Há 30 anos, uma obstinada senhora, Luzia Maria, escreveu e dirigiu um espetáculo a céu aberto recriando a batalha em tons épicos, e desde então ela é representada todos os anos por mais de 200 moradores de Tejucupapo, diante de uma plateia de 1.500 pessoas vindas da vizinhança – famílias, roupas coloridas, sorrisos, gritaria – uns pequenos punhados de Recife, com seus óculos coloridos e camisas estilizadas, e só nós de forasteiros. Luzia preside a Associação Cultural Heroínas de Tejucupapo, responsável pela encenação a céu aberto.
Com um atraso de duas horas, causado porque Luzia queria esperar a chegada do prefeito, a batalha é encenada como uma grande dança, onde as mulheres aparecem com vestidos longos e monocromáticos, vermelho, verde, azul, rosa, carregando cestas de frutas e farinha, de mãos dadas com meninos vestidos apenas com calça curta e branca, descalços, e através das furiosas caixas sonoras na última uma narração épica (feita pela própria autora) vai contando como era a tediosa (mas pintada de maneira engrandecedora) vida das mulheres de Tejucupapo, que faziam seus deveres, cantavam cantigas, até que, no dia da invasão, foram incitadas pelo (valente) major de milícias Agostinho Nunes a ferver água e temperar com pimenta para jogar nos olhos dos invasores.
A espera foi de duas horas e meia, mas a performance em si dura por volta de meia hora. A plateia está em êxtase, grita a cada “holandês”, de calças negras, casaco laranja e uns capacetes de bicicleta revestidos com purpurina dourada que cai no fosso da trincheira.
“Se esses holandeses voltarem, eu atiro neles” – diz um dos atores, vestido com um gibão marrom
“Vivaaaa” – grita o público. A história contada na peça, é claro, foi bastante arredondada. Seu significado é dizer que nascia ali o Brasil, independente, o que é um papo furado: o Nordeste que se livrou dos holandeses apenas queria voltar a ser católico, obscurantista e português (escravocratas todos eram). Mas isso é o que menos importa. Para mim, importa que numa cidadezinha de 80 mil habitantes essa senhora tenha conseguido criar uma tradição que atrai milhares de pernambucanos todos os meses de abril, e que tenha feito toda essa gente esperar nas desconfortáveis arquibancadas até a chegada do prefeito, a quem, em vez de pedir uma salva de palmas, chamou ao microfone para entregar-lhe uma placa de homenagem para depois pressionar:
– Temos três demandas – disse.
Então seu vice-presidente, um rapaz jovem, listou-as ali, bem detalhadas, e depois Luzia ainda cobrou:
– Queremos ouvir sua resposta.
Palmas da plateia.
Por que estou compartilhando isso aqui, nesta newsletter sobre o bravo mundo novo da tecnologia? Porque, embora sejam realidade as novas fronteiras virtuais do ultracapitalismo digital, e embora tenhamos, sim, que refletir sobre as implicações desses novos mundos que estão sendo criados, onde uma banda de rock da minha infância pode viver para sempre –, ainda estamos em um mundo igualmente analógico, onde um grupo de senhoras, senhores e crianças de uma cidadezinha no interior de Pernambuco encenam, bem à maneira oposta das criações de IA, uma peça e conseguem levar mais de 1.500 pessoas num domingo chuvoso para vê-las, com parca internet, sem luz quase, com pouco sinal de telefonia, e a vida segue acontecendo, também, fora da rede, ainda tocada por pessoas com seus medos e seus vícios e suas belezas. |
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