domingo, 10 de agosto de 2025

O LEGADO ESCRAVISTA DOS EUA NO INTERIOR PAULISTA

 

Em Santa Bárbara d’Oeste (SP), homens com chapéus texanos e mulheres de vestidos rodados dançam música country sob bandeiras confederadas — o símbolo mais conhecido dos estados escravistas do Sul dos EUA. A cena poderia estar no filme “E o vento levou”, mas acontecia aqui, na Festa dos Americanos, realizada todos os anos até ser interrompida pela pandemia. Por trás dessa celebração “cultural” da imigração norte-americana, há uma história que muitos preferem esquecer, mas a Agência Pública investigou e trouxe à tona: a vinda desses imigrantes, no fim da Guerra Civil Americana, não se deu apenas por promessas de reconstrução. Para muitos, o objetivo era manter um modo de vida baseado na escravidão.


A Pública mergulhou nessa história. Conversamos com quem resiste para preservar a memória negra, com quem celebra a herança confederada e com quem questiona a exaltação de um passado escravista.


Mesmo com documentos de cartórios e censos mostrando que, além de sementes e costumes, os norte-americanos também traziam consigo a prática de escravizar pessoas — especialmente em plantações de algodão – a narrativa oficial da cidade exalta apenas sua coragem e contribuições, silenciando sobre o trabalho escravizado que sustentou essa prosperidade.


O resultado dessas investigações faz parte do especial do Projeto Escravizadores, no qual trouxemos investigações inéditas da Agência Pública que destrincham o passado escravista do Brasil. Na reportagem publicada hoje, nos aprofundamos na história dessas “colônias de confederados”.


Apesar de ter o uso em eventos públicos proibidos por lei em 2022, a bandeira confederada — hoje associada à supremacia branca e à Ku Klux Klan — é um símbolo valorizado por seus defensores. Descendentes ainda arguementam que ela representa “apenas a origem”, enquanto movimentos negros lutam para que o racismo e a escravidão não sejam apagados da memória local.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

PRISÃO DE BOLSONARO É A PONTA DO ICEBERG

 

O ex-presidente Jair Messias Bolsonaro teve a prisão domiciliar decretada ontem (4), após ter participado por telefone de uma manifestação contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e em defesa de sua anistia. Apesar de sua prisão recente, a Agência Pública acompanha o caso há muito tempo. Nós cobrimos cada etapa do julgamento da tentativa de golpe de estado, sempre estivemos de olho nas articulações e alianças do clã Bolsonaro com a extrema direita norte-americana e também aos ataques ao STF promovidos por Jair e seus apoiadores.

Desde 2019, a equipe da Pública acompanha de perto a aproximação de Eduardo Bolsonaro de figuras da extrema-direita dos Estados Unidos. Em 2023, revelamos que ele passou a articular sanções americanas contra o STF – movimentações que resultaram no tarifaço de Trump contra o Brasil.

Contamos na mão as 77 reuniões feitas por Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos ao longo do governo do pai e demos os nomes aos seus principais aliados. Mostramos também que Eduardo abriu uma empresa no país, que tinha “indícios de lavagem de dinheiro”, como definiram especialistas. Quando contatamos o deputado para fazer questionamentos, ele encerrou o contrato. Desde então, seguimos nessa mesma toada, alternando entre investigações das negociações do bolsonarismo nos EUA e seus negócios por lá. 

Hoje, na live “Trump, Bolsonaro e as eleições de 2026”, nossa diretora executiva, Natalia Viana, e o professor, ativista e colunista, James Green, analisaram como resistir à ofensiva bolsonarista-trumpista e de que forma os EUA podem influenciar as eleições no Brasil ano que vem. Durante a conversa, um comentário chamou atenção: foi Steve Bannon (ex-estrategista de Donald Trump e aliado da família Bolsonaro) que escolheu Eduardo como líder da extrema-direita na América Latina.

Além disso, Bannon também cunhou o termo “primavera brasileira”, que passou a ser utilizado no final de 2022 para se referir aos acampamentos e protestos que buscavam manter Jair Bolsonaro no poder, ainda que isso fosse contra os resultados democráticos. 

Uma investigação que publicamos hoje revela um pouco mais do envolvimento de bolsonaristas com o trumpismo. Uma empresa do influenciador Paulo Figueiredo, que rodou pelos Estados Unidos com Eduardo Bolsonaro pedindo sanções ao Brasil, é citada em uma ação judicial norte-americana relacionada a um caso de falência. A ação busca recuperar transferências que teriam sido parte de uma fraude bilionária liderada, de acordo com apurações do Mother Jones, pelo magnata chinês Miles Guo, trumpista e ex-sócio de Steve Bannon.

Guo, desde 2015, está auto-exilado nos EUA. Ele foi condenado por nove crimes, entre eles lavagem de dinheiro e organização criminosa. 

Amanhã entra em vigor mais uma medida orquestrada pela aliança bolsonarista-trumpista: a tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros importados pelos Estados Unidos. A justificativa para a medida foi que as autoridades brasileiras estariam prejudicando empresas americanas, o direito à liberdade de expressão dos cidadãos norte-americanos e a economia do país. 

Mas assim como mostramos que a investigação comercial ordenada por Trump a respeito do pix é resultado de uma retaliação das big techs que andam insatisfeitas com os rumos de decisões brasileiras sobre as regulamentações digitais, quem garante que o tarifaço não é apenas mais uma forma de tentar controlar a política interna do Brasil?


Quem acompanha a Pública entende os bastidores antes que virem manchete. Ajude a manter esse jornalismo corajoso e vigilante. Apoie nossas próximas investigações - torne-se um Aliado hoje!
 
Quero apoiar a Pública!
Um abraço,

Marina Dias
Diretora de comunicação da Agência Pública

 

Tropa bolsonarista acua Motta enquanto jornais apertam Moraes
Sentada na cadeira da presidência da Câmara, com uma tiara de flores nos cabelos loiros e roupas brancas, a catarinense Julia Zanatta (PL) exalava santidade com a filha de 4 meses no colo, impedindo qualquer tentativa de remoção da ocupação ilegítima. O clima estava tenso naquela noite de quarta-feira (6) quando, finalmente, Hugo Motta (Republicanos) resolveu retomar seu posto em sessão marcada para às 20h30.

Zanatta não foi a primeira a destronar simbolicamente o deputado Hugo Motta, enquanto o incauto presidente visitava alegremente obras no município de Patos (PB), governado há décadas por sua família. Nos dois dias de “obstrução física” do plenário - ou seja, “na marra” - deputados do Novo e do PL se revezaram na ocupação da Mesa. Com os rumores de intervenção da Polícia Legislativa para acabar com a baderna, a bebê era o escudo.

Motta chegou ao plenário perto das 22 horas, depois de negociações mediadas pelo deputado Arthur Lira (PP-AL), mas ainda teve que esperar um bom tempo para Marcel van Hattem (Novo-RS) ceder o lugar. Cercado por bolsonaristas e gritos por anistia, enquanto a maioria dos deputados pediam em coro do plenário para que eles descessem dali, Motta enfim fez um discurso breve, que só não foi totalmente irrelevante por ter sido proferido do assento presidencial retomado. 

Van Hattem disse à repórter Bela Megale que só levantou da cadeira de Motta depois que os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Zucco (PL-RS), segundo ele responsáveis pelas “tratativas que estavam costurando com os líderes do PP, União Brasil e PSD”, garantiram que o acordo havia sido firmado. “A anistia e fim do foro privilegiado passam a ter apoio do PL, Novo, União PP e PSD”, disse Van Hattem, versão que não destoa muito do que foi apurado pela repórter Thais Bilenky, de que Motta teria liberado o centrão para negociar a anistia aos golpistas de 8 de janeiro.
 Na quinta-feira (07), Motta negou ter incluído a anistia no acordo e prometeu até punir os que participaram do motim, mas o fato é que apesar de recuperar o posto e ganhar até um pedido de desculpas do deputado Sóstenes Cavalcante, um dos líderes da tropa de choque, o presidente da Câmara perdeu autoridade;
o foro privilegiado, prerrogativa do Supremo Tribunal Federal (STF), está em risco; e a anistia, embora impopular, voltou às manchetes no momento em que o presidente dos Estados Unidos pune comercialmente o Brasil e joga a Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes, sob protesto de organizações internacionais de direitos humanos. 

Eduardo Bolsonaro, o filho 03, com estadia nos Estados Unidos financiada por confessos 2 milhões de reais do pai e ainda deputado, embora tenha ultrapassado seu período de licença na Câmara dos Deputados, voltou a fazer ameaças. Desta vez, com novas sanções de Donald Trump, agora contra os presidentes do Senado e da Câmara, caso não coloquem em votação a saída de Alexandre de Moraes (!) do STF e a anistia dos golpistas - de olho no livramento do pai. 

Na mesma semana, tornou-se visível a virada da chamada grande imprensa, aquela que concentra o PIB no setor da comunicação, que até então posava de patriota. Enquanto a Globo batia na tecla de que Lula estava sendo teimoso e deveria ligar para Trump, apesar das evidências de que o presidente americano não apenas não pretende conversar como faz exigências políticas humilhantes para o Brasil, os jornalões, liderados pela Folha de S.Paulo, passaram a espinafrar Moraes, alegando que ele teria ferido o direito de “livre expressão” de Bolsonaro ao impedir o uso das redes sociais pelo ex-presidente. 

Não vou aqui avaliar juridicamente as decisões de um ministro do STF, apoiado pelos colegas como mostrou a incisiva entrevista de Gilmar Mendes. Também não pretendo julgar os posicionamentos ideológicos de veículos de comunicação. Mas vamos lembrar que Moraes já havia proibido o uso das redes pelo ex-presidente, antes de decretar a prisão domiciliar de Bolsonaro por infringir medida cautelar, sem provocar a mesma indignação. Aliás, entre os juristas, há aqueles que concordam e os que discordam desta decisão, o que recomenda cautela ao emitir juízos taxativos sobre o suposto abuso de Moraes. 
 Fica a pergunta: será a vontade de enfraquecer Lula, com a popularidade aumentada pela dignidade sustentada diante da agressão anti-democrática de Donald Trump, ou o receio de perdas econômicas para si e para anunciantes provocadas pelo tarifaço, que atingiu o agro em cheio, que comoveu os empresários da comunicação?
Condenar enfaticamente Moraes no momento em que um presidente de um país estrangeiro ataca o ministro por levar adiante um processo recheado de provas - como a própria imprensa reconhece - contra um ex-presidente que tentou dar um golpe de Estado no país não pode ser apenas irresponsabilidade. É intenção. 

O histórico dos “democratas” da comunicação em defesa do golpe de 1964, apoiado pelos Estados Unidos, não recomenda a credibilidade dos defensores da “liberdade de expressão” nesse momento. Menos ainda quando se unem à extrema direita, dentro e fora do Brasil, para questionar o STF e a postura altiva do governo brasileiro diante de Trump. Nós já vimos esse filme, e ele não acaba bem. 


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 

terça-feira, 5 de agosto de 2025

 

Quem estimula a violência policial em São Paulo?
Jornalista da velha guarda, gosto de acompanhar o noticiário na TV e no rádio para saber que informações a população recebe de veículos que ainda alcançam milhões de pessoas com coberturas que também servem de matéria-prima para as redes sociais – ainda que muitas vezes com distorções ou deturpações. 

O que só aumenta o valor do jornalismo como referência de informação segura e de qualidade, essencial para o debate público democrático. Por isso é tão preocupante observar que também esses veículos estão sujeitos a vieses e sensacionalismo no noticiário, ferindo a credibilidade do jornalismo e prejudicando o debate público. 

Em nenhum campo isso é mais visível do que na cobertura policial, em que a busca pela audiência em um país com altas taxas de criminalidade faz o jornalismo leniente com a polícia ignorando o básico: em 2024 a polícia matou 6.413 pessoas, de acordo com a edição mais recente do anuário do Fórum de Segurança Pública. 

Embora esses índices tenham se reduzido em 3,1% em níveis nacionais, os números, ainda escandalosos, dispararam em alguns estados, como São Paulo, com 813 vítimas da polícia, o que representa uma alta de 61% (isso mesmo!) de 2023 para 2024. Pior: o recorte racial do estudo mostra que as chances de uma pessoa preta ou parda ser morta pelas polícias é 3,5 vezes maior do que uma branca. 

Desde que Tarcísio de Freitas assumiu o governo do estado, tendo como secretário de segurança Guilherme Derrite, um ex-PM orgulhoso das mortes praticadas em serviço, as taxas de violência policial vem crescendo, com sucessivos casos de abuso policial contra inocentes, incluindo crianças e adolescentes – em fevereiro deste ano, a Pública revelou que houve um aumento de 13% nas mortes dos mais jovens em ações policiais. 

Por isso me chamou a atenção o noticiário do SPTV 2, da Rede Globo, no dia 10 de julho passado, em que a cobertura de protestos em Paraisópolis, depois de uma operação policial, dominou o programa sem esclarecer porque as pessoas – acusadas de vandalismo pelo âncora do jornal – estavam botando fogo em caçambas usadas em barricadas. A revolta escalou para a abordagem de motoristas, estas feitas por um pequeno grupo, que tiveram os carros depredados, fazendo subir o tom dos comentários do âncora enquanto eram exibidas as imagens captadas pelo helicóptero da TV.
 Esperei em vão que o jornal apontasse os motivos para indignação violenta de parte da comunidade: só foi informado que uma operação policial havia prendido 3 pessoas e matado um homem, enquanto o âncora clamava pela presença do batalhão de choque nas ruas ainda cheia de gente. Para o SPTV aquilo era obra de “vândalos”, “bandidos”, sem necessidade de justificativa. 
No dia 14 de julho ficamos sabendo o que detonou a reação popular quatro dias antes. Durante a operação policial, quatro PMs invadiram a casa de um morador de Paraisópolis atrás de “suspeitos” e executaram Igor Oliveira de Moraes Santos, 24 anos, que já estava rendido – como mostrou inadvertidamente a câmera corporal de um dos policiais. “As COP, as COP”, gritam os policiais assustados logo após matar Igor, referindo-se às câmeras operacionais portáteis (COP), como aparece na mesma gravação. 

As imagens mostram um dos PMs disparando duas vezes contra Igor, que estava ajoelhado e encostado em uma parede de mãos para o alto. Ele cai no chão. Segundos depois, o policial manda que ele se levante. Enquanto ele se ergue, o agente faz outro disparo. Outro militar também atira em seguida. Igor está morto. 

Um crime que poderia ter passado em branco não fosse o descuido de um dos policiais. Inimigo das câmeras corporais desde a campanha eleitoral, embora o uso dos equipamentos seja considerado pelos especialistas também uma proteção para os policiais, Tarcísio, pressionado pelo STF, implantou o sistema, mas com um novo modelo em que a câmera é acionada pelo próprio agente policial (o sistema anterior era automático). 

As gravações da execução de Igor só foram feitas porque um dos policiais não percebeu que havia ligado o equipamento, que acionou também as câmeras dos colegas pelo sistema bluetooth, como reconheceu o coronel Edson Massera, chefe de comunicação da PM, ao anunciar a prisão dos policiais. De posse das imagens, o Ministério Público ofereceu denúncia contra os quatro PMs – dois deles por atirar em Igor e os outros dois por apresentar versões do crime que contrariam os registros das câmeras corporais. 
 Com o caso esclarecido, fica a pergunta: a quem serve a insistente difamação de moradores das comunidades, apoiada em uma cobertura feita sem nenhum contato com os moradores nem questionamento à polícia, instigando à população contra supostos “vândalos” e “bandidos” antes mesmo de apurar a totalidade dos fatos?
Sim, houve violência nos protestos. Mas ela tem história, como revela reportagem da Agência Pública publicada nesta semana, em que moradores relatam o recrudescimento da violência policial na gestão Tarcísio, que acabou com uma das poucas diversões do lugar, os bailes funk, que já haviam sido alvo de um massacre da PM em 2019, com nove mortes. 

Há menos de dois meses da execução de Igor, um jovem negro desarmado foi morto pela PM, também em Paraisópolis. Nicolas Oliveira tinha 19 anos e foi alvejado com quatro tiros de fuzil na mão esquerda, braço direito, cintura e perna esquerda. Segundo os moradores, a PM atrapalhou o socorro médico, e o jovem chegou morto ao hospital. 

Outra vez a revolta da comunidade explodiu, com o fechamento de avenidas por barricadas; mais uma vez o batalhão de choque foi enviado, disparando tiros de balas de borracha contra a população. “Paraisópolis está revoltada, Nicolas era um menino legal”, explicou um de seus familiares à Ponte Jornalismo. 

Por mais que aprecie o governador Tarcísio, candidato às eleições em 2026, a imprensa não pode esquecer que sua gestão é responsável pela “Operação Verão”, a mais letal da história do estado desde o massacre do Carandiru (1992). Antecedentes que deveriam ao menos ter alertado o SPTV para os riscos de uma cobertura ao vivo, sem apuração, sobre um tema tão complexo e importante para democracia como é a segurança pública

*

Essa é a edição 400 desta newsletter. Agradeço de coração aos que leem, comentam e compartilham essas modestas reflexões sobre o país que amamos e acreditamos ser capaz de se tornar menos injusto e desigual. É o que me faz seguir adiante na companhia preciosa de vocês!


Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
marina@apublica.org 

 

Desmatamento em propriedade rural entra na conta de emissões do agro


O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima divulgou na sexta-feira passada (18) o plano do governo para que o país reduza a sua contribuição com o aquecimento global. Foi anunciada a chamada estratégia nacional de mitigação e sete planos setoriais, que fazem parte do Plano Clima. 

Com inovações na forma de contabilizar quanto de emissão cabe a cada setor da economia, o plano foca bastante na redução por parte das atividades agropecuárias do país, mas ainda deixa a desejar na parte de energia, setor para o qual ainda é prevista a possibilidade de aumento das emissões.

Em novembro do ano passado, às vésperas da COP29 (Conferência do Clima da ONU, realizada em Baku), o Brasil anunciou uma nova meta climática, se comprometendo a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa entre 59% e 67% em 2035, na comparação com os níveis de 2005. 

Foi uma atualização da chamada NDC, ou Contribuição Nacionalmente Determinada, apresentada pela primeira vez em 2015, quando foi adotado o Acordo de Paris – compromisso mundial de combate às mudanças climáticas. Espera-se que neste ano, todos os países que fazem parte do acordo atualizem suas metas.

Na ocasião, porém, não foi dito como a nova meta seria alcançada, nem qual seria a parte de cada setor da economia. É isso que o governo propôs agora – um documento que ainda pode mudar um pouco porque vai para consulta pública. 

Essa estratégia traz uma inovação muito interessante ao, pela primeira vez, contabilizar como parte do setor de agricultura e pecuária também as emissões provenientes de desmatamento que ocorre dentro de áreas agrícolas.

No inventário oficial de emissões do país, que segue metodologia internacional definida pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), todo o desmatamento do país é contado dentro da categoria de mudança do uso da terra – independentemente de onde esse desmatamento ocorre. E essa é a nossa principal fonte de emissões de gases de efeito estufa. Cerca de metade do que foi emitido pelo país em 2022 foi por desmatamento. 

Agropecuária aparece como a segunda principal fonte, considerando somente as emissões diretas do setor, provenientes da fermentação entérica do gado, da remoção do solo para plantio e do uso de fertilizantes, por exemplo.

O que a estratégia de mitigação faz é tentar apontar os responsáveis pelo desmatamento, a fim de contê-lo – lembrando que a meta principal do país é zerar a perda florestal até 2030. E é aí que a coisa começa a ficar interessante. Porque, ao fazer essa contabilidade, as emissões ligadas à agricultura e a pecuária sobem bastante. O setor se torna o primeiro em emissão no país, respondendo por 68% de tudo o que foi emitido em 2022.

Ainda levando em conta essa data como referência, o país como um todo promete reduzir, no cenário mais ambicioso, 58% das emissões nacionais até 2035. Coube ao setor de agricultura e pecuária a maior fatia – uma meta de redução de 54% das emissões. 

Já antevendo a chiadeira do agronegócio sobre esses dados, fui conversar com o Aloisio Melo, que é o secretário de Mudança do Clima e a pessoa à frente da estratégia de mitigação. Ele explicou que a ideia foi justamente considerar o “agente responsável” pelo desmatamento – ou seja, dar mais clareza sobre a responsabilidade pelo problema. O que faz bastante sentido, visto que esse é um plano que tem como objetivo orientar políticas públicas para conter essas emissões.

E isso incluiu uma outra inovação. Foram considerados como área agrícola, para fins de estabelecer as metas do plano setorial de agricultura e pecuária, não apenas os imóveis rurais privados, mas também os assentamentos de reforma agrária e áreas quilombolas. 

Fui ouvir o Rodrigo Lima, que é sócio-diretor da Agroicone, uma consultoria voltada para o desenvolvimento sustentável do agro, e ele disse achar essa estratégia um pouco injusta porque vai jogar um peso muito maior sobre o agronegócio.

Por que, perguntei para ele? “É que assentamento e área quilombola são terras públicas, ou seja, a gestão é pública, da União e do Incra. Então alocar as emissões que ocorrem dentro dessas áreas como sendo da agropecuária é uma escolha política, não técnica”, disse Lima.

Insisti nisso com o Aloisio Melo e ele discorda. “Os assentamentos são destinados à atividade produtiva. A rigor, sim, eles são áreas públicas, federais ou estaduais, mas elas são destinadas à atividade agropecuária. Por isso se entendeu que faria mais sentido agregar isso dentro do plano setorial de agricultura e pecuária”, explicou.

Como o objetivo é pensar em políticas públicas para a redução das emissões, elas têm de ser pensadas no contexto dos instrumentos de incentivo, de financiamento a todo o setor, com articulação entre os ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário. 

Entre os planos setoriais há um outro focado em desmatamento e restauração florestal, que foi chamado de Conservação da Natureza. Ele foca nas áreas públicas que são destinadas à proteção ambiental, como terras indígenas e unidades de conservação, e também nas áreas públicas não destinadas, onde há ainda um vazio fundiário. Desmatamento que ocorre nessas áreas conta para este setor, dentro da gestão do Ministério do Meio Ambiente.

Para Lima, “alocar as emissões de desmatamento em assentamento para agropecuária é legalmente questionável” e ele já antevê que vai ser objeto de debate. O plano vai entrar em consulta pública na terça que vem, dia 28, para receber comentários e só depois sai a versão final, mas eu também já imagino que vai abrir uma nova queda de braço com o agro.

Plano de energia ainda permite aumento de emissões

Para finalizar, vale a pena também falar do plano setorial para energia, que prevê ainda uma certa estabilidade de emissões no plano mais ambicioso (com um aumento de 1%), mas podendo chegar a uma alta de 44% na margem menos ambiciosa do plano. Isso até 2035, bem o período que o Brasil estima que ainda vai aumentar a sua produção de combustíveis fósseis. A estratégia prevê neutralidade de carbono para 2050.

“O Brasil, que tinha 88% de renováveis em 2024, poderá cair para até 82,7% em 2030 e, mantido esse patamar até 2035, estará regredindo em vez de liderar”, aponta uma análise feita pelo Instituto Talanoa sobre os planos setoriais. 

“A justificativa? Eventos climáticos extremos podem exigir maior uso de térmicas fósseis. Em outras palavras: a crise climática causada pelos fósseis pode ser motivo para… usar mais fósseis. Um paradoxo perigoso”, alerta a organização.


Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental

 

Jornalistas americanos relatam pressão crescente

Nenhum de nós imaginaria, mas há algumas semanas estive em um encontro fechado onde jornalistas latinoamericanos ouviram como seus colegas dos Estados Unidos estão sofrendo pressões apenas por realizar o seu trabalho. A ideia do encontro, realizado pela Center for Media Integrity in the Americas (CMIA) e a Fundação Gabo, era reunir experiências sobre como a comunidade jornalística dos EUA deve se organizar para resistir ao crescente autoritarismo do governo Trump.

Duas palavras foram as mais ouvidas: “autocensura” e “negação”. Em um país que ainda hoje tem como ideologia fundamental o excepcionalismo – a ideia de ser o melhor e mais livre país do mundo – é difícil mesmo entre jornalistas a aceitação de que aquela democracia está indo para o beleléu.  

Os relatos reunidos pelo CMIA dão conta de um ambiente de medo dentro das redações. Um questionário respondido por 400 jornalistas concluiu que 45% deles disseram já ter se autocensurado alguma vez, enquanto outros 9,1% disseram que se autocensuraram “um pouco”. 

Um produtor de um canal internacional deixou claro que um dos temas mais sensíveis era o genocídio em Gaza. “O tema é abordado de forma indireta”, disse. “Eu tenho que me censurar também. Sei que não posso tocar nesse tema da forma como costumava fazer antes.” 

Dentre as palavras mais usadas pelos respondentes estão “prudência” “cuidado” e “evitar represálias”. 

Outro produtor de uma TV importante relatou como, depois de um processo iniciado por Trump, a pressão tem sido enorme sobre os jornalistas. Foi implantado, inclusive, um sistema de monitoramento: todos os roteiros do seu programa têm que passar por uma revisora. “A direção quer ditar o que podemos cobrir ou não”, disse. “Em todos os meus anos neste programa, nunca havia visto algo assim”. 

Muitos canais de TV e jornais têm sido alvo da cólera de Trump. O mais recente foi o Wall Street Journal, que pertence ao empresário australiano Rupert Murdoch, processado pela bagatela de 20 bilhões de dólares por ter publicado uma carta que Trump teria enviado a Jeffrey Epstein, com o desenho dos seios de uma mulher e referência a “segredos” entre os dois. Antes disso, Trump já processou os canais ABC e CBS, conseguindo acordos milionários. 

Há algumas semanas, Trump anunciou um corte de mais de 1 bilhão de dólares em fundos para os principais canais públicos, como a TV PBS e a Rádio NPR. 

Para os jornalistas presentes, Trump está segundo um “manual anti-imprensa” que já foi adotado muitas vezes por regimes repressivos latino-americanos, sejam de esquerda ou de direita. Ele consiste em travar uma guerra jurídica contra veículos, desmantelar os canais públicos que tinham independência, pedir a cabeça de jornalistas incômodos e atacar permanente e violentamente sua reputação. 

Não há dúvida: Trump quer destruir o jornalismo.

Infelizmente, como relataram os latino-americanos presentes, isso é um roteiro muito conhecido. Na Venezuela, muito antes de jornalistas serem encarcerados ou forçados ao exílio, amigos do governo chavista compraram os principais canais de TV e jornais de maneira a impedir qualquer cobertura crítica. Na Nicarágua, o que antes eram ataques apenas à liberdade de imprensa passaram, de maneira mais consistente, a serem ataques à liberdade de expressão. Hoje, ninguém pode retuitar uma postagem de um site crítico ao governo, por exemplo. A repressão tem sido tão pesada que mesmo ONGs e partidos não podem mais falar abertamente. “Isso dificulta muito o jornalismo”, disse um diretor de TV. “Porque é difícil, inclusive, encontrar quem possa ser fonte de informação sem deixá-los em risco.” 

Um dos alvos de Trump foi o Voice of America, canal inicialmente de rádio que serviu muito ao soft power americano durante a Guerra Fria, transmitindo informações para Cuba e outros países que os EUA queriam desestabilizar. 

Nas últimas décadas, o Voice of America havia se tornado uma espécie de BBC, um serviço de informações com reportagens internacionais de fôlego em 50 línguas e um jornalismo mais independente. 

O canal foi fechado por Donald Trump em março. Antes disso, a Casa Branca publicou uma Ordem Executiva anunciado os motivos para a decisão, chamando o serviço de “a voz da América radical”. O crime: além de ter questionado a história dos e-mails vazados de Joe Biden, o canal teria usado expressões como “privilégio branco” e “publicou uma reportagem sobre migrantes trans buscando asilo nos EUA”. 

Um dos maiores correspondentes de guerra brasileiros, Yan Boechat, trabalhava frequentemente como repórter freelancer para o Voice of America antes do fechamento. Segundo ele, a situação dos jornalistas estrangeiros que trabalhavam para o serviço em solo americano é péssima. “Muita gente de países com relação complicada com os Estados Unidos, como a Rússia, Belarus, China, Irã tinham apenas visto de trabalho e terão que voltar”. 

Já os americanos “ficaram desempregados, estão na luta para sobreviver e há alguns que, por questões burocráticas, ainda não foram desligados, mas não trabalham mais”. 

Acho que o que mais dói para muitos de nós foi entender que o tipo de cobertura que a gente fazia tá acabando e que trabalhar num veículo como a VOA era um imenso privilégio por se ter a chance de ir aos lugares mais difíceis e realizar as coberturas mais complicadas no mundo”, diz ele. 

Boechat também diz que sempre teve total liberdade para fazer jornalismo de qualidade quando trabalhou lá.  

“Eu mesmo, quando fiz meu primeiro freela , fiquei morrendo de medo de ser algo só propaganda rasteira. Mas nunca tive isso. Sempre foi jornalismo. Acho que essa foi a razão que moveu Trump a destruí-la com tanta violência ”.

Para os jornalistas norte-americanos, seus colegas da América Latina tinham alguns conselhos valiosos. O primeiro, da Venezuela, tem a ver com a importância dos sindicatos para proteger a profissão – algo que não tem tradição nos EUA. “Só sobrevivemos por muito tempo na Venezuela porque os sindicatos existiam”, disse uma repórter. Na Colômbia, durante os anos mais duros da guerra civil, uma jornalista veterana disse que o maior ensinamento foi que “nos toca defender a democracia, assumir uma linha de combate”. 

É a mesma visão de uma jornalista de televisão mexicana, também preocupada pela situação dos EUA. “Que eles não duvidem: o que está em jogo é a democracia e as liberdades. Tudo isso que se construiu por décadas pode ir-se em um segundo”, alertou. “ As liberdades e os direitos fundamentais não estão garantidos nunca ”. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública