terça-feira, 29 de abril de 2025

 

40 anos de reconstrução democrática: avanços, riscos e o muito por fazer

Para Glauber Braga, deputado federal fluminense de esquerda, ameaçado de cassação política pelo chorume da politica nacional, o consórcio fascismo/neoliberalismo/centrão

Publicado em 28/04/2025

A primeira leitura do quadro brasileiro de nossos dias leva analistas da vida política a reduzir o avanço da extrema-direita nativa a simples sintoma de uma tendência mundial, assim desapartado do processo histórico nacional. Ora, o fenômeno político não habita as nuvens. Se a história fosse apenas isso, ela estaria morta, pois nada mais haveria por fazer. A anomia política se alimenta nesse refrão, que, ademais, pacífica a consciência dos que resistem ao combate. É incontestável estarmos em face de fenômeno (avanço fascista) que se espalha em plano mundial, como foi a emergência do fascismo histórico nos anos 20 e 30 do século passado. Mas esta não é a história toda, pois, ademais de desconhecer as diferenças passadas e presentes das experiências fascistas (determinadas pela diversidade histórica de cada país), desconhece também a resistência antifascista diferenciada, levada a cabo de forma igualmente diferenciada, segundo condições especificas. Reduzir a emergência da onda fascista que nos aflige a simples manifestação de um fenômeno mundial, exilado da realidade brasileira, implica erro de método, e carrega consigo o risco de distorções estratégicas graves, como insinuar, para os que nada fazem, que não há mesmo o que fazer. E a história nos diz que a serpente de há muito escapou do ovo

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Todas as forças ideológicas fortes do século passado – liberalismo, comunismo, fascismo-- foram matrizes que conheceram o traço das influências nacionais.

Entre nós, a extrema-direita/fascista teve seu debut nos anos 30 do século passado, vestida de integralismo, a versão cabocla de um autoritarismo que Plínio Salgado fôra colher na Itália de Mussolini. Esse fascismo e o getulismo, que afinal o rejeitou, estreitaram relações no Estado Novo, caminhando para o rompimento sem volta com o putsch de 1938. A queda de Vargas em 1945 ensejou o ciclo democrático, que aos trancos e barrancos chega a 1964, quando se instala a ditadura militar que formalmente sai cena em 1985, abrindo caminho para experiência democrática cunhada como Nova República.

A história não registra milagres, muito menos o reino do acaso, e assim, os fatos não deveriam surpreender. Mas foi com surpresa que recebemos os idos de 2013, anunciantes de um processo despercebido pelos sismógrafos. A ameaça fascista dava seus primeiros sinais e o que se segue é história recente e conhecida: a difícil reeleição de Dilma Roussef em 2014 e a transição da social-democracia para a direta, e, ao fim e ao cabo, o golpe parlamentar de 2016, o vestibular da história que se segue. A consolidação da irrupção fascista far-se-ia conhecer com as eleições de 2018 e os quatro anos do capitão Bolsonaro. A ascensão do fascismo caboclo fez-se segundo as regras do processo eleitoral, que antes, nunca será exagerado lembrar, asfaltara os caminhos de Mussolini e de Hitler. A extrema-direita encontrou-se com o apoio popular e se espalhou por diferentes setores da sociedade. Controla as duas casas do congresso, os mais ricos e mais populosos Estados da Federação.

Este é o ponto de partida para compreendermos a transição da sociedade brasileira, da aparente opção pelo progresso social (insinuado pela sequência de governos progressistas) à realidade de um projeto neofascista que ainda hoje comove parcelas significativas das grandes massas, suas vítimas preferenciais no curto, no médio e no longo prazo.

Variadas são as teses demonstrativas, ora de nosso substrato conservador autoritário, ora do fracasso tanto dos neoliberais quanto da centro-esquerda no enfrentamento dos problemas cruciais de nossas populações. No plano internacional, consideradas as significativas diferenças entre os atores, é temeroso pensar na identificação de uma causação. Na cesta das possíveis condicionantes devem constar a incapacidade de a social-democracia enfrentar os problemas colocados pelo neoliberalismo, bem como o agravamento da disputa da hegemonia em mundo que transita da uni polaridade para o multilateralismo, e que pode nos levar à terceira guerra mundial, se já não estamos nela.

Não se trata, porém, a opção reacionária, de raio em céu azul, senão de fenômeno recorrente mesmo em nossa história imediata, como atesta a mais superficial leitura das dores políticas do século passado, com seu rol de insurgências: o “Estado novo”, a ação integralista nos anos 30, e amotinações, intentonas e sedições, golpes parlamentares e militares e ditaduras, o regime de terror instalado em 1º de abril de 1964.

Não vimos ou nos recusámos a ver o que estava sendo gestado em 2013 (por seu turno um ponto de referência sem autonomia histórica), nem percebemos os avisos da difícil eleição de 2014, e muito menos consideramos o processo de nossa formação, feitoria e depois colônia que se fez país ainda sem povo, sem sociedade e sem nação, assim, sem projeto de ser, sem um destino por perseguir. Um império que conservou a estrutura colonial, uma independência que não logrou a autonomia, uma república que consagraria o governo da lavoura e o mandonismo dos régulos.

Recebemos o golpe de 2016 – um corte no processo político que supúnhamos consolidado desde a redemocratização de 1985/1988–, como fato consumado, e chegámos aos tempos de hoje condenados ao agrarismo primário-exportador de nossas origens coloniais, condenadas as esquerdas ao papel de assistentes do processo social, porque não tivemos olhos para ver a crise do trabalho e as alterações do processo social produtivo, determinantes de novas relações econômicas e políticas. Ignoramos o pano de fundo da história contemporânea, e assim tivemos dificuldades, ainda não superadas, de compreender os fatos dos quais deixamos de ser agentes. Hipnotizados pela aparência do processo político que sugeria o avanço das forças progressistas e a consolidação democrática, não nos demos conta das implicações do desenvolvimento do capitalismo financeiro em sua fase monopolista, desconsideramos a vitória política do neoliberalismo, não cogitamos da dependência político-ideológica das economias periféricas, e, em suas pegadas, não vimos o papel do imperialismo, imprimindo o caráter das transformações geopolíticas, alterando o xadrez de uma ordem internacional que se constituía à revelia dos axiomas deterministas que nos diziam que o progresso social era uma das leis da história.

Assim, não cuidámos do avanço do passado sobre o presente, convencidos de que o futuro era uma certeza inexorável, mas a história que nos prometeram na juventude parecia se afastar de nossas vistas, assim como a linha do horizonte foge do navegador. Aos trancos e barrancos, ao peso de muitas derrotas, como a de 1964, e algumas vitórias, como a notável vitória eleitoral de 2002, chegamos ao desastre de 2018, às dificuldades de 2022 e à intentona de janeiro de 2023, para só agora nos darmos conta do processo regressista. De todos os temores, o mais assustador é a perspectiva presente de avanço do projeto neofascista.

Nada obstante os sonhos frustrados de antiga esquerda que sonhou com uma aliança entre interesses de classe irreconciliáveis, a burguesa aqui habitante se faz cega em face da nação, e vê, no que supõe ser o povo, um empecilho aos seus interesses, por isso se embala na sempre presente expectativa de uma ditadura que “ponha ordem no país”. Daí conhecermos tantos golpes e tantas tentativas de golpes de Estado. A intentona de 2023 não é um fato isolado e a história não terminou.

Com essa consciência, a classe dominante brasileira, alienada e alienígena, construiu as forças armadas do Estado brasileiro, seu braço forte instrumentalizado para fazer valer o mando de 1% dos ricos e muito ricos sobre uma população de cerca de 212 milhões, dois terços dos quais se podem contar como “condenados da terra”. As forças armadas se supõem fruto delas mesmas e se tornaram uma necessidade em face da concepção de país formada pelos interesses dominantes. Desde o império foram moldadas para a sustentação da ordem interna (antes o escravismo e o latifúndio, uma unidade), hoje o capitalismo retardatário e dependente, cuja sobrevivência mais carece do empenho repressivo quanto mais é iníquo.

Daí o desinteresse da classe dominante pela independência industrial, pela autonomia política e econômica, o desinteresse mesmo com as questões de segurança nacional; daí a vinculação da caserna ao papel fundamental da defesa dos interesses do capitalismo nos planos nacional e planetário, o que nos vincula aos interesses e aos jogos do imperialismo, mesmo em sua atual, marcada por uma decadência aparentemente sem recuo.

Essa subordinação desvincula o país de qualquer expectativa de autonomia, econômica, política, científica, ideológica.
Assim, talvez se explique o mando de uma classe dominante destravada do desenvolvimento nacional, e, no entanto, governante e crescentemente internacionalizada, na medida em que é mais e mais financeira, como exemplifica a Faria Lima, o altar de uma burguesia anti-industrialista e antidesenvolvimentista, e, assim, mais dependente de Washington e do Pentágono, de Wall Street e da City de Londres.

No império escravagista, na república em seu capitalismo de periferia, a natureza do mando não se altera.

Essa burguesia alimenta seus interesses na especulação do grande capital, e se associa ao agronegócio-primário-exportador, que é, por definição, uma dependência do mercado internacional. Somos, no século da inteligência artificial, o que sempre fomos: uma economia dependente. Saem da pauta as pedras e o ouro, e nossa balança comercial continua à mercê da exportação de produtos primários com o mínimo de valor agregado; exportamos minério in natura e recebemos de volta ligas de aço. Importamos manufaturas, mas exportamos o frango, a carne, a soja, o feijão, o milho, as matérias-primas requeridas pela Europa esgotada, ou por uns EUA que protegem suas reservas com a imposição de taxas alfandegárias predatórias. Saiu da pauta o pau-brasil, extinto, mas segue a depredação: vão-se as matas em forma de comodities e, liderando as pautas de exportação, escreve-se uma extensa listagem de grãos e alimentos que escasseiam no mercado interno, dando sua inefável contribuição para o processo inflacionário que se instalou com pompa e circunstância na mesa dos pobres. Enquanto quase 20 milhões de pessoas passam fome ou são mal alimentadas, somos um dos maiores, senão o maior exportador de proteínas do mundo.

É esse o pano de fundo que explica nossa história de hoje. Mas há espaço para o registro da esperança. Independente de nossas limitações e de nossas circunstâncias, de povo e país, o processo social avança, e o sintoma mais claro é a decisão política de, finalmente, impor-se algum recesso à conciliação, nosso mal de origem que sufoca as expectativas de progresso, porque sempre transacionada pela classe dominante. Seu objetivo é blindar o statu quo, espancar a ruptura e impedir a mudança. São hoje os ventos soprados por um insuspeitado STF, e pela exposição de corpo inteiro do estágio de decomposição a que chegaram as forças armadas, pelo braço de seus generais. São, porém, apesar de notáveis, avanços circunscritos ao campo da política e da institucionalidade, carentes de consolidação, porque até aqui se fazem à margem da vida social. É preocupante a ausência da vontade nacional, que, assim, renuncia ao papel de sujeito histórico, exatamente quando o que está em jogo é a sobrevivência da democracia, ameaçada pelo fascismo, que já nos disse a que veio e o que pretende.

Já é hora de nos perguntarmos quais “circunstâncias e condições” respondem por esse mostrengo responsável pela produção nativa do bolsonarismo, o chorume do baixo clero político parlamentar que, no entanto, comanda o Congresso e dita as regras com as quais, para sobrevier, nosso governo, nascido das urnas e na contestação à ordem proto-fascista, é ungido a negociar, consagrando a má herança da conciliação pelo alto.

O antídoto à anomia é a organização da sociedade.

 

Harvard enfrenta Trump  

Demorou, mas finalmente assistimos a uma instituição de peso enfrentar os abusos do governo americano. Na semana passada, a Universidade de Harvard, a mais rica e poderosa do mundo, decidiu não apenas desobedecer às ordens tresloucadas de Donald Trump, mas também processá-lo judicialmente. 

Citando “falha em combater o antisemitismo no campus”, o governo havia feito uma série de exigências que incluíam fazer auditoria de todos os professores para verificar casos de plágio, dedurar para o governo todos os estudantes internacionais e aceitar que houvesse um bedel externo encarregado de garantir “diversidade de pontos de vista”. Com a recusa, o governo foi pra cima: estabeleceu um congelamento em 2,2 bilhões em repasses para pesquisas e iniciou investigações contra a universidade. Ameaça, ainda, retirar o certificado de empresa sem fins de lucro e proibir que a universidade aceite estudantes internacionais, que dependem de vistos federais.

São ações absolutamente chocantes, dignas de países que descambam para ditaduras aqui no nosso continente, como ocorreu na Venezuela, onde o chavismo levou anos para controlar as universidades que serviam de resistência ao endurecimento do regime. Trump, que já avisou que quer romper a Constituição e ser presidente por um terceiro mandato, adianta-se à resistência democrática que costuma vir dos estudantes. 

Na demanda judicial, a direção de Harvard exige o descongelamento dos repasses e acusa o governo de buscar “ganhar o controle da tomada de decisões acadêmicas em Harvard”. Antes de fazer reprimendas, o governo federal deveria, segundo a lei, trabalhar junto com a universidade e não contra ela. O presidente da instituição afirmou em comunicado aos alunos que acatar a ordem levaria a um controle “sem precedentes e inadequado” que teria consequências “severas e duradouras”.
 
Mas ele vai além, relembrando que, como judeu, sabe da importância de combater o antissemitismo, mas relembra, também, que “ninguém em nossa comunidade deve sofrer preconceito ou intolerância”. Relembrando isso, o presidente conta que estabeleceu, ao mesmo tempo, uma Força-Tarefa de Combate ao Antissemitismo e ao Preconceito Anti-Israel e também uma Força-Tarefa para Combater o Preconceito Anti-Muçulmano, Anti-Árabe e Anti-Palestino. Os resultados são “dolorosos”, escreve. 

É digno de nota que uma universidade como Harvard – que em 2024, em meio a protestos anti-genocídio, sofreu tanto abuso e assédio de grupos judaicos de extrema-direita que forçou a sua última reitora, a acadêmica Claudine Gay, mulher negra com carreira de enorme prestígio, a pedir demissão do cargo mais cobiçado da academia americana – tenha se colocado contra a maré alucinada, censora e protofascista que tem tomado conta das universidades americanas. 

Quando eu estive em Harvard pela última vez, no ano passado, o que se via no campus era exatamente o oposto do que acusa o presidente Trump. Ao redor da Harvard Square, principal praça de convívio da comunidade, um carro branco rodeava, carregando sobre o teto uma enorme placa com o rosto e o nome de estudantes de origem árabe que estavam envolvidos em protestos. Era época em que esses mesmos alunos entraram na lista de pessoas indesejadas em empresas listadas no “top 100” da Forbes, garantindo que jamais seriam contratados por elas. Outros foram demitidos de seus empregos apenas por participar de protestos denunciando o genocídio dos palestinos pelas mãos do Estado de Israel. Eu sabia disso, mas, mesmo assim, aquela visão do carro fazendo “doxxing” desses estudantes em tempo real me causou uma vertigem, seus rostos jovens sendo marcados como um X tremendo na testa por falar apenas a verdade.   

Em que mundo denunciar um genocídio que acontece diante de nossos olhos deve ser proibido? Em que mundo ele deve ser proibido com apoio de instituições acadêmicas que deveriam ser o epicentro do pensamento crítico? 

Quando eu escrevo esta newsletter, mais de 50 mil palestinos foram assassinados, um terço deles crianças, na sanha de vingança de Israel com amplo financiamento, armas e apoio moral dos Estados Unidos. Os números são subestimados, de acordo com um estudo da revista Lancet; no fim do ano passado, os cientistas já falavam em quase 65 mil mortos. 

Qual é o imperativo moral de uma universidade diante de uma realidade dessas? E qual é o papel de uma universidade diante de um governo autoritário? 

Harvard foi pelo caminho oposto de outras Universidades. Em 10 de março, o governo Trump enviou cartas a 60 faculdades e universidades que seu governo está investigando por suposto antissemitismo, ameaçando cortes de financiamento. 

Até aqui, o caso mais notório foi o da Universidade de Columbia, que se ajoelhou diante da ameaça. Aceitou proibir uso de máscaras nos campus, permitir a entrada da polícia para realizar prisões e ainda eliminou a liberdade acadêmica do Departamento de Estudos do Oriente Médio, Sul da Ásia e África (MESAAS), colocando sob a administração central em vez dos professores e alunos.   

Por lá, já havia uma grande campanha de professores judeus que aparentemente apoiam a política de extermínio do estado israelense. Apenas um mês antes, eles e mais de duzentos docentes haviam assinado uma carta elencando muitas das medidas exigidas depois pelo governo Trump. Entre elas, queriam que Columbia adotasse a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, para quem atacar o Estado de Israel é um ataque a todos os judeus. 

É mais ou menos o “Brasil, ame-ou deixe-o” da ditadura de 1964. A carta dos acadêmicos de Columbia traz ainda linguagem que vem claramente da direita radical. Em outra carta anterior, por exemplo, os mesmos professores denunciavam a “doutrinação antiocendental” no campus.
 
A sociedade americana já vive, assim, uma das piores consequências da decaída autoritária, algo que também conhecemos bem aqui na América Latina: a divisão interna, a vigilância por parte de quem ganha vantagens do regime, a ruptura de comunidades que antes trabalhavam unidas e a sedução do micro-poder. Como se dizia aqui durante a ditadura, o problema não são os generais, mas o empoderamento do guarda da esquina. 

Mas é óbvio que Donald Trump não poderia estar menos preocupado com o antissemitismo ou o bem-estar da comunidade judaica; ele quer apenas um pretexto, como mencionei acima, para controlar o livre debate e a organização política dentro dos campi, porque são justamente locais de resistência democrática por essência. 

Há um enorme vão entre as posturas de Columbia e de Harvard – que, com seu fundo patrimonial de US$ 53 bilhões tem o que é chamado de “fuck you money”, o tipo de dinheiro que te permite mandar qualquer um a merda. E a maioria das instituições de ensino estão no meio do caminho. No dia 22 de abril, mais de 400 presidentes de universidades responderam ao assalto trumpista com mais uma carta denunciando “o abuso de poder e interferência política sem precedentes do governo federal que ameaçam a educação superior americana”. 

Temo, entretanto, que a ida e vinda de cartas seja pouco, e que a sociedade americana segue iludida quanto à vitalidade do seu sistema, aguardando que a Justiça vá responder a todos os abusos do governo. Como resposta, no dia seguinte, Donald Trump emitiu mais uma de suas Ordens Executivas, exigindo que elas revelem todo financiamento internacional, uma exigência que já tinha sido feita pelo Departamento de Educação para a Universidade de Harvard. 

Como sabemos, o primeiro passo para se destruir um sistema democrático é a persistência. Com o tempo, a ditadura assusta, coopta, seduz e compra parte das forças que estabelecem os tais “pesos de contrapesos”. Pela rapidez estonteante de Trump, não é exagero predizer que já estejamos assistindo ao começo do fim da Constituição americana. Nada vai ser como antes.


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

quarta-feira, 23 de abril de 2025

 

Papa nos colocou um imperativo moral: precisamos cuidar da nossa casa comum


O papa Francisco, ao professar sobre a importância de combatermos o colapso climático global, o fez nos colocando diante de um imperativo moral. A crise do clima é também uma crise social, compartilhada entre todos os habitantes deste planetinha. "Tudo está interligado" e há uma "relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta", nos disse.

 “O clima é um bem comum, de todos e para todos”, escreveu na Laudato Si’, sua primeira encíclica e também a primeira mensagem de um papa a tratar das mudanças climáticas. O documento, raro em seu alcance e coragem, rompeu as paredes da Igreja e falou diretamente ao mundo – católico e não-católico. “Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos”, afirmou.

Lançada em maio de 2015, dois anos após Francisco iniciar o pontificado e alguns meses antes da Conferência do Clima da ONU de Paris, acredita-se que a encíclica acabou colaborando para construir o consenso que levaria os quase 200 países a fecharem o Acordo de Paris. Nesta segunda (21), em repercussão à morte do papa, o secretário geral da ONU, António Guterres, disse que a Laudato Si' foi "uma grande contribuição para a mobilização global que resultou no marco do Acordo de Paris". 

O documento papal articula um chamado que vai além da fé ao denunciar de modo lúcido a lógica que nos trouxe até aqui. “A mudança climática é um problema global com graves dimensões ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas”, escreveu. Para Francisco, não se trata apenas de ciência ou diplomacia: trata-se de justiça. De moral. De reconhecer que o que está em jogo não é apenas o planeta, mas a dignidade das pessoas que nele vivem.

"A redução de gases com efeito de estufa requer honestidade, coragem e responsabilidade, sobretudo dos países mais poderosos e mais poluentes", cobrou Francisco, lembrando que três anos antes, em 2012, a Rio+20 tinha produzido uma "declaração final extensa, mas ineficaz", como definiu. "As negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global."

Não à toa, portanto, que o documento foi muito aguardado também por ambientalistas e cientistas, que viram no papa um aliado insuspeito. Na época do lançamento da Laudato Si’, eu estava encerrando um período de estudos nos Estados Unidos e tinha ficado impressionada como, nos meses anteriores, tinha ouvido, de gente que eu jamais imaginaria, uma certa empolgação e expectativa pela mensagem papal. Já se sabia que ela teria como foco a crise ambiental e climática e foi produzida, inclusive, após consultar muitos cientistas.

"Quão bizarro é ter os cientistas mal podendo conter a ansiedade por um pronunciamento papal sobre uma questão que concerne à ciência, à cultura e à sociedade?”, me disse Naomi Oreskes, historiadora da ciência da Universidade Harvard. A pesquisadora desvendou e denunciou o mecanismo de negacionismo climático promovido pela indústria de combustíveis fósseis nos Estados Unidos com a ajuda de meia dúzia de cientistas mal intencionados. A entrevista foi publicada no Estadão, onde eu trabalhava na época.

"Cientistas são cientistas e eles não sabem como falar sobre questões culturais e morais. Não são treinados para fazer isso, não se sentem confortáveis fazendo isso. Eles falam em termos científicos: quantos graus celsius de aquecimento, quantos milímetros por década de aumento do nível do mar, mas isso não é uma maneira de falar ao coração das pessoas, de colocar o problema de uma maneira pessoal, emocional, econômica e social”, argumentou Oreskes. 

“O que o papa está fazendo vai muito além disso, porque ele está colocando em termos morais ao dizer que o que está acontecendo é uma injustiça. É algo que os cientistas não conseguem dizer, mesmo eles sabendo isso e seja algo com o qual eles se preocupam. E agora eles têm o papa para falar nesses termos", complementou.

Oreskes depois assinaria a introdução da versão em livro da encíclica, que chegou às livrarias americanas alguns meses depois. No texto ela afirma: “A essência da crítica (feita pelo papa) é que nossa situação não é um acidente – é a consequência da forma como nós pensamos e agimos. Nós negamos as dimensões morais de nossas decisões e confundimos progresso com atividade. Nós não podemos continuar a pensar e agir desse jeito, desconsiderando tanto a natureza quanto a justiça, e esperar prosperar com isso. Não é só amoral, não é nem mesmo racional”.

Entre as muitas bandeiras que levantou como papa, o argentino foi incansável em levar a mensagem, para além da primeira encíclica, de que é uma obrigação moral combater essa crise que nós mesmos criamos e que afeta desproporcionalmente os mais pobres, os mais desassistidos e todas as outras criaturas

Falando “ao coração”, desta vez principalmente dos religiosos, argumentava que cabe a nós não usufruir de modo desenfreado de sua criação, mas cuidar zelosamente dela para que continue existindo para nós mesmos e as próximas gerações. 

A expectativa era que sua voz ecoasse onde os gráficos não conseguiam chegar. Ele trouxe emoção e propósito ao discurso técnico. Deu ao colapso climático um nome ético: pecado contra a criação.

Em outubro de 2023, talvez já um pouco menos paciente com o pouco avanço de governos e das diplomacias nas cúpulas climáticas (as COPs do clima da ONU), publicou a encíclica Laudate Deum – “a todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática” – atualizando a carta de 2015. 

“O mundo que nos acolhe está se desmoronando e talvez se aproximando de um ponto de ruptura”, alertou. “Já não se pode duvidar da origem humana da mudança climática.” A linguagem era mais urgente, quase aflita. Francisco criticou abertamente o fracasso das COPs, o negacionismo travestido de pragmatismo e a lentidão dos governos. “Estamos ainda a tempo de reagir e mudar o rumo, mas o tempo está acabando”, disse.

Nesta segunda-feira (21), horas após o anúncio da morte de Francisco, Simon Stiel, secretário executivo da Convenção do Clima da ONU (UNFCCC), entidade que organiza as cúpulas do clima, como a que vai ocorrer neste ano em Belém (a COP30), reconheceu a força moral que o papa representou. 

“O papa Francisco nos lembrou que não pode haver prosperidade compartilhada até que façamos as pazes com a natureza e protejamos os mais vulneráveis”, afirmou em mensagem enviada à imprensa. “Sua liderança reuniu as forças mais poderosas da fé e da ciência para apresentar verdades incontestáveis, destacando os custos da crise climática para bilhões de pessoas”, complementou. 

Stiell reconhece no papa um tipo de liderança que o mundo político abandonou: aquela que fala com convicção, mesmo quando ninguém quer ouvir. Uma voz incômoda que lembra: “não existe prosperidade compartilhada sem paz com a natureza e proteção aos mais vulneráveis”, disse o diplomata.

Humanidade é comunidade. E quando uma comunidade é abandonada — à pobreza, à fome, aos desastres climáticos e à injustiça — toda a humanidade é diminuída, material e moralmente, em igual medida”, resumiu.

Francisco deixou uma lição, de que é preciso recuperar o senso de pertencimento. A consciência de que não somos donos da Terra — mas parte dela.


Giovana Girardi
giovana.girardi@apublica.org
Chefe da Cobertura Socioambiental