmara, mas parou no Senado por lobby dos Bombeiros, comomostramos em reportagem no ano passado. No início desta semana, Marina frisou: “Gostaríamos muito de que fosse aprovado nesse momento em caráter emergencial, para não precisar voltar mais à Câmara dos Deputados. Com certeza ajudaria muito se tivéssemos isso aprovado no início do ano passado.”
“Marina não nega o problema, como Salles e Bolsonaro muitas vezes fizeram. Está tentando articular um plano de ação que em nenhum momento ocorreu na gestão passada. Tampouco lança mão de soluções fantasiosas, como o famigerado “boi bombeiro”, defendido pela ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina e por Salles.
A ideia deles, que vinha do “guru ambiental” do bolsonarismo, Evaristo de Miranda, era de que o boi come capim na estação úmida, então restaria menos matéria orgânica para secar no período seco, diminuindo o combustível para o fogo. Desse modo, bastaria colocar mais boi no Pantanal. Por esse raciocínio, seria de se supor que houve uma diminuição do rebanho ou algo assim para explicar o fogo até então sem precedentes de 2020.
Mas como revelou oFakebook.eco, plataforma de combate à desinformação sobre meio ambiente,desde 2003 o rebanho oscilou entre 8,5 milhões e 9,5 milhões de cabeças, enquanto os focos de queimadas triplicaram entre 2014 e 2017.
Não é passar pano para o governo atual, mas entender que ficar nessa polarização, apontando dedo de modo infantil não vai salvar o Pantanal – nem nenhum outro bioma dos incêndios que estão por vir. Há estimativas de que a seca na Amazônia neste ano também será perigosa. É preciso, neste momento, que ninguém acenda o fósforo em nenhum canto do Pantanal. É preciso imediatamente evitar qualquer ponto de ignição. E precisam os parlamentares aprovarem logo o projeto de lei. Porque nada indica que as condições climáticas vão melhorar.
Não consigo nem expressar como estou feliz de ver Julian Assange, pelos vídeos rodando na internet, caminhando como um homem livre. Chorei de emoção quando soube, há pouco mais de 48 horas, que o impasse entre um homem tenaz e o governo da mais poderosa potência mundial tinha se rompido em um acordo e que ele seria libertado enfim.
Nesta edição extra da newsletter, preciso dizer que, no entanto, as circunstâncias da soltura de Assange não são para serem celebradas.
O acordo já havia sido selado na semana passada: o fundador do WikiLeaks teria que se declarar culpado por conspirar para “receber e obter” documentos secretos, além de transmitir esses documentos para “pessoas sem autorização”. Em troca, a sentença seria de cinco anos de “pena cumprida”, os cinco anos que ele permaneceu na prisão de segurança máxima de Belmarsh. E ele poderia sair livre do tribunal das remotas ilhas de Mariana do Norte, uma colônia americana no Pacífico que ninguém sabia que existia até então.
Mas quem acompanhou, como eu, com o coração na mão, a audiência de ontem à noite, seguiu um teatro de cartas marcadas, mas carregado de humilhação. No pequeno prédio judicial da sonolenta ilha, a juíza Ramona V Manglona começou perguntando a Assange se confirmaria o que fez e se faria uma admissão de culpa. Ele respondeu que, trabalhando como jornalista, havia incentivado uma fonte a fornecer informações confidenciais e acreditava que a Primeira Emenda protegia essa atividade. Mas agora admitia que era uma violação da Lei de Espionagem dos EUA. Não contente, a juíza pediu esclarecimentos. Perguntou se ele estava admitindo culpa porque “de fato ele era culpado das acusações”.
“Eu sou”, disse Assange, depois de uma longa pausa.
Claro que Assange não é culpado de crime nenhum.O que ele fez é apenas o que qualquer jornalista investigativo já fez inúmeras vezes.Conversar com fontes, receber documentos de interesse público – sejam secretos ou não – dar tratamento jornalístico, publicá-los. Não há nenhuma dúvida que os documentos em questão, dados sobre violações de direitos humanos nas guerras do Iraque e Afeganistão, detalhes de abuso de poder e corrupção por parte de diplomatas, são de profundo interesse público.
Com a condenação, o governo de Joe Biden manchou suas mãos ao se tornar o primeiro da história americana a condenar um publisher, editor, ou jornalista por publicar documentos secretos. Pior: Assange nem é americano, nem tinha pisado os pés nos EUA quando recebeu, deu tratamento jornalístico e publicou esses documentos.
“Isso prova que a lei americana não tem limites geográficos e pode apanhar qualquer jornalista, em qualquer lugar do mundo, que ousar analisar documentos secretos da maior potência mundial.
Coloca em risco jornalistas como eu e como todos aqueles que reportaram sobre os documentos secretos.E pretende ter como resultado aquilo que em inglês se chama “chilling effect” – assustar jornalistas do mundo inteiro para que não denunciem violações por parte dos EUA. Tamanha arrogância. Nesses 14 anos em que Assange esteve sob custódia, 4 países foram envolvidos, dezenas de presidentes, procuradores, advogados, mediadores, juízes, embaixadores, milhões de reais foram gastos.
Depois de Assange ter sido torturado (como atestou o ex-relator de tortura da ONU Nils Melzer) diante dos olhos de milhões de pessoas apenas porque os Estados Unidos queriam fazer dele um exemplo para outros jornalistas, só consigo pensar que estamos diante da cristalização de um esforço abusivo, cruel. Não se trata de justiça, mas de vingança. E as palavras da subserviente juíza Ramona Manglona só reforçaram esse espírito imperialista: “Por essas razões ... com base neste caso de espionagem muito sério contra você ... estou, de fato, condenando você a um período de tempo já cumprido”.
A quem ela acha que engana no seu teatro? Não há “caso sério de espionagem”, mas um sério caso de jornalismo corajoso que mudou o mundo. Há, sim, o caso de um país que se gaba de “ser a voz do mundo livre” mas que não tem qualquer escrúpulos de desvirtuar processos legais, políticos, sociais, para fazer valer seus interesses.
Também me chocou, no julgamento, o fato de que o governo dos Estados Unidos admitiu que não houve uma única pessoa que eles possam confirmar ter sofrido algum perigo por essas publicações. Isso sempre foi martelado para diferenciar Julian dos “jornalistas profissionais”, dizendo que as publicações colocaram vidas em risco. E nunca foi verdade.
Mentindo de maneira contumaz, eles venceram. Conseguiram deteriorar a segurança dos jornalistas do mundo todo, calar durante 5 anos uma das vozes mais relevantes para o debate sobre democracia e tecnologia, afogar um nascente movimento de vazadores que poderia ter de fato levado à justiça toda violência cometida durante guerras inúteis.
Me consola o fato que a história é circular: eles venceram agora, mas não para sempre.Porque cada semente dá seus frutos, e o nosso trabalho, aqui na Pública, é sem dúvida um dos muitos frutos que o trabalho do WikiLeaks deixou no mundo.Aqui estamos. Seguimos e seguiremos investigando homens poderosos que não vêem limite para impor suas vontades.
Manicômios judiciários: por que Dino atrasa seu fim?
Decisão do ministro do STF autoriza Estados e municípios a determinar quando fecharão hospitais de custódia. Especialista alerta: na prática, isso suspende prazo para fim de instituições ilegais, que violam direitos e impõem prisão perpétua para “loucos”
Publicado 25/06/2024 às 10:15 - Atualizado 25/06/2024 às 22:31
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Na última quarta-feira (19/6), o ministro do STF Flávio Dino concedeu uma liminar que adia mais uma vez o fechamento definitivo dos hospitais de custódia, ou manicômios judiciários, no Brasil. A medida surpreendeu especialistas da área, já que o encerramento das atividades dessas instituições, onde são “tratadas” as pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos, está previsto desde a sanção da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001), há 23 anos, que iniciou a transição do modelo manicomial para os serviços de base comunitária na assistência à saúde mental.
A decisão de Dino (que pode ser lidaaqui) suspendeu em parte os efeitos daresolução nº 487/2023do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que fixava um prazo (até agosto de 2024, desderecenteprorrogação da data) para que Estados e municípios fechassem os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs). A pedido do governador carioca Cláudio Castro, o magistrado avaliou que as autoridades é que devem decidir o “cronograma de interdição e fechamento” – efetivamente, isso significa deixá-los indefinidos, dizem críticos.
“Na prática, isso quebra a espinha dorsal da resolução. Em 23 anos, o Executivo não tomou iniciativa para fechar esses hospitais que são excrescências tanto no sistema penal quanto no sistema público de saúde. Essa decisão do Flávio Dino virou as costas a vários tratados e à legislação brasileira”, explicaLeonardo Pinho, ex-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), aOutra Saúde.
Assim como havia relatado o psiquiatraPaulo Amaranteem coluna para este boletim ao afirmar que os manicômios judiciários“não cuidam nem ressocializam”, Pinho denuncia que múltiplas ilegalidades ocorrem nessas instituições. “A principal delas é a prisão perpétua, que não existe no Brasil. Uma pessoa presa por furto, que pegaria quatro anos de pena, acaba ficando ali vinte ou trinta com a justificativa do diagnóstico psiquiátrico. Outra são as instalações desses hospitais de custódia, que violam todos os tratados internacionais”, ele enumera.
Os governos alegam que não têm para onde encaminhar esses pacientes, mas o argumento é rejeitado pelo campo da reforma psiquiátrica: a própria lei determina que as instalações do Sistema Único de Saúde (SUS), como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas, são adequadas para tratar todos os cidadãos. “Cuidado e tratamento devem ser feitos em equipamentos especializados, de base comunitária e não espaços de exclusão e violação de direitos”, diz o ex-presidente da Abrasme.
Acordos quebrados
Pinho, que acompanha de perto os processos de desinstitucionalização de usuários dos serviços de saúde mental, relata que a decisão de adiar o fechamento dos 32 últimos manicômios judiciários – onde estão internadas em torno de 4,6 mil pessoas – também vai na contramão de entendimentos entre os Poderes que haviam sido firmados nos últimos anos.
Em primeiro lugar, ele diz, a resolução havia sido construída a partir de contribuições de outros conselhos participativos – como o próprio CNDH – e da sociedade civil, “não saiu da cabeça dos integrantes do CNJ”. “Foi um movimento de cobrança para que se cumprisse a Lei 10.216/2001”, resume.
Além disso, ela respondia a um processo mais amplo: para cumprir com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nocaso Damião Ximenes, em que um jovem de Sobral (CE) foi espancado e morto em uma clínica psiquiátrica, surgiu em 2023 a Política Antimanicomial do Poder Judiciário. A resolução foi desenhada exatamente para estabelecer suas diretrizes – um procedimento com que o país estava em dívida desde que foi julgado culpado pela Corte IDH, em 2006. Ao assinar a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, alguns anos depois, o Brasil se comprometeu mais uma vez com o cuidado em liberdade de todos os cidadãos.
Ainda no ano passado, o Governo Federal se envolveu no esforço de fechamento dos últimos HCTPs. “Eu estive na mesa que lançou o cumprimento dessa resolução. Estavam presentes o Ministério da Saúde e o Ministério dos Direitos Humanos, que se comprometeram a dar as condições para a desinstitucionalização”, lembra o ex-presidente da Abrasme.
Por isso, ele questiona: se há um ano e meio a resolução foi publicada, e há 23 anos a Lei da Reforma Psiquiátrica já está em vigor, porque Estados e municípios pedem para não ser determinado externamente um prazo para que transfiram o cuidado com esses últimos pacientes para outros equipamentos?
“O Estado brasileiro assinou protocolos para cumprir com a resolução do CNJ. A decisão do Flávio Dino simplesmente rasga essa situação”, pondera Pinho.
Manicomializados por furto e aborto
O cenário apresentado, de condenações menores se desdobrando em décadas no manicômio judiciário, não é meramente hipotético. Segundo umlevantamentoda UnB corroborado por recentesdadosda Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), um terço das pessoas internadas nesses hospitais está condenada por crimes como roubo e furto, cujas penas não chegam a dez anos.
Os números da Senappen ainda indicam que 39% da população dos manicômios judiciários é composta por presos provisórios. Há neles até mesmo pessoas condenadas por aborto ou crimes como uso de documentos falsos e falsificação de selos.
“As pessoas não deveriam nem estar presas nesses hospitais de custódia. Em tese, eles são locais de tratamento. Mas elas ficam presas e, pior, não ficam vinculadas ao cumprimento da pena daquele tipo criminal sobre o qual ela foi julgada”, lamenta Pinho.
Após o fechamento, há dois anos, daColônia Juliano Moreira, o derradeiro hospício “comum” em funcionamento, a existência dos HCTPs é um dos últimos redutos do modelo manicomial no país. No Brasil, o tratamento em saúde mental baseado na internação forçada resultou em centenas de milhares de vítimas, como nas célebres colôniasJuquerie deBarbacena, fechadas em consequência dareforma psiquiátrica.
Na avaliação do ex-presidente do CNDH, já houve tempo para construir novos CAPS, Serviços de Residência Terapêuticas (SRTs) e Centros de Convivência, além de hospitais gerais, que tenham capacidade de atender aos 4,6 mil presos institucionalizados nos manicômios judiciários. Por isso, não se justificaria uma liminar que entrega aos Estados e municípios o direito de determinar o próprio prazo para cumprirem com uma legislação de décadas atrás.
A liminar de Dino ainda pode ser revista quando o plenário do Supremo Tribunal Federal avaliar a questão, mas não traz um bom sinal. “É uma decisão que, mais uma vez, atrapalha o cumprimento da lei no Brasil”, conclui Leonardo Pinho.
EM ANO ELEITORAL QUALQUER EVENTO É MOTIVO PARA ASSOCIAÇÃO AS CANDIDATURAS ELEITORAIS, PRINCIPALMENTE QUANDO O PLEITO É MUNICIPAL, EM SÃO TOMÉ NÃO SERIA DIFERENTE.
NESTE SÁBADO 22/06/2024, POR OCASIÃO DOS FESTEJOS, TIVEMOS UMA PRÉVIA COM DUAS FESTAS NO MUNICÍPIO, FESTEJOS QUE ACONTECEM TODOS OS ANOS: O SÃO JOÃO E M CHICO CURTO, NAS BARRENTAS E O DE JOÃO DE BIA EM PEDRA PRETA; SÓ QUE NESTE ANO FORAM TRANSVESTIDOS DE UMA CERTA PRÉVIA E MEDIDA DE TERMÔMETRO, COM A SEGUINTE LEITURA, QUE FOR PARA O SÃO JOÃO DE JOÃO DE BIA, É PARTIDÃRIO DA CANDIDATURA DO PREFEITO( DIFERENTE DE OUTROS ANOS, A FESTA É PATROCINADA PELA PREFEITURA, ISTO PODE?, EM SÃO TOMÉ TUDO É PERMITIDO); QUEM FOR PARA O SÃO JOÃO DE CHICO CURTO, AUTOMATICAMENTE É PARTIDÁRIO DA CANDIDATURA DE KANKIKA.
POIS É COM ESTE PENSAMENTO E PROCEDIMENTO QUE TEREMOS DAQUI PARA A FRENE, EVENTOS PUXADOS PARA ANGARIAR ELEITORES/AS.
Com 104 mil crianças e adolescentes mortos em dez anos, deputados cristãos são pró-armas
Os números são do Atlas da Violência: 104 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram assassinados entre 2012 e 2022, 81,5 % deles por armas de fogo. As armas estão presentes em 20% dos homicídios de bebês (0 a 4 anos); em 70,2 % dos crimes contra crianças de 5 a 14 anos; e em 83,8% dos assassinatos de adolescentes de 15 a 19 anos.
O impacto da liberação das armas nesses números é evidente não apenas por facilitar os crimes domésticos e tiroteios (que causam a maior parte dos assassinatos de crianças e adolescentes até 14 anos), mas também por fornecer armas para os delinquentes: uma pesquisa do Instituto Sou da Paz de 2022 mostrou que mais da metade das armas mais usadas em crimes têm origem legal.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, antes de ser destruído pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o Estatuto do Desarmamento, que se tornou lei em 2004, evitou 197 mil mortes em 15 anos. Uma iniciativa que entusiasmou líderes políticos evangélicos como Silas Malafaia, que não apenas participou da mobilização, mas se declarou contra a liberação das armas na campanha eleitoral de 2022, depois de provocado pela campanha de Lula.
“Por que, então, católicos como a deputada Chris Tonietto e evangélicos como Sóstenes Cavalcante, ambos do PL do Rio de Janeiro, que encabeçaram a ofensiva contra o aborto legal a pretexto de defender a vida, integram a chamada “bancada da bala” no Congresso Nacional?
Fiz essa pergunta sobre o assunto a uma autoridade, o teólogo Ronilso Pacheco, diretor de programas do Instituto de Estudos da Religião (Iser), que integra o Conselho Consultivo da Agência Pública. A resposta passa por Jair Bolsonaro que impulsionou a pauta das armas entre os cristãos, sobretudo os evangélicos.
“Bolsonaro oferta o nacionalismo cristão, com uma influência grande dos pastores americanos conservadores, há pastores expressivos que são membros da NRA [National Rifle Association of America]. Uma pauta que ganhou adesão no campo reformado [protestantes históricos] e aos poucos se incorpora ao vocabulário das igrejas pentecostais e neopentecostais no Brasil”, explica.
Ou seja, é uma pauta mais política do que religiosa, em que “se bebe mais na fonte da CPAC [Conservative Political Action Conference] do que na Bíblia”, como define a colega Cecília Oliveira, fundadora do Intercept e do Fogo Cruzado – iniciativa que monitora a violência armada nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e do Recife.
“Crente não se importava com isso, não, tinha outras preocupações”, diz a jornalista. “Isso vem do conservadorismo político, com aquela ideia do pai provedor que tem que proteger a família, e faz essa conexão entre armas e religião”, analisa.
Cecília Oliveira faz questão de destacar a adesão à pauta armamentista – e ao PL contra o aborto legal – também dos católicos conservadores. “Uma das manifestações mais antigas no Brasil unindo armas e religião é do ex-deputado Peninha [Rogério Peninha de Mendonça – MDB-SC], um católico que colocava a arma em cima da Bíblia e apresentou, faz tempo [2012], um PL para revogar o Estatuto do Desarmamento”, diz. “Hoje tem padre influencer com arminha na mão e a bancada católica sempre esteve ali”, comenta.
O ativismo político da bancada evangélica e a união do campo conservador – em que as bancadas do boi, da Bíblia e da bala se juntam para aprovar projetos guiados por interesses privados e frequentemente ilegais –, acabam expondo esses fiéis, sem atentar para o uso político da religião, muitas vezes à revelia do rebanho.
Até porque a maioria dos integrantes da bancada evangélica do Congresso vem de grandes igrejas, e não dos pequenos templos, “as igrejas de bairro”, que acabam tendo uma influência muito maior entre as comunidades evangélicas.
“O povo evangélico verbaliza muito pouco sobre as lideranças, contrapor-se a elas seria visto como rebeldia, mas no privado é outra coisa. Eles podem ser até contra o aborto mas não vão dizer para uma mulher de sua comunidade que fez um aborto, ‘você é uma criminosa’. Eles também sabem fazer o jogo, mas tem intimidade com Deus. O pastor diz, ele ouve, mas decide no privado”, explica Ronilso.
Um alerta importante para políticos que não se afinam com o CPAC, mas adulam lideranças evangélicas no Congresso e para os jornalistas incautos que insistem em usar “evangélicos” em títulos sem a precaução de diferenciar políticos e bancadas dos seguidores da religião.
São os políticos de extrema direita que apoiam projetos de lei que prejudicam mulheres e meninas e defendem com argumentos religiosos o porte indiscriminado de armas que mata crianças e adolescentes. Rotulá-los como evangélicos é colocar mais água no moinho deles.
A primeira coisa que eu vi quando cheguei ao Superhumans Center, uma clínica especializada em ortopedia em Lviv, foi um rapaz, vestido de short e camiseta verde-oliva, subindo lentamente a grande escadaria frontal. Não tinha a parte inferior das duas pernas, mas parecia estar adaptado à condição: segurava em uma mão a muleta, a outra apoiava no corrimão da escada, e as duas próteses, assentadas sobre tênis preto, o levavam, inflexíveis, a subir cada degrau.
Era dia 20 de maio. O Superhumans Center é parada obrigatória para qualquer jornalista que vai a convite visitar o país. A clínica especializa-se em reabilitação de ex-soldados e vítimas de guerra que perderam braços e pernas e atende a cerca de 60 pacientes a cada mês, onde recebem, sem custos, próteses modeladas ao seu corpo e acompanhamento durante a adaptação. Eu fazia parte de um "press tour" ao país a convite da Fundação Gabo e do Ukrainian Crisis Media Center (UCMC). Visitamos o moderno prédio cinza no nosso segundo dia em Lviv, cidade ao oeste do país, antes do “tour” ao cemitério sobre o qual falei na semana passada. Mas achei melhor deixar para contar essa história no episódio de hoje, porque o que vimos por lá me levou a outras reflexões que ultrapassam, como vocês verão, aquela visita e aquele local.
Logo na entrada, nosso grupo conheceu um rapaz baixinho, de cara redonda e cabelos lisos, bem cortados, vestindo uma camiseta da Puma, preta, colada ao corpo. Está bem assentado sobre uma prótese que substituía a perna esquerda. Gabriel Ramirez, um suboficial colombiano de 28 anos, pediu baixa do exército do seu país para lutar na guerra do norte, em busca de um salário robusto: 3 mil dólares por mês, a promessa de uma pensão depois do término de três anos do contrato, a possibilidade de residir na Europa. Como muitos antes dele: Gabriel conta que os colombianos vêm “tanto pelo incentivo financeiro, quanto pelo gosto, e também porque a Colômbia não satisfaz as expectativas”.
“Eu sabia que podia morrer, mas tornar-me um amputado não estava nos meus planos”, diz, a fala pausada e em som baixo.
O que lhe aconteceu foi o disparo de um tanque russo na reunião Bakhmut, no leste ucraniano. Perdeu uma das suas pernas apenas três meses depois de chegar ao front, antes de completar 30 anos, e assim perdeu, ainda, a profissão. Ir para a guerra, pondera, “é uma decisão muito pessoal. As consequências, cada um tem que assumir.”
Gabriel Ramirez no prédio do Superhumans Center em Lviv. Foto: Natalia Viana.
Antes de chegar ali, me haviam dito que o Superhumans Center é um lugar de esperança. Mas não vejo muita esperança na expressão de Gabriel. Ele não sabe direito o que vai acontecer com sua vida; além da indenização do Exército ucraniano, esperava ganhar o direito à residência na Ucrânia, mas ainda não foi informado se sua perna perdida lhe dará um passaporte permanente para o norte global. Também lhe haviam prometido uma perna biônica que se adapta melhor à topografia montanhosa do seu país, em caso de ter de voltar, mas ele já duvida.
Em seguida, Manuel Veiga, um espanhol, bonitão, de cabelos e barba negras, nos leva a uma visita completa às instalações. Assistente social por formação, começou como voluntário para acolher refugiados ucranianos na Espanha e decidiu mudar-se para Lviv; hoje é chefe de um dos departamentos da clínica. Manuel nos guia até a sala onde ex-soldados recebem treinamento para lidar com as próteses; há médicas levando pelas mãos homens que se apoiam em barras de metal, os passos são lentos e parecem um pouco dolorosos, um deles, de camiseta pólo azul, tenta chutar uma bola. Em seguida, visitamos a sala onde as próteses são formatadas, a partir de moldes de gesso feitos direto nos corpos. Logo na entrada há uma exposição sinistra de formas brancas de variados corpos partidos. Dali eles viram prótese, dali viram caminhares novos para algumas das mais de 75 mil pessoas que se estima terem perdido membros nestes dois anos e meio de guerra.
“Há cerca de dois mil mercenários colombianos no front, o maior contingente latinoamericano. Fazem parte da Legião Internacional para a Defesa da Ucrânia, onde há batalhões inteiros de uma só nacionalidade – na unidade de Gabriel, havia 90 colombianos. Um negócio sangrento que atrai homens do mercado de mercenários. Inclusive brasileiros.
O governo ucraniano não divulga os números totais nem as nacionalidades, considerados dados estratégicos. Mas podemos inferir os países mais presentes pelos números de mortos, publicados pela primeira vez há apenas algumas semanas. Foram 56 americanos, 55 georgianos, 39 bielorrussos, 38 colombianos e 23 italianos. Em seguida, na lista de baixas, estão Reino Unido, Rússia, Polônia, Azerbaijão, Canadá, Alemanha, Suécia e Austrália.
Brasileiros, foram seis – três mortos foram reconhecidos e três estão desaparecidos. Além desses, há a informação de dois brasileiros feridos. “São aventureiros”, me diz uma fonte da chancelaria que acaba lidando menos com a vida desses homens, mas principalmente, com a morte. “Quando um brasileiro morre em combate, o Ministério da Defesa nos avisa, porque a gente tem de fazer o registro de óbito, para que tenha valor legal pro Brasil. Aí a gente passa os dados de contato da família do morto, o governo crema o corpo, pega os pertences, e manda para o Brasil”. Saber quem são os desaparecidos é mais complicado. Para localizar um deles, a embaixada ajudou a mediar um exame do material de DNA da mãe, cujos dados foram enviados para Kiev. Lá, eles coletam o DNA de soldados mortos e irreconhecíveis para fazer a comparação.
A única marca física desses mercenários são as bandeiras de várias nacionalidades fincadas na famosa Praça Euromaidan, em Kiev. E a marca simbólica são as constantes reclamações de Vladimir Putin, que afirma haver entre os mercenários americanos – o maior contingente – forças especiais disfarçadas, operando no front.
É que o mundo todo já está metido nessa guerra.
“Se as “buchas de canhão” internacionais lutam lado a lado com o exército ucraniano, também é internacional o dinheiro que financia tanto a guerra, quanto o pós-guerra.
O “depois da guerra” acontece, aprendi, ao mesmo tempo em que o conflito. Falo de reconstrução, mas também de um local como o Superhumans Center, que ajuda as vítimas a pensarem no que serão depois que o conflito partiu suas vidas ao meio.
O centro é financiado por doações internacionais. O assessor de imprensa Andriy Ischyk me conta a respeito de uma milionária contribuição de Howard Buffett, filho do bilionário americano Warren Buffet. Outros doadores incluem o cantor Sting e a empresa britânica Virgin. A esposa do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, Olena Zelenska, faz parte do conselho supervisor da clínica.
Quem andou nos últimos anos pelas ruas de Berlim, de Londres ou Nova York viu a quantidade de bandeiras ucranianas que têm surgido na janela das casas, uma demonstração que boa parte da opinião pública mundial apoia o engajamento internacional na guerra. A pressa em reconstruir o país é também financiada por verbas internacionais, da mesma maneira que o esforço de guerra – e, hoje, a própria economia ucraniana. Segundo a revista The Economist, o orçamento deste ano do país será de 87 bilhões de dólares, mas a receita com impostos cobre apenas US$ 46 bilhões. O resto terá de vir de empréstimos e doações internacionais. Uma parte, do empréstimo de US$ 50 bilhões anunciado na reunião do G7 da última semana. A ideia é usar a renda dos ativos russos congelados em bancos europeus para amortizar o investimento.
A Ucrânia não pára de pé sozinha hoje, nem parará por muito tempo; e a guerra, ao contrário do que pretendia Putin, está amalgamando ainda mais a economia ucraniana com a europeia.
Também foi uma demonstração da ampliação de apoio internacional o resultado da Cúpula da Paz na Suíça na semana passada, embora boa parte da imprensa tenha considerado que o resultado não foi tão bem-sucedido. Mas vejam. Estiveram representados mais de cem países e até o Brasil, que assinou nota conjunta com a China criticando o plano, acabou impelido a mandar a embaixadora na Suíça como “observadora”. Não assinou a declaração final, assim como Arábia Saudita, México, Índia, África do Sul e Indonésia, mas 78 outros países assinaram. O texto reafirma a integridade territorial e a soberania da Ucrânia, além de pedir a devolução da usina nuclear de Zaporizhzhia, uma das maiores do mundo, atualmente ocupada pelos russos, o não uso de armas nucleares, a permissão para a exportação de grãos pelos mares de Azov e Mar Negro, e a devolução de prisioneiros de guerra e de crianças deportadas para a Rússia.
Prédio em Kiev com faixa pedindo a volta dos prisioneiros de guerra. Foto: Natalia Viana.
Se antes Zelensky contava com o firme apoio e interlocução da União Europeia e dos EUA, seu governo amplia o esforço de meter nesta guerra todo o mundo – fruto do trabalho duro dos dois burocratas que conhecemos na newsletter de 3 de junho. Um dos principais avanços foi romper a dicotomia Sul-Norte global, que tem sido usada pelos russos. Afinal, assinaram a declaração países como Argentina, Cabo Verde, Peru, Chile, Nova Zelândia, Filipinas,Turquia.
Saindo do Superhumans Center, voltamos ao hotel e, à noite, partimos para Kiev num trem-cama. A estação funciona, mais uma vez, em completa normalidade, imperturbada pelos alarmes de ataques aéreos. Para os passageiros do trem não há toque de recolher, ao contrário do restante do país: das 23h às 5h, não se pode sair às ruas. Na cabine reservada para meu grupo, me alojo na cama debaixo do beliche, o colchão é confortável mas não durmo bem: o último alarme soou às 21 horas, pouco depois de deixarmos Lviv. A cada chacoalhão ou parada, meus sonhos confusos vão se misturando a cenas que eu vi em tantos filmes de guerra e que não têm nada a ver com o que eu estou vendo na Ucrânia. E penso se talvez nós, que não temos experiência de conflito, sejamos os últimos a perceber que a guerra não acontece só na linha de combate, ela entra dentro das pessoas. Esse medo constante é o que acho que torna as pessoas anestesiadas. Durmo cerca de três horas e chego, exausta, na estação de Kiev, às 6:20.
Aqui em Kiev, a guerra está mais próxima dos olhos. Saindo do trem há muitos homens, jovens e de meia idade, vestidos em paramentos militares: calças, camisetas e mochila verde. Vejo um com sua esposa, que carrega o casaco de frio para ele. Outro é trazido pelo pai. Não sei se chegam ou se vão embora. Vejo alguns andando de muletas. Pela primeira vez, penso que talvez a melhor expectativa de um jovem ucraniano deve ser ir para a guerra e perder apenas uma parte pequena do corpo, como um pé.
Na descida da escada rolante, filmo o enorme salão e a fila de passageiros que metem suas malas numa esteira de raio X. Dois soldados descansam diante do grande painel de led com os nomes dos destinos. Do outro lado do saguão, uma mesa serve de ponto de alistamento voluntário às Forças Armadas, mas não há ninguém. Até que um segurança se aproxima e diz que não podemos filmar, embora a Myroslava, nossa anfitriã que nos acompanha ao longo dos 2700 kms de viagem, tente argumentar que somos jornalistas com permissão do Exército. Minha colega do Estadão é forçada a apagar os vídeos do celular.
Assim como o hotel anterior em Lviv, nosso hotel em Kiev tem um ar de vazio. A recepcionista nos avisa que eles têm um abrigo antiaéreo. “Se quiser usar, basta vir aqui até a recepção e pedir”, diz. O anúncio também é repetido na placa sobre os elevadores, abaixo do restaurante, da piscina e da sauna: “bomb shelter”. Lá fora, avenidas enormes, movimentadas, gente apinhada nas calçadas e caminhando com pressa para rodar uma economia que segue, apesar de tudo. Os prédios em estilo clássico, europeu, se misturam a imponentes construções soviéticas, brutalistas. Diante do meu hotel, um centro de cultura se apossou do antigo Museu Lênin, uma barbaridade de concreto, feia e linda ao mesmo tempo. É lá que fica o UMCM.
Prédio do UCMC, ex museu Lenin. Foto: Natalia Viana.
Naquele mesmo dia, fomos conhecer o diplomata Valeriy Chaly, um senhor careca, gordinho e que impressiona tanto pela sua experiência quanto pela franqueza. É um dos fundadores do ICMC, fundado, segundo ele nos explica, em 72 horas, por ocasião da invasão da Criméia em 2014, para “levar informações corretas ao público internacional”. Ele assessorou todos os governos ucranianos (menos o atual) desde a independência, sempre em cargos de influência. Foi vice-secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional , vice-ministro das Relações Exteriores, vice-secretário de governo do ex-presidente Petro Poroshenko, que foi derrotado por Zelensky em 2019, e embaixador nos Estados Unidos. Entre os anos 90 e meados dos anos 2010, participou de dezenas de rodadas de negociações com os russos.
“Nós tentamos evitar a guerra, nós tentamos evitar a guerra”, repete em inglês com forte sotaque, carregando nos “rs”, vogais graves e nos suspiros.
“É muito importante entender que esta guerra começou em 2014, com a invasão da Crimeia. Antes disso, eu estava entre o grupo de pessoas que tentou encontrar um meio termo com a Rússia. Por exemplo, estava no grupo de negociação do Tratado de Amizade, que garantia nossa segurança, soberania e integridade territorial. Naquela época, em 1997, pensamos que havíamos alcançado um grande resultado”, disse. “Recebemos muitas críticas porque permitimos que os russos permanecessem em nosso território, [com a frota do Mar Negro localizado na Crimeia], mas isso nos parecia uma oportunidade de manter uma paz duradoura por décadas”.
Odessa, cidade costeira ucraniana situada às margens do Mar Negro, a noroeste da Península da Crimeia. É a quarta maior cidade do país. Foto: Natalia Viana.
Ouvindo Valeriy, dá para perceber quão belicosa sempre foi a relação entre Rússia e a Ucrânia independente, e como a guerra sempre esteve no horizonte. Ele participou, depois, dos acordos de Minsk em 2014, que estabeleceram um cessar-fogo instável na região de Donbass, retirada de armas pesadas e a permissão de uma autonomia relativa ao governo separatista. “Estive no Conselho de Segurança Nacional e Defesa, com o presidente interino Turchinov e todos os políticos e ministros da Defesa, o chefe de nossa inteligência. Foi uma discussão difícil. Mas todo esse grupo decidiu que a Ucrânia deveria evitar conflito militar e a guerra”, explica.
“Tentamos encontrar uma solução diplomática”.
Quando os russos invadiram os arredores de Kiev em fevereiro de 2022, tomando os povoados de Bucha e Irpin e travando batalhas por semanas a fio em outras cidadezinhas, traziam, segundo Valeriy, uma lista de ucranianos que deveriam ser presos ou mortos. Políticos, jornalistas, intelectuais. Seu nome estava na lista.
“Fica claro, olhando os olhos de Valeriy, que é difícil enxergar uma saída para essa guerra, até mesmo para quem já negociou tanto. “Ninguém no mundo agora, do meu ponto de vista, sabe como isso vai terminar”, diz.
“78% da Ucrânia tem parentes ou amigos que foram mortos nesta guerra. Em cada família. No próximo ano, será ainda mais. Entendemos que um cessar-fogo não vai parar a guerra. Só fará uma pausa de um ou dois anos e, depois disso, a Rússia vai atacar novamente”.
Uma coisa ele sabe: a Rússia está readequando sua economia para aguentar uma guerra prolongada – e, para Valeriy, se não houver paz neste ano, as consequências serão terríveis. “No próximo ano, eles estarão preparados”.
A guerra é essencialmente uma operação econômica. Trata-se de uma enorme e custosa empreitada para destruir coisas – destruir gente, sim, mas também destruir casas, vigas de metal, concreto, telhados, destruir asfalto, redes de eletricidade, refinarias de petróleo e usinas, destruir tudo o que alguém com algum esmero ou ganância ou mesmo corrupção construiu. Destruir armas enormes do inimigo, destruir aviões, caças, sistemas de alarme antiaéreo, nomes que as pessoas aprendem a nomear e a sentir a estranha alegria quando uma delas é destruída e vira sucata. A guerra também é o ritual de celebrar a destruição de coisas caras e custosas. E o esforço de inventar novas coisas que ajudem a destruir ainda mais objetos do inimigo.
“Se você me pergunta: a guerra dá certo ou dá errado? Depende pra quem”, me explica pelo telefone, semanas depois, o professor Rodrigo Amaral, da Faculdade de Relações Internacionais da PUC-SP. “Ela dá certo para os atores do complexo industrial bélico, e os EUA são os maiores. Aliás, essa é uma grande linha argumentativa daqueles que falam das 'endless wars', as oportunidades de guerras intermináveis e, com isso, potencializar o mercado da tecnologia bélica. Quando você olha pra Guerra ao Terror isso fica explícito, a tecnologia de drones, por exemplo, é uma novidade que vai sendo desenvolvida ao longo da Guerra ao Terror”.
Nomes como f_34, mirage 2000-5, fighters, caças F-16, Sukhoi-57, mísseis Kh-59, Kh-69, FAB-500M-62 vão entrando no vocabulário e nas conversas cotidianas das pessoas. As armas são fabricadas nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Polônia, Alemanha, Rússia, Irã. Velhas armas soviéticas vão sendo remodeladas para novos usos e sites especializados vão se deliciando com as novidades – os ucranianos têm usado, por exemplo, um drone de nome Baba Yaga, lendária bruxa escandinava, para atacar alvos na linha de combate. Os russos por sua vez criaram a FAB-500, de 500 quilos, uma bomba soviética modificada pela adição de asas estabilizadoras e auxílio à navegação.
A guerra está mudando a economia da defesa.
Essa é uma guerra do século 20, lutada a pé por trincheiras e avanços por tropas formadas por gente pobre, gente cansada, gente obrigada a ir lutar, disputada rua a rua em cidades que estão nos mil quilômetros de linha de contato. Mas é também uma guerra do século 21, onde os drones, por exemplo, têm mudado o cenário – vê-se pela quantidade de anúncios de batalhões de drones que buscam voluntários nas ruas de Kiev.
No começo da nossa caminhada por Kiev, que se seguiu à conversa com o embaixador, demorei pra entender o que eram esses outdoors com imagens de soldados carregando armas, todas com um quê de propaganda de Hollywood. Depois, entendi: é preciso seduzir os jovens para virarem soldados.
São muitos e se viam por toda a cidade, naquele entardecer, quando fomos levados a uma caminhada turística com uma guia, Natasha, bastante animada, de olhos azuis bonitos e maquiagem carregada, um terninho e sapato azul com franjinhas. Fico feliz ao conhecer minha quase xará e cometo uma gafe: digo que meu nome tem origem russa, ao que ela responde, ríspida: "Russa não, eslava!".
Passeamos pelos pontos mais conhecidos da cidade, cheia de pessoas aproveitando a tarde quente. Na praça diante do Ministério do Exterior, tanques enferrujados apreendidos dos russos viraram uma escultura permanente. Um cartaz de aluguel de patinete diz que espera o turista depois da vitória. Uma parede azul diante do cemitério virou um enorme painel de homenagem a milhares de soldados mortos desde 2014. Todos seus rostos estão na parede. Um homem toca piano na rua, do outro lado do caminho peatonal.
Na praça diante do Ministério do Exterior, tanques enferrujados apreendidos dos russos viraram uma escultura permanente. Foto: Natalia Viana.
Na nossa visita à cidade, aos olhos da nossa guia, tudo é dividido entre antes e depois da guerra. “Nosso prefeito construiu a ponte porque era uma área popular e ninguém pensou que haveria guerra”, diz. O antigo arco da amizade, uma enorme estrutura de metal, foi construído para celebrar a irmandade entre os dois povos, hoje ostenta uma rachadura negra, intervenção feita por um artista ucraniano. "Aqui embaixo tinha uma estátua celebrando a amizade com os russos, mas depois da invasão completa em 2022, as pessoas vieram aqui e destruíram”.
Arco da Amizade foi destruído pela população após a invasão russa. Foto: Natalia Viana.
É uma das poucas ruínas que eu encontro. Depois da retirada dos russos da área região de Kiev e em abril de 2022, a avidez da reconstrução não deixou mais que um ou dois prédios danificados na cidade. A maior marca que ficou e, Kiev é o entorno: saindo alguns quilômetros da cidade, vemos que terrenos baldios foram transformados em trincheiras ainda hoje funcionais, com estruturas quadradas de concreto escondidas debaixo de panos camuflados e grandes asteriscos de metal impedindo a entrada de carros ou tanques. Existem soldados em todas essas áreas aparentemente abandonadas. Além disso, as estradas são rigidamente controladas por checkpoints – para sair e entrar em Kiev, é preciso olhar nos olhos dos soldados e convencê-los que não oferecemos perigo.
Mesmo assim, há algo que me incomoda. Sendo a guerra um exercício fútil de destruir coisas materiais, vejo muito menos degradação do que eu vejo diariamente na cidade de Carapicuíba, por exemplo, uma destruição causada pelo simples desenrolar da barbaridade do capitalismo cotidiano. Então, eu peço a Myroslava para vermos alguns prédios que foram bombardeados em Kiev. Ela diz para eu ficar tranquila, pois amanhã vamos à área que circunda Kiev, incluindo Bucha, onde os russos invadiram. “Bucha era um bairro próspero, um subúrbio abastado, e foi bastante afetado”, explica Myra.
E depois: “eu sei que você quer ver coisas destruídas”, ela me diz, e a vergonha que eu sinto é indescritível. “Me dá muito orgulho ver como já reconstruíram rápido”, completa, sem perceber a monstruosidade que ela acaba de apontar em mim: o fascínio com a guerra, com os metais retorcidos e corpos despedaçados, os prédios destruídos e as imagens de filmes que vi quando crescia, e a inescapável incompreensão, até aquele momento, que a guerra existe também no ar que ela respira. Tenho vergonha dessa curiosidade, desse fetiche da guerra que é o que me fez aceitar participar desta viagem.
E entendo que os ucranianos, à medida que vão reconstruindo seu país com pressa, vão construindo também a história que querem que seja contada para satisfazer aos olhos sedentos como os meus e os do meu leitor.