Do campo à mesa, o perigo dos agrotóxicos
por Anna Sophie Gross*
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publicado
29/08/2018 00h20,
última modificação
28/08/2018 15h01
Riscos não se restringem aos trabalhadores rurais e chegam também aos consumidores de alimentos brasileiros em todo o mundo
Thomas Bauer

Franciana, mãe de sete filhos e à espera do oitavo, foi atingida grávida pela pulverização de agrotóxico.
Antônio
Luís trabalhava em uma fazenda de soja no Maranhão onde preparava a
mistura de substâncias para aplicação na lavoura. Em 2009, quando sua
máscara de proteção parou de funcionar, ele alertou a chefia, mas foi
instruído a voltar ao trabalho e parar de reclamar. Três dias depois,
desmaiou. Um ano mais tarde, teve um derrame. O médico confirmou: Luís
havia sofrido intoxicação por agrotóxicos. A receita preparada todas as
manhãs era um composto de Zap, 2,4-D e Cobra.
Em
abril, Franciana Rodrigues, então estava grávida de 5 meses, saiu de
casa na motocicleta do irmão. Enquanto se afastava de sua comunidade,
cercada por duas grandes fazendas de soja, um avião pulverizou uma
substância que a atingiu. No mesmo instante, suas pernas começaram a
doer e vieram enjoo e tontura. Franciana foi levada para um hospital
local e exames de sangue revelaram o envenenamento por agrotóxicos.
Transferida
às pressas para um segundo hospital, a 5 horas de distância de
Araguaína (TO), onde vive, ficou sete dias internada. “Eu não conseguia
respirar, quase morri”, recorda. Na época, o médico advertiu que ela
tinha pressão alta, sofria de infecção nos rins e que o parto precisaria
ser por cesariana devido à falta de ar de Franciana. “Se eu não
estivesse usando um capacete, teria sido meu fim”.
O
proprietário da terra em que os pesticidas foram pulverizados visitou
Franciana logo depois que ela chegou do hospital e se ofereceu para
pagar as despesas médicas e custos com alimentação durante os meses que
antecederam o nascimento do bebê. Em troca, pediu silêncio.
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Zap é um nome comercial para o glifosato, ingrediente ativo do Roundup da Monsanto,
o mais usado no mundo, mas ligado a problemas de saúde humana e animal e
ao declínio da biodiversidade. Apesar de liberado na maioria dos
países, os resíduos máximos permitidos nos alimentos para consumo são
drasticamente mais altos no Brasil do que na Europa: 10 vezes maior no
café; 20 vezes maior na cana-de-açúcar; e 200 vezes maior na soja.
Cobra
é uma marca registrada de Lactofen, substância proibida na União
Europeia e usada legalmente no Brasil. Em 2008, após grande pressão de
ONGs e acadêmicos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
começou a reavaliar seu uso, mas depois de oito anos determinou que o
Cobra poderia permanecer no mercado sem alterações.
O
veredicto não surpreende os críticos do processo de avaliação de
agrotóxicos no Brasil. De acordo com o último relatório da Anvisa,
apenas onze substâncias foram proibidas no Brasil apesar de dezenas
delas terem sido banidas na UE, nos EUA e em outros países à medida que
surgiram novas evidências científicas de danos.
O
Brasil é hoje um dos consumidores mais vorazes de agrotóxicos do mundo,
perdendo apenas para os EUA, e é o maior usuário entre os países em
desenvolvimento, com gastos que chegam a 9,6 bilhões de dólares por ano.
O perigo não coloca em risco apenas trabalhadores agrícolas e
populações que vivem nas regiões pulverizadas: muitos agrotóxicos
permanecem no meio ambiente e nos alimentos consumidos.
Existem
hoje 150 substâncias autorizadas para uso no Brasil apenas na cultura
da soja, 35 deles proibidos na Europa, segundo a professora da
Universidade de São Paulo (USP), Larissa Bombardi. Entre os considerados
mais perigosos e amplamente utilizados nas fazendas brasileiras estão
acefato, atrazina, carbendazim e lactofen - todos proibidas na Europa.
Silvia
Fagnani, diretora executiva do Sindicato Nacional da Indústria de
Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), grupo a favor dos agrotóxicos,
defende as diferenças entre as regulamentações da UE e brasileira. Para
ela, “os produtos usados aqui podem não ser necessários em países com
inverno rigoroso - frequentemente com neve - que reduz naturalmente as
pragas e seus danos”.
As
pesquisas feitas pelos órgãos reguladores mostram que uma parcela
significativa dos alimentos cultivados e vendidos no Brasil viola as
regulamentações nacionais sobre resíduos. A última análise da Anvisa
revelou que de 9.680 amostras coletadas entre 2013 e 2015 - com testes
feitos em culturas que vão de arroz a maçãs e pimentões - 20% continham
resíduos além dos níveis máximos ou continham substâncias proibidas.
- Agroquímicos que serão misturados e aplicados na cultura de soja (Thomas Bauer)
O poder das empresas
Os
dez maiores fabricantes faturaram 7,9 bilhões de dólares, muitas delas
corporações transnacionais que legalmente fabricam agrotóxicos em países
desenvolvidos onde os produtos químicos tóxicos são proibidos para uso e
os exportam para países em desenvolvimento, onde o uso é legalizado. Syngenta, Bayer e Basf são três exemplos.
A
Syngenta produz atrazina e paraquat, ambos proibidos pela UE e
comercializados no Brasil. Embora a Anvisa considere que o paraquat
representa "riscos inaceitáveis à saúde e o proibirá no Brasil a partir
de 2020", a Syngenta defende a manutenção da oferta do produto.
Procurada
pela reportagem, a Bayer admitiu que vende carbendazim. Já a Basf
esclareceu que “no Brasil” não produz atrazina, paraquat, acefato ou
carbendazim, mas não confirmou se produz ou não essas substâncias na UE
ou em outro lugar e depois as vende no Brasil.
A
ameaça à saúde e ao meio ambiente que essas substâncias representam não
estão restritos ao Brasil. Os alimentos que recebem os defensivos são
exportados para o mundo todo. A soja brasileira, cítricos, uva e café
são consumidos em grande escala na UE e nos Estados Unidos, enquanto que
a soja brasileira alimenta a pecuária e a avicultura no Brasil e em
diversos países.
Por
esse motivo, os resultados da Anvisa em relação aos resíduos em
alimentos levantam sérias preocupações com relação aos produtos
brasileiros vendidos e consumidos no exterior. Essa é uma questão em
particular que a China talvez queira questionar, já que avalia mudar
suas principais compras de soja e carne bovina dos EUA para o Brasil
devido à guerra comercial entre os países.
No
ano passado, o Comitê de Especialistas do Reino Unido sobre Resíduos de
Pesticidas em Alimentos (Prif, na sigla em inglês), um órgão
independente que presta assessoria ao governo, encontrou carbofuran acima do limite legal em limões importados do Brasil.
O
relatório do Prif indicou que, se todo o fruto contaminado fosse
consumido, “as pessoas poderiam apresentar sinais transitórios de
toxicidade colinérgica, como dor de cabeça, distúrbios do estômago,
salivação e resposta reduzida da pupila”.
O
carbofuran é proibido no Reino Unido desde 2001 e banido nos EUA há
quase uma década por apresentar “um risco alimentar inaceitável,
especialmente para as crianças, de consumir uma combinação de alimentos e
água com resíduos”. Ele só foi proibido no Brasil no segundo semestre
do ano passado, daí sua recente aparição nos limões no Reino Unido.
“É
um duplo padrão que a União Europeia está satisfeita em importar
produtos que são cultivados com pesticidas que foram considerados
inseguros para uso na UE, como resultado de preocupações com a saúde
humana ou danos ambientais”, afirma Nick Mole, diretor de política da
Pesticide Action Network do Reino Unido.
*Este artigo foi publicado originalmente em Mongabay.com. Para ler a versão ampliada em inglês clique aqui.
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