sexta-feira, 4 de abril de 2025

 

Três julgamentos no STF projetam o futuro da democracia

“Golpe de Estado mata. Não importa se isto é no dia, no mês seguinte ou alguns anos depois”, disse o ministro Flávio Dino ao votar pelo acolhimento da denúncia contra Jair Bolsonaro e sete de seus aliados, fazendo referência em seguida ao filme Ainda estou aqui, baseado no livro de Marcelo Paiva sobre a luta por justiça de sua mãe, Eunice, após o assassinato e desaparecimento do corpo do marido, o ex-deputado Rubens Paiva. 

A fala de Dino foi lembrada no voto da ministra Cármen Lúcia, que completou: “Ditadura vive da morte. Não apenas da sociedade, não apenas da democracia, mas de seres humanos, de carne e osso, que são torturados, mutilados, assassinados, toda vez que contrariam o interesse daquele que detém o poder para o seu próprio interesse. Não é para o bem público, não é para o benefício de todos”.

As referências aos crimes da ditadura foram ainda mais impactantes porque foram acompanhadas de perto por Ivo, filho de Vladimir Herzog – morto sob tortura em dependências militares, como Rubens Paiva –, e Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel, que morreu em um acidente suspeito quando investigava a morte do filho de 25 anos, desaparecido em 1971. 

Ivo e Hildegard estavam com outros parentes de vítimas da ditadura, próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o que criou um “clima de tensão”, como conta a repórter Alice Maciel no Ato 1 do Diário do Julgamento, cobertura especial da Agência Pública que vai acompanhar o julgamento histórico dos réus por golpe de Estado e outros delitos. 

 A possibilidade inédita de punir um presidente e quatro militares de alta patente que atentaram contra a democracia em um país com a história marcada pela brutalidade da ditadura instaurada em 1964 e que se estendeu por mais de 30 anos, com total impunidade dos responsáveis pelos crimes hediondos citados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Hediondos e imprescritíveis no caso de tortura, segundo o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, e foi ratificado e incorporado à legislação brasileira em 2002. Crime permanente e continuado, no caso do desaparecimento dos corpos, embora ambos os crimes estejam até hoje impunes sob o manto da Lei da Anistia de 1979, lamentavelmente confirmada em 2010 pela Suprema Corte. 

A fala dos ministros tem especial relevância em um momento em que justamente essa lei está sendo revisada no STF. Daí a atenção redobrada para o voto do ministro Flávio Dino, que é relator do processo, de repercussão geral, que vai determinar se a Lei de Anistia alcança os crimes de ocultação de cadáver. O caso concreto a ser julgado, que pode alterar os efeitos da lei de 1979, é o dos tenentes-coronéis Sebastião Curió e Lício Maciel, acusados de ocultar os corpos de guerrilheiros mortos no Araguaia entre 1974 e 1976. Ambos foram absolvidos em tribunais inferiores com base na Lei da Anistia. 

Além de lembrar os crimes da ditadura, o voto de Dino também chamou a atenção por ter citado “milhares” de vítimas – e não apenas os 434 mortos e desaparecidos políticos reconhecidos oficialmente – levando em conta as estatísticas reais, reivindicadas por especialistas e ativistas de direitos humanos. Vamos lembrar que a Comissão da Verdade incorporou entre as vítimas da ditadura militar ao menos cerca de 8500 indígenas e mais de 1600 camponeses mortos e desaparecidos nesse período. 

Com isso, aumentou a esperança por justiça das famílias, dos movimentos sociais e de todos que compreendem o sofrimento daqueles que, como as famílias Paiva e Angel, arrastam por anos a angústia de sequer poder enterrar seus filhos, irmãos, companheiros e amigos. 

É um momento único para a democracia brasileira este que reúne o julgamento dos golpistas de hoje com a revisão – ao menos parcial – da malfadada lei de 1979. O que torna ainda mais patéticos os esforços dos aliados de Bolsonaro no Congresso para anistiar os que atentaram com violência contra o Estado Democrático de Direito no século 21.

No próximo dia 3 de abril, dois dias depois do triste – e esperamos, silencioso – aniversário do golpe de 1964, um outro julgamento no STF promete dar a medida em que a democracia de fato está instalada no país. Trata-se da decisão sobre a ADPF das Favelas, que discute a letalidade policial em comunidades no Rio de Janeiro. 

Se o STF, que promete uma decisão unânime, determinar a manutenção das restrições às operações policiais nas comunidades, que não ocorrem nos bairros abastados, é sinal de que temos uma Justiça que reconhece a igualdade de direitos da população e a necessidade de proteger aqueles que têm sido as maiores vítimas do Estado depois da redemocratização: os moradores de morros e periferias, que além de enfrentarem o jugo de milícias e facções, são os alvos preferenciais da violência policial.

Se cederem às falácias do governador do estado, Cláudio Castro, e do prefeito Eduardo Paes, sobre os efeitos da medida e às mentiras da direita linha dura – aquela cujos expoentes extremos participaram da trama golpista de Bolsonaro – então o nosso problema é ainda maior. Quando a democracia não vale para todos, não vale para ninguém.

PS.
 Na próxima quarta-feira dia 2 de abril às 19h30 terei o grande prazer de receber a psicóloga Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, para uma live no YouTube da Agência Pública. Uma conversa imperdível sobre os 61 anos do golpe. Ative o lembrete e participe!


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 

61 ANOS DEPOIS DO GOLPE, AINDA É HORA DE LEMBRAR

 

Quando você entendeu o que foi a ditadura militar brasileira? 

Teve gente que foi profundamente afetada por ela: sofreu tortura, foi preso, exilado, teve familiares desaparecidos e mortos. Teve gente que estava do lado de quem torturou, prendeu, censurou. Houve quem passou ileso pela ditadura, sem entender muito bem o que estava acontecendo. E teve gente que nasceu depois, quando tudo isso já tinha acabado.

Meu caso é esse último. Meu primeiro contato com a ditadura foi nas aulas de história do ensino fundamental. Sempre me perguntei como essas atrocidades podiam ter acontecido. Até entender que a ditadura foi muito mais do que uma foto em preto e branco num livro de história.

É aí que entra a importância do jornalismo.

“Muita gente ainda carrega na memória os sofrimentos vividos durante a ditadura, mas [essa memória] é frequentemente reprimida e deixada debaixo do tapete, seja por um discurso positivista que busca neutralidade na história ou por uma cultura política de conciliação que evitou o confronto com o passado”, disse Janaína Teles, familiar de desaparecidos da ditadura, professora de história e diretora do Centro de Memória Social da Uemg, no último episódio do podcast Pauta Pública.
 
O jornalismo investigativo e independente tem o papel essencial de escavar a memória coletiva, confrontar o apagamento e investigar aquilo que muitos ainda preferem silenciar. Em um país onde arquivos seguem fechados e onde militares seguem tentando reescrever a história, reportagens que expõem os crimes da ditadura e resgatam a verdade são fundamentais para fortalecer a democracia. 
Memória e justiça caminham juntas — e o jornalismo é uma ponte entre elas.
✊🏾 Apoie o jornalismo da Pública!
A Pública existe para fazer esse trabalho. Investigar a ditadura sempre foi prioridade de cobertura desde a nossa fundação, há 14 anos. Já falamos dos laços do Instituto Butantan com generais brasileiros e chilenos, das mortes de camponeses e indígenas pelas mãos das Forças Armadas nacionais, da falta de preservação da memória de centros de tortura, da espionagem do Estado ditatorial, da repressão a greves de trabalhadores, das ligações entre empresas e ditadura e da importância do filme Ainda Estou Aqui para a Lei de Anistia. 

São matérias que resgatam histórias, trazem novas investigações e perspectivas que marcam quem as lê. Por exemplo, sempre que vejo empresas como Ford, Volkswagen, Fiat, Paranapanema e Folha de S. Paulo, lembro das investigações da Pública que revelaram as violações de direitos cometidos por elas durante o período ditatorial.

Este aniversário de 61 anos do início da última ditadura militar brasileira é um marco contra o esquecimento. 
As reportagens que já publicamos — e as que ainda vamos publicar — são nossa arma na luta por memória, justiça e reparação. 

Mas esse trabalho só é possível com o apoio de quem acredita na importância de lembrar. Apoie o jornalismo que não se cala diante da história. Ajude a levar essas histórias adiante, para que mais pessoas possam conhecê-las — e para que elas jamais sejam esquecidas.
✊🏾 Não vamos esquecer!
Um abraço,

Letícia Gouveia
Analista de audiências da Agência Públic

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O Candeeiro




 

 

Mentiras de políticos impedem debate qualificado sobre segurança

“Uma das maneiras de lidar com a experiência da tortura e da violência extrema do Estado é não ficar lembrando o tempo todo de detalhes senão você não sobrevive. Isso não foi só minha mãe. Esse modo de reagir, tocar a vida, cuidar dos filhos é algo realizado pelas milhares de Eunices que tem até hoje no Brasil. A mulher do Amarildo, a família da Marielle. São as Eunices que seguram a onda e ficam em busca da Justiça, as mães de Maio, as mães do massacre de Osasco, todos os dias tem grupo de mães buscando justiça diante do absurdo da violência do Estado que permanece”.

“Eu me preocupo menos com a punição stricto sensu daqueles responsáveis pela morte do meu pai, por exemplo, – e eu gostaria de ver isso – e mais que se entenda a punição pela violência de Estado mais amplamente, que não se fique perdoando os caras [da polícia] que toda hora estão matando gente”.

Relembro esses dois trechos da inspiradora entrevista com a psicóloga Vera Paiva, filha de Eunice e Rubens Paiva, que o Brasil conheceu na figura da adolescente Veroca, no filme Ainda Estou Aqui, premiado com o Oscar e assistido por mais de 5 milhões de brasileiros. A conversa foi na quarta à noite, em uma live da Agência Pública.

A ideia era falar sobre a ditadura pós-golpe de 1964, que completou 61 anos nesta semana, mas chegamos rapidamente a um de seus legados mais nefastos: a permanência da violência do estado na redemocratização. Ainda hoje, agentes do estado decidem quem tem direito à vida, como se vê nas operações policiais em periferias de todo o país. Ainda hoje, Eunices choram a morte sem sentido nem justiça de maridos e filhos, como lembrou Veroca.

 Assustada com a criminalidade e insuflada por políticos oportunistas e ineptos para traçar políticas de segurança eficientes, boa parte da população brasileira se torna cúmplice da violência indiscriminada das polícias como forma de combate ao crime, vítima de uma desinformação que o comportamento errático da mídia ajuda a disseminar. 
É o que se viu claramente no caso da ADPF das favelas, concluída hoje pelo Supremo Tribunal Federal, com a aprovação conjunta de ações de combate ao crime organizado, envolvendo a Polícia Federal e a Receita, e de medidas para reduzir a letalidade policial, com a exigência, por exemplo, de câmeras nos uniformes e do planejamento de operações policiais dentro de um plano de segurança pública coerente, sempre comunicadas ao Ministério Público, que tem entre suas atribuições a fiscalização das polícias. 

Volto ao que eu disse antes sobre o comportamento oscilante da mídia: durante o debate sobre a ADPF, enquanto o jornalismo investigativo trazia provas do envolvimento do estado com as milícias, levantava dados e entrevistas com especialistas mostrando que a violência de estado mata indistintamente criminosos e inocentes sem tornar a cidade mais segura, havia todo um noticiário policial frenético em que distorções em favor de operações policiais violentas se tornaram rotineiras e o clamor por repressão policial abafou o debate sobre políticas de segurança consistentes. 

Sem falar no excesso de espaço dedicado a declarações políticas sem contestação, caso do governador Cláudio Castro e do prefeito Eduardo Paes, que atribuem o descontrole do estado no combate ao crime à exigência de legalidade nas operações policiais por parte de associações comunitárias, organizações de direitos humanos e da própria Justiça. 

A imparcialidade fajuta, como vimos tantas vezes na política, também dá o ar de sua graça nesse tema, quando se busca contrapor o imperativo legal e humanitário de garantir a dignidade, a liberdade e a inviolabilidade de direitos de quem mora na favela à necessidade de combater o crime com violência. Na verdade, como demonstram estatísticas e pesquisas, o excesso de força não reduz a criminalidade, coloca em risco a vida dos moradores das favelas e dos próprios policiais, além de incentivar a corrupção dos agentes do estado. 

Para ficar em um número revelador, retirado de um excelente vídeo de Cecília Oliveira, do Fogo Cruzado, que monitora os tiroteios do Rio de Janeiro: entre 2008 e 2020, mesmo com a alta letalidade das operações policiais, as áreas dominadas por milícias cresceram 400%, e as do Comando Vermelho, 57%. Hoje o crime organizado domina mais de 20% do território da Grande Rio. 

Para quê então a polícia carioca matou tanto?

A decisão desta quinta-feira do STF é um incentivo para que os governos passem a tratar com seriedade, apoiados na ciência e no respeito aos direitos de todos os brasileiros, a questão da segurança pública, que é sim primordial para a população. Vamos esperar que a imprensa contribua de forma consistente para o debate público informado em vez de ceder ao mesmo sensacionalismo e populismo que acomete os políticos, sobretudo os de direita.

Não podemos mais deixar que as mães lutem sozinhas por Justiça. As nossas Eunices não almejam ser heroínas, o que elas querem é dignidade, seus filhos e maridos vivos e um país em que os direitos de todos os brasileiros sejam respeitados como prega a Constituição de 1988, o nosso pacto da redemocratização.  


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 
 
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